Cássio Casagrande
Fonte: Jota
Data original da publicação: 22/07/2019
Neste primeiro semestre aqueles que se preocupam com a qualidade da nossa democracia procedimental estiveram com os olhos voltados ao Poder Executivo Federal, pois os desagradáveis pendores autoritários do atual Presidente da República não tardaram a se mostrar, como se viu em suas fracassadas e algo patéticas tentativas de legislar por Decreto.
O Congresso Nacional foi, inclusive, elogiado por conter ou rejeitar alguns dos ucases mais estapafúrdios do chefe do Executivo. Embora muitos depositem confiança em que o Legislativo possa conter, com seus mecanismos constitucionais de freios e contrapesos, os arroubos cesaristas mais alucinados de Bolsonaro, seria conveniente também exigir dos nossos congressistas que eles da mesma forma observem o devido processo legislativo e abstenham-se de cometer prestidigitações procedimentais como aquela que está em curso, à sorrelfa, na tramitação da MP dita “da liberdade econômica”.
Se o Executivo atualmente padece de certo despotismo atávico, o Legislativo mostra seus deficits democráticos quando manobra nas frinjas regimentais para se vergar a obscuros interesses plutocráticos.
O Executivo editou e enviou ao Congresso Nacional a MP 881, com o propósito de “instituir uma declaração de liberdade econômica e estabelecer garantias de livre mercado e análise de impacto regulatório”.
Quando saiu do Palácio do Planalto, a MP 881 continha 19 artigos, tratando exclusivamente dos temas que enunciava. Não havia nenhuma disposição sobre matéria trabalhista. Arrisca voltar para a sanção presidencial como um monstrengo de 53 artigos, os quais alteram dezenas de outros dispositivos legais, incluindo-se vários relativos a legislação do trabalho.
As “disposições finais” tinham 13 artigos e agora contam com 38 (há mais normas nas disposições gerais do que no corpo principal do diploma – que belíssima técnica legislativa!). E justamente nestas disposições gerais há um único artigo (28) que por sua vez modifica 36 artigos da CLT, numa verdadeira mini reforma Trabalhista que certas lideranças parlamentares estão empurrando goela abaixo sem a menor transparência ou discussão com a sociedade.
Foi na comissão mista constituída para analisar a MP 881 que alguns legisladores nada ingênuos inseriram-lhe de cambulhada uma série de jabutis, incluindo a aludida mini reforma trabalhista que, não precisa dizer, é completamente desfavorável aos trabalhadores e ao poder de polícia na fiscalização do cumprimento da legislação laboral.
E o mais incrível é que esse quelônio exótico apareceu de supetão no relatório final do parecer do relator da comissão mista 48 horas antes da votação por seus membros, tendo sido aprovado com a mais absoluta afoiteza, praticamente sem nenhuma discussão aprofundada e sem que atores sociais interessados (como trabalhadores e sindicatos) tenham sido ouvidos. Como diria Odorico Paraguaçu, o procedimento pareceu mais uma “confabulância político-sigilista” do que propriamente uma deliberação pública.
A prática de inserir “jabutis” em Medidas Provisórias não é nova.
A expressão, aliás, começou a ser usada a partir do provérbio popular de que “jabuti não sobe em árvore”; ou seja, se ele está pendurado em um galho, alguém o colocou lá. Essa praxe é flagrantemente violadora da Constituição, por um simples fato. É do presidente da República a prerrogativa de decidir que determinado assunto é “relevante e urgente” e, por conseguinte, merecedor de ser regulado pela via extraordinária da MP, de forma que a proposição legislativa tenha precedência sobre outras e dispense alguns ritos mais delongados.
O Congresso, é claro, pode rejeitar a MP, inclusive por entender que não há, no caso, relevância e urgência. Mas o que o Legislativo não pode fazer é “parir” uma nova MP, ou seja, fazer nascer dentro do próprio parlamento uma outra medida provisória, pelo subterfúgio de agregar normas exóticas a MP que já está em curso. Ou seja, colocar o jabuti na árvore que está no terreno do presidente da República
É o que o Supremo Tribunal Federal veio denominar de “contrabando legislativo”, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5127. Segundo a decisão proferida naquele processo, “não é compatível com a Constituição da República a apresentação de emendas parlamentares sem relação de pertinência temática com medida provisória submetida à apreciação do Congresso Nacional”.
Em seu voto, a ministra Rosa Weber foi precisa em determinar como o procedimento fere de morte a democracia: “O que tem sido chamado de contrabando legislativo, caracterizado pela introdução de matéria estranha a medida provisória submetida à conversão, não denota, a meu juízo, mera inobservância de formalidade, e sim procedimento marcadamente antidemocrático, na medida em que, intencionalmente ou não, subtrai do debate público e do ambiente deliberativo próprios ao rito ordinário dos trabalhos legislativos a discussão sobre as normas que irão regular a vida em sociedade”.
A ministra também acrescentou, com absoluta pertinência: “Não se trata em absoluto de apenas de aproveitar o rito mais célere para fazer avançar o processo legislativo, supostamente sem prejuízo. A hipótese evidencia violação do direito fundamental ao devido processo legislativo – o direito que têm todos os cidadãos de não sofrer interferência, na sua esfera privada de interesses, senão mediante normas jurídicas produzidas em conformidade com o procedimento constitucionalmente determinado”. Faço minhas as palavras de Sua Excelência.
