Justiça do Trabalho no fogo cruzado: reflexões em tempos de polarização

Fotografia: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Em tempos de ode à análise econômica do direito aplicado por tribunais, pouco se ouve falar dos efeitos sociais destas próprias decisões.

Fabiano Fernandes Luzes e Fernanda Cabral de Almeida

Fonte: Conjur
Data original da publicação: 17/07/2023

Recentemente, a comunidade jurídica foi invadida pelo debate acalorado, quase dicotômico, entre apoiadores e críticos de dois textos publicados aqui na ConJur. Ambos reagem à recente decisão [1], da lavra do ministro Alexandre de Moraes, que, na esteira de outros precedentes do STF, derrubou um acórdão do TRT da 3ª Região que reconhecia o vínculo de emprego entre um motorista e a plataforma digital. Contudo, enquanto o primeiro artigo cobra uma postura ativa da Justiça do Trabalho, o segundo imputa a ela a culpa por este resultado, cobrando-lhe uma conduta remissiva.

Ambos os textos refletem a polarização que permeia quase todos os aspectos de nossas vidas na contemporaneidade e corrompe, cada vez mais, nosso tecido democrático. Buscaremos, aqui, transpô-la e, sem qualquer pretensão de ter razão, contribuir com novos elementos reflexivos que propiciem o debate fora destas “bolhas”.

Em tempos de ode à análise econômica do direito aplicado por tribunais, pouco se ouve falar dos efeitos sociais destas próprias decisões. Apresentamos aqui, então, uma curta história, pois, como diria Cazuza, “eu vejo o futuro repetir o passado” [2].

Após inúmeras greves que denunciaram péssimas condições de trabalho dos padeiros no estado de Nova York e reivindicaram redução da carga horária de trabalho — que atingia, em regra, 74 horas semanais —, em 1895, ambas as casas legislativas daquele estado aprovaram, por unanimidade, uma lei limitando o trabalho da categoria a 10 horas diárias e 60 semanais, além de regulamentar suas condições sanitárias.

Denunciado por descumpri-la, exigindo de seus empregados jornada superior à nela fixada, Joseph Lochner, proprietário de uma padaria na cidade de Utica, levou a discussão até a Suprema Corte dos Estados Unidos que, revendo as decisões proferidas nas instâncias inferiores, declarou a inconstitucionalidade da lei por violar o direito de liberdade de contratação entre empregados e empregadores.

Este caso é paradigmático porque inaugurou um período de atuação da Suprema Corte norte-americana — a Era Lochner (1897-1937) — em que as cláusulas do devido processo legal foram “aplicadas substantivamente para considerar inconstitucionais várias leis estaduais e federais que restringiam o direito à ‘liberdade de contrato'”. [3]

Mas o lochnerismo — como também é conhecido este período — acabou minado pelos seus próprios fundamentos, quando suas premissas colapsaram diante dos olhos da sociedade mergulhada em uma crise econômica e social sem paralelo que se seguiu à quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929.

No precedente mais comumente apontado como sinalizador do fim da Era Lochner — West Coast Hotel Co v. Parrish (1937) —, a Suprema Corte validou uma lei do estado de Washington sobre salário mínimo e explicou que a concepção de liberdade no trabalho até então adotada “deixou de reconhecer o desequilíbrio de poder entre empregador e empregado, o que prejudicou a liberdade deste último” [4].

Aqui no Brasil, nos últimos anos, nosso Supremo Tribunal Federal, seguindo os passos da Suprema Corte norte-americana, vem apresentando “sintomas de um retorno ao lochnerismo”[5], com o prestígio à liberdade contratual nas relações de trabalho sob dois aspectos: 1) o agente econômico é livre para escolher a forma de contratação da mão de obra — própria ou terceirizada (ADPF 324); e 2) o trabalhador e o tomador dos serviços são livres para eleger a modalidade de trabalho a ser prestado — autônomo (ADC 48), por demanda em plataformas digitais (Rcl 59.795/MG), “pejotizado” (Rcl 39.351, 47.843 e 56.285) etc.

