Fim do acesso à gratuidade judiciária e a perversidade da reforma trabalhista. Entrevista com Valdete Souto Severo

O fim do acesso à gratuidade judiciária “é, sem dúvida, a parte mais perversa e nociva da chamada ‘reforma’ trabalhista”, afirma a juíza do Trabalho Valdete Souto Severo à IHU On-Line. Segundo ela, além de o princípio de acesso à justiça ser um direito fundamental do cidadão e estar previsto nos artigos 5º e 7º da Constituição, “a gratuidade da justiça constitui elemento de cidadania, que inclusive justifica a existência da Justiça do Trabalho. Trata-se de permitir acesso à justiça a quem não tem condições financeiras para isso”, explica. Entretanto, pontua, a garantia constitucional “não impediu os autores da ‘reforma’ de esvaziarem completamente a noção de gratuidade da justiça”. Entre as consequências dessa medida, a juíza ressalta que ela irá “estimular o descumprimento de direitos fundamentais e fomentar o assédio no ambiente de trabalho”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Valdete Severo expõe algumas contradições e incoerências legais da reforma trabalhista e explica como a nova legislação afetará os direitos dos trabalhadores. “A lei tem várias incoerências. Prevê a possibilidade de ajuste de jornada normal de 12 horas, mediante acordo individual e privilegia a negociação coletiva, inclusive dizendo no art. 8º que o juiz não deve examinar senão os requisitos formais dos ajustes coletivos. Quando trata do que pode ser negociado, porém, no art. 611A, dispõe que é possível negociação de jornada ‘observados os limites constitucionais’. Ora, se a negociação coletiva, mais importante do que o ajuste individual, tem que observar o limite constitucional e o limite é de 8 horas por dia, evidentemente nem norma coletiva nem ajuste individual poderão prever jornada normal de 12 horas, como refere o art. 59A, inserido pela ‘reforma’”, adverte.

Na avaliação da juíza, a nova reforma trabalhista “é uma compilação confusa do que há de pior em súmulas do Tribunal Superior do Trabalho – TST, de entendimentos minoritários já professados no âmbito das relações de trabalho judicializadas, e de teses apresentadas nas defesas de grandes grupos empresariais. Sem dúvida é parte de um movimento maior, em que a PEC 287 (sobre a previdência) e a terrível PEC 95 também estão inseridas”.

Valdete Severo. Fotografia: Femargs
Valdete Severo. Fotografia: Femargs

Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo – USP e mestra em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Atualmente é juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região e leciona na Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS – FEMARGS. Também é integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da USP e da Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social – RENAPEDTS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em relação às mudanças na reforma trabalhista, quais são as alterações mais importantes que devem ser conhecidas pelos trabalhadores em relação à legislação anterior?

Valdete Souto Severo – São tantas, que é difícil apontar as mais relevantes. Todas são ruins e todas afetam gravemente a vida dos trabalhadores e trabalhadoras. No âmbito do direito material, temos as possibilidades de contratação precária, como intermitente, temporário, autônomo exclusivo; a possibilidade de jornada de 12 horas por acordo individual e com supressão do intervalo; e as regras sobre despedida, permitindo que o trabalhador inclusive renuncie a todos os demais direitos, se aderir a plano de demissão voluntária. Há, ainda, o tal termo de quitação anual, que talvez na prática não seja utilizado, mas é também uma tentativa de suprimir o acesso à justiça. Houve alterações quanto ao salário, prevendo, entre outras coisas, a possibilidade de pagamento de prêmio como se fosse indenização.

No âmbito coletivo, a supressão do chamado “imposto” sindical é talvez a alteração menos grave. A possibilidade de criar norma coletiva suprimindo direitos, a previsão de uma representação de empregados no âmbito da empresa como forma de esvaziamento da atuação sindical, a regra de que o acordo sempre prevalece sobre a convenção, são exemplos de regras nocivas à organização coletiva dos trabalhadores e trabalhadoras.

