A exploração na força de trabalho pelas plataformas digitais é mera reprodução hightech, cuspida e escarrada, do velho contrato de emprego assalariado de 200 anos atrás.
Reginaldo Melhado
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 10/09/2020
Os juristas têm se esforçado em demonstrar tecnicamente a ocorrência da relação de emprego entre trabalhadores e empresas proprietárias de plataformas de serviços (como Uber, iFood etc.). Esse esforço de hermenêutica jurídica é elogiável, mas algo mais além desse modelo deve ser objeto de reflexão: a de categorias como mercadoria, trabalho assalariado e mais-valia em Karl Marx, e a revisão crítica do conceito de relação de emprego, forjado desde tempos imemoriais para definir o trabalho protegido pelo sistema jurídico.
Meios de produção digitais e plataformas digitais
Na velha e boa língua de Camões, o termo plataforma sugere uma área plana, elevada em relação ao nível do solo. No tempo de Machado, designava o espaço erguido ao lado da linha férrea, nas ferroviárias e estações de metrô, destinadas ao embarque e desembarque de passageiros e mercadorias. No discurso contemporâneo, as plataformas tornaram-se ambientes informacionais com características semelhantes. São estruturas de interface de mercadorias e pessoas que, ademais de interação algorítmica, também se constituem como parte integrante dos meios de produção de mercadorias, com predominância para aquelas que se corporificam enquanto serviços. Essas infraestruturas digitais “moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizadas por meio de coleta sistemática, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados” (na definição de Thomas Poell, David B Nieborg e José Van Dijck, em Plataformização).
Contrato de emprego e subordinação
Dizer que a subordinação é elemento da relação de emprego é falsificação ideológica do real. Ela não é elemento da relação substantiva ou ontologicamente considerada e sim mera característica externa. Via de regra, a subordinação é muito evidente e adiposa, mas em diversos casos mostra-se rarefeita ou quase cognitivamente inapreensível.
Dizer que a subordinação é elemento da relação de emprego é o mesmo que imaginar que a água é em si mesma água por ser um líquido incolor, sem cheiro ou sabor (como aprendemos na escola, e nem isso parece correto, pois as propriedades da água podem fazê-la doce ou salgada, alcalina, ácida). Na realidade, evidentemente, a água é uma substância química cujas moléculas são constituídas por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio (H2O). Esses são os elementos da água, substantiva ou ontologicamente considerada. O que você vê são suas características externas, não o que ela materialmente é.
Com contrato de emprego ocorre algo semelhante. Você vê externamente certas características típicas (pessoalidade, trabalho não eventual, onerosidade e subordinação), mas isso não é a relação de emprego materialmente considerada. Nesse sentido, a subordinação como elemento da relação de trabalho a ser tutelada pelo sistema legal civilizatório é apenas um mito.
Marx, mercadoria e mais-valia
Na economia capitalista, os bens “dotados” de valor são produzidos como mercadorias cujo atributo essencial é satisfazer necessidades humanas, “do estômago ou da fantasia”, como disse Marx (O Capital). Nesse sentido, a mercadoria tem um valor de uso. Mas ela incorpora também um valor de troca, no plano das relações jurídicas: um equivalente quantitativo abstrato, materializado na relação de câmbio. Na aparência fetichizada, esse valor de troca aparece como qualidade fantasmagórica da própria mercadoria, ocultando sua relação substantiva verdadeira, que consiste no tempo de trabalho médio socialmente necessário à sua produção. Noutras palavras: bens constituídos enquanto mercadorias têm valor de troca por “encarnarem” trabalho humano socialmente necessário à sua produção. Tal como a subordinação, fetichizada no direito do trabalho, a assombração parece ser real. O valor mostra-se como qualidade ínsita à mercadoria, mas isso é apenas uma miragem.
Nas relações capitalistas de produção, o assalariamento do trabalho é o mecanismo pelo qual a mais-valia é extraída. A relação de emprego consubstancia-se enquanto contrato de compra e venda de força de trabalho. As relações jurídicas então fazem o truque ideológico destinado a ocultar a expropriação da força de trabalho: o trabalhador produz a mercadoria, mas fica com o salário, que representa apenas uma parte do valor-trabalho incorporado à mercadoria.
Mais-valia e subordinação algorítmica
O que deveria interessar ao direito do trabalho, enquanto sistema de “proteção” jurídica, que crava uma cunha civilizatória — e dialeticamente também domesticadora — nessa relação, é a apropriação da mais-valia, por diferentes paradigmas jurídicos, e não exatamente se ocupar sobre se é possível ou não identificar a subordinação, e menos ainda toma-la enquanto elemento constitutivo do contrato objeto da tutela legal.
Nas plataformas de serviços, as mais comuns, há produção de mercadorias. O serviço de transporte de pessoas ou coisas, por exemplo, é a mercadoria produzida pelos trabalhadores. Curiosamente, nessas relações, parte dos meios de produção necessários à produção da mercadoria pertence ao próprio operário (o automóvel, a bicicleta ou a moto). Mas outra parte, essencial para ativar o processo de trabalho, pertence ao capitalista: a plataforma digital. Nela atuam também outros trabalhadores, desde sua arquitetura até a gestão, e ela em si mesma é trabalho morto, que é o trabalho acumulado e objetivado para o incremento do capital. No caso, aqui, corporificado nos meios de produção tecnológicos, abstratos e impalpáveis, que incorporam o conhecimento humano historicamente produzido desde a invenção roda até a construção da plataforma digital, passando naturalmente pela maquininha criada por Alan Turing e outros cientistas, o computador.