A diferenciação é necessária, pois, ao passo em que, na 1) primeira situação, há negociação entre duas empresas, sem qualquer mácula aos direitos dos empregados, aos quais se aplica inteiramente a legislação trabalhista — ressalvadas as críticas à terceirização como forma de desorganização do sistema clássico de garantias do Direito do Trabalho [6] —, na 2) segunda, a negociação é feita diretamente entre o tomador dos serviços e o trabalhador. Neste último aspecto, inclusive, a Corte se afasta da premissa por ela mesma adotada taxativamente, no RE 590.415, segundo a qual, “no âmbito do direito coletivo, não se verifica, portanto, a mesma assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Por consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual”.

Partimos, aqui, do pressuposto — mesmo que muitos insistam em dizer o contrário — de que a relação de trabalho é sim um espaço que demonstra o abismo de classes, que possui trabalhador de um lado e o empresariado de outro. E mais: pela simples racionalidade econômica dos agentes desta relação, ambos querem maximizar suas posições.

Pensar que o mundo é a representação de nossa “bolha” de privilégios é desconhecer a realidade brasileira: uma sociedade eminentemente desigual e que parece fazer de tudo para assim permanecer. É também agir em total desprezo à realidade consubstanciada na perspectiva dialética do próprio ser humano. Por isso, deve-se levar luz à tentativa de ocultar o conflito social que circunda a relação de trabalho. Este conflito é inerente à sociedade, e é exatamente por isso que o Estado avocou para si a condição de mediador desta pacificação pela construção de um contrato social e consequente regulação das relações de trabalho.

Não à toa, dado que o artigo 7º da CF/88 não sofreu alteração — e a CLT (ainda) não foi revogada —, percebe-se um traço comum nestes precedentes do STF: tais formas de contratação são válidas desde que não se revistam de caráter fraudulento. É o que se vê, e.g., na tese fixada na ADI 5.625, que declarou a constitucionalidade do contrato de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, sendo nula, contudo, a avença quando utilizada “para dissimular relação de emprego de fato existente”. Como conclusão lógica, ao fixar teses neste sentido, a Corte “joga para o varejo” a análise de cada caso concreto, o que é feito à luz dos fatos, e não do direito. Ora, então o que cabe à Justiça do Trabalho?

A Justiça do Trabalho não formula políticas públicas, não cria regras abstratas e não fiscaliza a execução das leis, mas apenas analisa os casos concretos e lhes aplica a norma vigente. Se a relação — “pejotizada”, por demanda, de parceria ou como queiram denominar — de fato se constitui em um trabalho subordinado, a ela deve ser aplicada a CLT. E é apenas isso que o Juiz do Trabalho faz, seja pelo que preconiza a lei, seja pelo que descrito na Constituição.

Não obstante, o STF — em que pese sua essência coletiva — tem avocado para si este “varejo”, ignorando premissas fáticas e elastecendo, em julgados monocráticos, temas decididos pelo colegiado, mesmo que, para tanto, às vezes lance mão de um “triplo carpado hermenêutico”. E, assim, muitas destas decisões acabam por tornar sem efeito — quase numa “inconstitucionalidade radioativa” — o artigo 9º da CLT, que imputa à Justiça do Trabalho o dever de enfrentar práticas que buscam tornar opaca uma real relação de emprego. Parece termos chegado ao ponto, como acentua um dos textos, de conferirmos efetivo monopólio ao empregador para dizer quem é empregado.

