Interpretando o conteúdo histórico-institucional da liberdade sindical

Ilustração: PNGWing
Imagem: Lionel Feininger

O direito à liberdade sindical não surge de abstrações da razão, nem do poder estatal, mas da reivindicação histórica dos trabalhadores por mais autonomia na defesa dos seus direitos.

Martin Magnus Petiz

O direito constitucional brasileiro vem negando sucessivamente a liberdade sindical por adotar métodos interpretativos inadequados. Isso nega o conteúdo histórico desse direito, atravessado por lutas e conquistas civilizatórias do sindicalismo nos planos nacional e internacional. Essa é a tese de Paulo Roberto Lemgruber Ebert em seu livro “A teoria jurídica da liberdade sindical”, no qual ele propõe que o direito à liberdade sindical possui um “conteúdo histórico-institucional” que não pode ser negado pelas autoridades públicas (p. 29). 

Tal concepção interpretativa da liberdade sindical é oposta a outras duas que, segundo o autor, tem influenciado há anos a atividade hermenêutica dos juízes brasileiros. Em primeiro lugar, há a concepção positivista, que privilegia a vontade das autoridades legislativas na definição dos direitos jurídicas (p. 35). Nesse sentido, princípios do Estado Democrático de Direito não vinculariam os juízes, dotados de discricionariedade judicial na interpretação do direito (p. 37). Em segundo lugar, há a concepção axiológica, que privilegia o método da ponderação de princípios (ou bens) pelos juízes. Aplicando diretamente os princípios da constituição, no entanto, Ebert aponta para o caráter arbitrário da fórmula da ponderação, que apenas mascara as suas preferências pessoais por meio de um método supostamente neutro (p. 46-47). 

Como contrapartida, Ebert propõe a concepção deontológica, que ele recebe da obra de Ronald Dworkin (1931-2013), filósofo de grande influência na teoria do direito. A liberdade sindical, sob essa perspectiva, tem o seu conteúdo extraído “da análise objetiva de seu desenvolvimento histórico como instituição independente e de seu significado à luz da situação concreta e de suas nuances bem como do próprio ordenamento jurídico ao qual estão integrados.” O desenvolvimento da liberdade sindical na história moderna ocidental como resposta aos desmandos das grandes fábricas na Revolução Industrial é bem conhecido (p. 59-94). Mas Ebert também reconstrói os avanços no direito internacional do trabalho (p. 101-124) em conjunção com as lutas locais por liberdade sindical. 

No caso do direito coletivo brasileiro, Ebert mostra com rigor historicista que o caminho do sindicalismo foi duro: o anarquismo operário deu origem às primeiras manifestações sindicais, sempre às margens da lei (p. 124-130); a reação do Estado Novo foi canalizar os sindicatos para as finalidades do Estado (p. 132-137); e, após a conveniente manutenção do esquema corporativista por democratas do regime de 1946 (p. 138-140) e ditadores militares em 1964-1985 (p. 140-144), o movimento constitucional de 1985-1988 rompeu com a submissão do sindicalismo ao Estado. O movimento do Novo Sindicalismo buscou autonomia para a organização sindical na busca da afirmação de direitos trabalhistas. Era preciso sobretudo garantir meios de negociar reajustes salariais – uma urgência em tempos de hiperinflação (p. 142-144). 

Em função das contingências da constituinte, a Constituição acabou por acomodar um “modelo híbrido” de sindicalismo, na visão do autor. A liberdade sindical coletiva foi maximizada, com ampla liberdade de organização, administração e expansão de direitos de atuação sindical na melhoria das condições de trabalho da categoria – via greve, negociação coletiva, legitimidade judicial, etc. (p. 149). Com isso, o autor afirma sobre o conteúdo histórico-institucional da liberdade sindical pós-regime de 1988:

a Carta Magna primou pelo protagonismo dos próprios atores coletivos na resolução de suas controvérsias econômicas, em nítida contraposição à visão corporativista presente nos diplomas magnos anteriores, que priorizaram, como visto. 

[…]

Vê-se, portanto, que a Constituição Federal (sic) de 1988 erigiu o sindicato como o interlocutor dos trabalhadores nas relações coletivas de trabalho […]. Em tal contexto, a resgatar a autonomia sindical e a romper, em parte, com as estruturas corporativistas, os elementos previstos nos arts. 7º e 8º devem ser interpretados de forma ampla, de modo a tutelar, na maior medida possível, os agentes dos sindicatos e os trabalhadores no lídimo exercício da ação sindical. 

Correto, então, que o autor retire do direito à liberdade sindical a vedação total às condutas antissindicais e antirrepresentativas, mesmo quando indiretas (p. 420-421). É uma realidade que os trabalhadores buscam ter representação no espaço de trabalho para atentar às especificidades de suas atividades (p. 232-233). Assim, Ebert considera ser uma implicação da sua concepção deontológica da liberdade sindical a vedação dessas condutas, bem como a interpretação sistemática de tal direito ao lado das Convenções da OIT como complementação do seu conteúdo. 

É uma crítica de Ebert ao modelo híbrido de 1988 o fato de persistir a unicidade sindical como condição de validade da atuação sindical. Na sua visão, essa estratégia da Assembleia Constituinte, aliada à ausência de controle do registro de sindicatos incentivou a constante dissociação de sindicatos em grupos cada vez menores e mais especializados. A consequência foi a criação de um sistema sindical “de pluralidade sem representatividadede facto, não chancelado por lei (p. 147). Todavia, como o próprio autor aponta, nem mesmo essa possível tensão interna do nosso modelo sindical justifica as medidas da Lei nº 13.467/2017 no contexto jurídico brasileiro. Isso porque elas nada mais fizeram do que destruir as medidas de financiamento sindical (p. 150-156). 

Como Ebert já defendia (p. 157), o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional a possibilidade de os sindicatos aprovarem por meio de assembleia geral a contribuição assistencial compulsória para garantir o seu sustento (Tema 935 da Repercussão Geral – “É constitucional a instituição, por acordo ou convenção coletivos, de contribuições assistenciais a serem impostas a todos os empregados da categoria, ainda que não sindicalizados, desde que assegurado o direito de oposição”). Esperamos que a obra de Ebert levante reflexões desse tipo para que o STF e toda a comunidade jurídica percebam os demais retrocessos gerados ao direito do trabalho pela interferência da mentalidade neoliberal no modo como compreendemos o direito coletivo do trabalho.

Referência

EBERT, Paulo Roberto Lemgruber. Teoria jurídica da liberdade sindical: a proteção contra os atos antissindicais e antirrepresentativos. São Paulo: LTr, 2023.

Martin Magnus Petiz é Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais – Direito pela Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail para contato: martin_petiz@usp.br.

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