A Medida Provisória é uma norma de exceção ao processo legislativo. Em razão da pressuposta urgência em sua aprovação, várias etapas importantes da deliberação parlamentar são suprimidas, como o percurso em comissões temáticas, a pluralidade de pareceres, pedidos de vistas de membros dos colegiados, a convocação de audiências públicas, entre outras. Pular essas etapas parece um tanto mais grave quando se pretende alterar diplomas como o Código Civil e a CLT, cuja formação e estabilidade como corpus juris demandaram longos anos de atividade política e interpretação jurisprudencial.
E, como estamos vendo na hipótese, uma comissão do Congresso vem e debate modificações nestes diplomas relevantes (alterações certamente apresentadas com a altruística contribuição de imodestos lobistas) em apenas 48 horas, arremessando a matéria para o plenário, que vai apenas votar sim ou não sem qualquer aprofundamento nas inúmeras questões relevantes que foram enxertadas subrepticiamente na MP.
Os plutocratas, penhoradamente, agradecem.
O resultado de tudo isso só pode ser uma lei ruim, eivada de atecnias e inconstitucionalidades, com segundas intenções que somente serão percebidas quando sua aplicação resultar em mais poder para os poderosos.
Vou dar apenas dois exemplos de duas aberrações contidas no texto aprovado na comissão mista. Os legisladores inseriram no art. 444 da CLT um parágrafo segundo, com a seguinte redação:
“Os contratos de trabalho de remuneração mensal acima de 30 (trinta) salários mínimos, cujas partes contratantes tenham sido assistidas por advogados de sua escolha no momento do pacto, será regido pelo direito civil, ressalvadas exclusivamente as garantias do art. 7º. da Constituição”.
Inicialmente, note-se que a precipitação do processo legislativo levou o relator a cometer um grosseiro erro de concordância (“os contratos será regido”). Quanto ao mérito, o legislador pretende estabelecer que os chamados “trabalhadores hipersuficientes” fiquem fora da CLT e sejam regidos “pelo direito civil”, porém ressalvadas as garantias do art. 7º. da Constituição. Bem, o inciso I do art. 7º. estabelece como direito “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa”.
Gostaria de perguntar ao sapientíssimo relator deputado Jerônimo Goergen, que inventou essa moda, como é possível um contrato regulado pelo direito civil que prevê concomitantemente uma relação de emprego com cláusula de proteção contra despedimento sem justa causa. E mais, não vamos esquecer, o mesmo artigo 7º. estabelece direitos como horas extras, adicional noturno, seguro-desemprego e FGTS. Não recordo em que parte do Código Civil essas matérias são tratadas. Ignoro como alguém possa recolher FGTS em um contrato civil. Também deve ter passado despercebido que o mesmo art. 7º. reconhece direitos como licença-gestante e seguro contra acidentes de trabalho, que pressupõe uma relação de emprego com as respectivas contribuições previdenciárias. Faltou só explicar como esses benefícios previdenciários serão pagos pelo INSS em um contrato regulado “pelo direito civil”.
O relator também fez inserir na CLT um art. 627-A, o qual estabelece que as autoridades da inspeção do trabalho (hoje subordinadas ao Ministério da Economia) poderão celebrar Termo de Compromisso e que ele “terá precedência sobre quaisquer outros títulos executivos extrajudiciais”, inclusive àqueles firmados pelo Ministério Público do Trabalho. Ah, se entendi bem, então quer dizer que o Poder Executivo pode impor qualquer decisão sua ao Ministério Público… Mas como fica o princípio da independência funcional garantido ao parquet no art. 127, § primeiro da Constituição? O dispositivo é de flagrante inconstitucionalidade.
Como esses, há dezenas de “furos” na norma, sem contar coisas absurdas criadas para inviabilizar quase que por completo o poder de polícia do Estado (como a exigência bizarra da presença de advogado ou procurador para lavrar autos de infração, art. 3º., inc. XIV), com capacidade para transformar a MP de liberdade econômica numa “lei de libertinagem econômica”.
Aliás, estranhamente, não estamos ouvindo a opinião do senhor ministro da Justiça sobre esses dispositivos, que tanto enfraquecem a capacidade do estado de enfrentar abusos do poder econômico. Parece que ele está com outras preocupações no momento.
Enfim, a despeito da decisão do STF, que proibiu a proliferação da espécie invasora dos jabutis dentro do prédio do Congresso Nacional, alguns de nossos parlamentares continuam a adotá-los como animais de estimação.
Se o jabuti da mini reforma trabalhista for aprovado em plenário, o que é muito provável, vamos ver se o STF terá a coragem de afirmar a sua jurisprudência e declarar a inconstitucionalidade da norma. Não creio que o fará, pois na sua atual composição “iluminista” nossa Corte Constitucional não mostra a menor simpatia por leis trabalhistas, Justiça do Trabalho, sindicatos e trabalhadores.
Cássio Casagrande é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.