Não se pode perder de vista que há determinada carga política nas decisões do STF — e aqui não se discute se isso é ou não desejável —, o que se pode explicar pela quantidade de indivíduos que afetam. No entanto, também em razão desse elemento político, a Corte é levada muitas vezes a rever determinado posicionamento — quando o resultado não se amolda ao esperado. É o que aconteceu, e.g., com a contribuição sindical. Após declarar a constitucionalidade de sua extinção pela Reforma Trabalhista, em sede de embargos de declaração, no ARE 1.018.459, a Corte decidiu excetuar as contribuições assistenciais. E por quê? Nas próprias palavras do ministro Roberto Barroso, “identificou-se uma contradição entre prestigiar a negociação coletiva e, ao mesmo tempo, esvaziar a possibilidade de sua realização, ao impedir que os sindicatos recebam por uma atuação efetiva em favor da categoria profissional”.

Diante do quadro descrito, passamos a buscar reflexões sobre a redução imposta pelo Supremo àquilo que compete à Justiça do Trabalho enfrentar diariamente. Alguns buscam encontrar meros culpados. Ora, a “culpa” é da CLT, outorgada por um ditador, muito embora seus críticos se esqueçam de mencionar as diversas mudanças pelas quais passou em seus 80 anos de vigência — muitas delas flexibilizadoras de direitos, como as adotadas durante a Ditadura Militar (1964-1985). Ora, é da própria Justiça do Trabalho, por conta de suas interpretações ou de supostos reflexos de suas decisões.

Respeitosamente, isso denota apequenar os fatos ou enviesar o debate pelo foco do que nos interessa realmente defender. Para darmos um exemplo exagerado, porém pertinente, colocar a culpa na Justiça do Trabalho pelo esvaziamento de sua competência é como imputar a responsabilidade pela importunação sexual à roupa usada pela vítima.

Talvez, a reflexão devesse ser outra: estaria o Judiciário Trabalhista ignorando a realidade das novas formas de prestação de trabalho que não a típica relação de emprego? Ou estaríamos nós, ofuscados pela disrupção tecnológica, matando o emprego antes mesmo que ele morra?

Ou ainda: não estamos supervalorizando o papel da Justiça do Trabalho? Segundo dados do TST, dentre os assuntos mais recorrentes nas demandas ajuizadas, o reconhecimento da relação de emprego aparece em um tímido 16º lugar. Por outro lado, chovem pretensões que versam sobre questões elementares, como inadimplência de verbas e de horas extras. E mais, em 2015 e em 2019 — dois anos antes e dois anos após a Reforma Trabalhista —, 58,29% e 54,44% das demandas tiveram como resultado improcedência, parcial procedência [7]ou foram extintas [8]. Ou seja, os números mostram — diferentemente do que se apregoa — que não se julga tudo a favor dos trabalhadores.

Não bastasse, as narrativas que apontam a existência de uma demonização do empresariado desconsideram que um enorme contingente de empregadores não é demandado, pelo simples fato de cumprirem o ordenamento.

Por fim, a discussão não pode ser resumida à constatação de que sem capitalismo não existe relação de emprego. Afinal, o estado de bem estar social é um produto do capitalismo e, como tal, enxerga a centralidade do trabalho na sociedade. O arranjo pragmático das políticas do welfare state o afasta de qualquer ideal utópico e dos dois polos extremos que com ele competem — o capitalismo de livre mercado e o socialismo [9].

As catástrofes do século 20 foram provocadas por dois tipos de líderes políticos — os populistas e os ideólogos. Já os líderes mais exitosos daquele século foram justamente os pragmatistas, que se concentravam em soluções práticas para problemas centrais [10].

Cabe, portanto, indagarmos se estamos sendo pragmáticos em ratificar estes tipos de relação de trabalho desprovidas de direitos trabalhistas e, muitas vezes, previdenciários [11]. Ou estaremos — todos nós contribuintes — em breve pagando a conta por estas decisões? Seria razoável sairmos de um modelo de regulação estatal para um modelo desregulado?

Precisamos de mais razão e menos emoção. Do contrário, seremos todos reduzidos a “neoliberais fascistas” ou “comunistas retrógrados”.