Evidentemente, a subordinação está presente na relação jurídica entre o trabalhador e o capital, dono da plataforma. Já me esforcei muito para tentar compreender sistematicamente a subordinação (coloquei isso no Poder e sujeição, um livrinho de anos atrás). Nele procurei mostrar subordinação — na realidade, o poder do capital e a sujeição do trabalho — como um fenômeno dinâmico, envolvendo (a) fontes primárias ou endógenas e (b) fontes heteronômicas ou secundárias. Não tenho como voltar a tudo isso aqui. Apenas sublinharia a conclusão desses estudos, no sentido de que a subordinação em certas condições sequer pode ser percebida, conquanto esteja sempre presente como resultado da apropriação da capacidade de trabalho do operário. O importante, não obstante, não é se ela aparece e pode ser captada ou não pela reflexão do jurista, mas se a expropriação do trabalho ocorre efetivamente.
Panoptismo digital e algoritmocracia
Nas plataformas digitais, o resultado final do processo de trabalho é uma mercadoria que não pertence aos trabalhadores que a produzem. O capital, proprietário das plataformas, apropria-se dela e só uma parte desse produto “volta” para o seu produtor, sob a forma de trabalho assalariado. Nas plataformas digitais, sem embargo, ocorre um exercício de prestidigitação a mais: o assalariamento é ocultado sob a aparência do pagamento do preço da mercadoria pelo próprio consumidor, o trabalhador surge como cliente da plataforma digital e a subordinação é obliterada sob a algoritmocracia. Essa forma de gestão, o algoritmo, surge como um novo paradigma de controle do trabalho capaz de (a) rastrear a atuação e avaliar permanentemente a performance do trabalhador, aferindo instantaneamente o resultado do seu trabalho, (b) implementar decisões automatizadas, inclusive acerca da punições ao prestador de serviços ou mesmo sua exclusão se ele não se “alinha” às políticas da plataforma ou não alcança escore de avaliação positiva e (c) mostrar-se como um espectro dotado de ubiquidade, que ronda o trabalho onisciente e continuamente, sem que o trabalhador seja capaz de compreender, interferir e defender-se do acervo de normas algorítmicas (Mareike Möhlmann e Lior Zalmanson, Hands on the wheel: Navigating algorithmic management and Uber drivers’ autonomy). A incitação ao trabalho é feita não apenas pelo direito penal privado das plataformas digitais, capaz de impor sanções sumárias e impiedosas, inclusive com a pena capital da desativação da conta, como também por sanções premiais para atingimento de objetivos, como o tempo semanal ou diário dedicado ao trabalho. O sistema de vigilância configura uma espécie de panoptismo algorítmico, capaz de deixar Jeremy Bentham de boca aberta.
Chegamos até aqui, enfim, para concluir ser a exploração na força de trabalho pelas plataformas digitais mera reprodução hightech, cuspida e escarrada, do velho contrato de emprego assalariado de 200 anos atrás. Nela não importa identificar a subordinação jurídica para concluir pela existência de vínculo de emprego entre os trabalhadores e plataformas digitais. O mesmo deve ocorrer com outros diferentes paradigmas de exploração e apropriação da força de trabalho, que já se desenham e devem surgir com mais frequência num futuro próximo. Neles, é cada vez mais previsível a obnubilação e a opacificação das características tradicionais que o direito do trabalho elegeu como elementos da relação de emprego. Uma maior abrangência do sistema de proteção do direito do trabalho exigirá das classes trabalhadoras fugir desses velhos conceitos.
Não obstante, no trabalho por meio de plataformas digitais, a sujeição etérea e abstrata evidencia-se com eloquência pela algoritmocracia e pela chibata do capataz panóptico-digital. É talvez mais intensa do que a subordinação tradicional.
Por outro lado, a resposta tradicional do direito do trabalho nesses tempos de retrocesso civilizatório, conquanto importante, levará, no caso das plataformas digitais, quando muito, a uma exploração da mais-valia limitada pelo sistema, que ainda será a exploração do homem pelo homem, este agora disfarçado de algoritmo. Essa proteção não é pouca coisa, mas talvez se possa pensar o problema na perspectiva de experiências de ruptura com o capitalismo e não de sua reprodução, como a do MST, e imaginar os coletivos de trabalhadores plataformizados tomando os meios de produção das suas mercadorias, mediante a constituição de suas próprias plataformas de solidariedade, quiçá, inicialmente, sob a forma de cooperativas insurgentes (como propõe Trevor Scholz, em Cooperativismo de plataforma, e vários outros estudos). Já há uma moçada pensando nesse pulo do gato até no Brasil, mas essa é outra história, e fica para um outro artigo.
Reginaldo Melhado é membro da Associação Juízes para a Democracia. Doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Universidade de Barcelona (com revalidação pela USP). Professor da UEL. Juiz titular da 6ª Vara do Trabalho de Londrina.