No aspecto processual, a “reforma” tenta vedar o acesso à justiça, criando ônus para as trabalhadoras e os trabalhadores, mesmo que beneficiários da gratuidade da justiça. Altera regras processuais em evidente “proteção” ao empregador e, portanto, subversão da razão de existência do processo do trabalho e da Justiça do Trabalho.

IHU On-Line – Entre as discussões em torno da reforma trabalhista, alguns juristas argumentam que ela fere direitos fundamentais do trabalhador, assegurados na Constituição. Quais direitos constitucionais são ameaçados pela nova reforma?

Valdete Souto Severo – Praticamente todos, porque ao vedar o acesso à justiça, as novas regras estimulam o desrespeito a todos os direitos trabalhistas que, diga-se de passagem, já são praticamente impossíveis de serem exigidos no âmbito da relação de trabalho, na medida em que não reconhecemos o dever de motivação da despedida, embora previsto expressamente no art. 7º, inciso I, da Constituição. Há autorização para a supressão expressa de alguns direitos, como o limite de 8 horas por dia de trabalho, e outros são suprimidos de forma disfarçada, como no caso do trabalhador intermitente, em que a lei diz que ele tem direito às férias, ou seja, a não ser chamado pelo empregador um mês por ano. Só que se o trabalhador intermitente não é chamado, também não recebe. Então o direito às férias figurará como um não direito. Do mesmo modo, o terceirizado, cuja empresa prestadora geralmente não funciona mais do que dois anos (ou os contratos têm esse prazo de vigência), tem o direito às férias previsto em lei mas não consegue fruí-lo porque o empregador formal se altera a cada dois anos, iniciando supostamente um novo contrato e, portanto, recebe férias na falsa rescisão, mas não frui o descanso anual previsto na Constituição.

IHU On-Line – Pode nos dar exemplos de incoerências legais geradas pela reforma trabalhista?

Valdete Souto Severo – A lei tem várias incoerências. Prevê a possibilidade de ajuste de jornada normal de 12 horas, mediante acordo individual e privilegia a negociação coletiva, inclusive dizendo no art. 8º que o juiz não deve examinar senão os requisitos formais dos ajustes coletivos. Quando trata do que pode ser negociado, porém, no art. 611A, dispõe que é possível negociação de jornada “observados os limites constitucionais”. Ora, se a negociação coletiva, mais importante do que o ajuste individual, tem que observar o limite constitucional e o limite é de 8h por dia, evidentemente nem norma coletiva nem ajuste individual poderão prever jornada normal de 12 horas, como refere o art. 59A, inserido pela “reforma”.

Outra incoerência está na previsão do art. 442-B, que estabelece a possibilidade de contratação do autônomo, o que já é uma contradição, pois a CLT regula a relação entre empregado e empregador, portanto, a relação subordinada e não autônoma. Além disso, esse dispositivo refere que a contratação do autônomo deve observar “todas as formalidades legais’, mas não diz que formalidades são essas. E ainda acrescenta que a contratação pode ser “com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não”. Ora, contratar alguém com exclusividade, de forma contínua, para trabalhar por conta alheia, é vínculo de emprego. Logo, a previsão de que isso afastará a “qualidade de empregado” não tem efeito algum, na medida em que a redação do caput do art. 2º, que define a figura do empregador, e do art. 3º, que define empregado, mantiveram-se inalteradas.

IHU On-Line – Como você menciona, um dos pontos de mudanças é que agora será permitido que os acordos coletivos se sobreponham à lei. Considerando as negociações que já ocorrem hoje, que tipos de acordo devem ser mais recorrentes no sentido de se sobreporem à lei e quais devem ser as possíveis implicações jurídicas disso?