Não é nosso objetivo debater se a CLT é ou não o melhor instrumento normativo para regular as assim chamadas “novas relações de trabalho”. Há vozes em ambos os sentidos e todas devem ser ouvidas no fórum adequado: o Congresso. Mas, enquanto isso, a vida continua, pessoas trabalham, se sentem lesadas e ajuízam ações. Cabe ao juiz do trabalho, diante da análise dos fatos em determinado caso concreto, percebendo a presença da subordinação em determinada relação de trabalho, aplicar a lei que temos. Seria então a Justiça do Trabalho culpada pela inércia do legislativo?

Extinguir a Justiça do Trabalho por ato legislativo imputaria grande custo político para aqueles que aderissem a esta bandeira — não à toa, incipientes tentativas de sua “explosão” foram quase que instantaneamente sepultadas.

Por outro lado, minar o seu alcance com a redução de sua competência — com uma aderência ao posicionamento lochnerista e em clara redução hermenêutica do artigo 114, I, da CF/88 — se manifesta como uma forma técnica (ou não) de torná-la meramente residual e irrelevante. Sua “implosão” parece ter maiores chances de alcançar a longo prazo o mesmo resultado: sua inoperância por inação imposta.

Como toda decisão política, e aqui colocamos propositalmente a referida palavra, em algum momento seremos igualmente cobrados, seja pela ação ou omissão [12]. E neste futuro, se tivermos a oportunidade, parafraseando Chico Buarque, talvez poderemos “nos perdoar por nos trair”.

Notas

[1] Recl 59.795.

[2] O discurso reiterado de defesa ideológica de um passado, como se houvesse uma construção argumentativa contra “o novo”, nos faz lembrar momentos que antecederam a abolição da escravidão e a regulamentação do trabalho doméstico, com argumentos, em regra de viés econômico, como, e.g., o risco de desemprego.

[3] MAYER, David N. The myth of laissez-faire constitutionalism: Liberty of contract during the Lochner eraHastings Const. LQ, v. 36, p. 217, 2008.

[4] NORRIS, Luke. Constitutional Economics. Yale JL & Human, v. 28, p. 1, 2016.

[5] Sobre o tema, ver: COCHRAN, III, Augustus Bonner; FERNANDES, João Renda Leal. De volta a Lochner. Revista LTr, Ano 86, v. 10, p. 1196-1217, 2022.

[6] Para Maurício Godinho Delgado, “a fórmula da terceirização trabalhista permite a desconexão entre a relação socioeconômica de real prestação laborativa e o vínculo empregatício do trabalhador que seria correspondente com o próprio tomador de seus serviços” (Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos da reconstrução. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2017).

[7] Toda procedência em parte é, por consequência lógica, uma improcedência em parte.

[8] LUZES, Fabiano Fernandes. Uma breve Reflexão sobre as balizas que fundamentam a limitação de acesso à justiça trabalhista: um repensar sobre a desjudicialização dos conflitos e atuação do estado na sua gestão a luz de uma perspectiva consequencialista. Revista do TRT da 24ª Região, n. 6, 2021, p. 109-130.

[9] GARLAND, David. The welfare state: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2016.

[10] COLLIER, Paul. O futuro do capitalismo: enfrentando as novas inquietações. 1. ed. Porto Alegre: L&PM, 2019.

[11] No modelo previdenciário brasileiro, todo aquele que exerce uma atividade remunerada é segurado obrigatório do sistema. Não obstante, motivos diversos como os baixos rendimentos, a oferta privada de investimentos e a falta de fiscalização fazem com que boa parte dos trabalhadores autônomos esteja fora do sistema.

[12] Para reflexões sobre a correlação entre ausência de direitos trabalhistas e precarização democrática, ver: LUZES, Fabiano Fernandes. Neopopulismo e Direito do Trabalho. Leme/SP: Ed. Mizuno, 2022.

Fabiano Fernandes Luzes é doutorando pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), mestre pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e juiz do trabalho do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro (TRT-RJ).

Fernanda Cabral de Almeida é doutoranda e mestre pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e servidora do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro (TRT-RJ).

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