Valdete Souto Severo – A questão aqui, como de resto em toda a “reforma”, é que essa sobreposição só será válida se forem respeitados todos os direitos previstos em lei. Independentemente do que diz a CLT alterada pela Lei 13.467, o fato é que o caput do artigo sétimo da Constituição estabelece direitos mínimos, “além de outros que visem a melhoria da condição social” dos trabalhadores e trabalhadoras. Esse é e sempre foi o limite da chamada “negociação” coletiva. A jurisprudência trabalhista, que tem ampla responsabilidade pelo desmanche produzido na legislação trabalhista, vinha aceitando acordos e convenções em que há renúncia a direitos fundamentais. E é exatamente isso que os reformadores pretendem que siga ocorrendo. Logo, é preciso urgentemente criar uma racionalidade de leitura constitucional da legislação vigente, a fim de que essa suposta permissão não seja praticada para o efeito de transformar o sindicato em um meio de retirada de direitos constitucionalmente assegurados.

IHU On-Line – Outro ponto polêmico da reforma é o fim do acesso à gratuidade judiciária. Quais devem ser e já estão sendo as implicações práticas disso para o trabalhador?

Valdete Souto Severo – Essa é, sem dúvida, a parte mais perversa e nociva da chamada “reforma” trabalhista. O princípio de acesso à justiça, decorrência lógica do monopólio da jurisdição, que está positivado em pelo menos dois momentos, na parte dos direitos fundamentais da Constituição de 1988: no artigo 5o, XXXV, e no art. 7o, XXIX, não impediu os autores da “reforma” de esvaziarem completamente a noção de gratuidade da justiça.
Instituição da Justiça do Trabalho

Na exposição de motivos do Decreto 1.237, em 2 de maio de 1939, que institui a Justiça do Trabalho, elaborado por uma comissão liderada por Oliveira Vianna, lê-se que a “repugnancia em reconhecer-se nos tribunaes do trabalho instituições judiciarias” decorria da “sobrevivencia deste velho pressuposto liberal — de que os conflictos do trabalho não interessam ao Estado”. Entretanto, a reação “contra a lentidão, a complexidade e o formalismo do processo commum” impunha, segundo os autores do projeto, a necessidade de criação de um processo do trabalho, ditado pela oralidade, pela concentração e pela simplicidade. Portanto, a aposta na Justiça do Trabalho como ambiente ideal para “harmonizar os interesses em lucta”, “em defesa da autoridade do Estado, que não pôde ser neutro, nem abstencionista, deante das perturbações collectivas, deixando as forças sociaes entregues aos proprios impulsos” é não apenas uma resposta às lutas da classe trabalhadora já organizada, como também efeito da necessidade de organização do próprio capital. E seu pressuposto é justamente a facilitação do acesso à justiça àqueles que não têm espaço para deduzir suas pretensões na chamada “justiça comum”.

Esse texto sintetiza todo o paradoxo que caracteriza a existência do Poder Judiciário Trabalhista. Há um conflito entre capital e trabalho que, sabemos, é ditado pela dominação e pelo assujeitamento. O Estado reconhece o perigo disso. Ao assumir a responsabilidade por harmonizar os interesses em luta, porém, não o faz reconhecendo para si uma função transformadora, que adote claramente o lugar de fala da classe trabalhadora e, com isso, consolide-se como um espaço de resistência. Ao contrário, declara que a intervenção se dá “em defesa da autoridade do Estado”. Portanto, em defesa do capital, de quem o Estado é nada mais do que forma política. Ainda assim, reconhece a impossibilidade de uma justiça trabalhista “neutra diante das perturbações coletivas”. Ou seja, reconhece a necessidade de, em alguma medida, assumir uma ideologia contrária àquela que justifica a própria existência do Direito e do Poder Judiciário, tornando-se um núcleo de proteção dos “dominados”.

Justiça do Trabalho como alvo de ataques

Não é por razão diversa que a existência da Justiça do Trabalho sempre foi alvo de ataques. Os defensores da “reforma” tentam promover o esvaziamento da gratuidade da justiça, com a fixação de honorários de sucumbência, pagamento de imposto de renda, INSS e honorários para o advogado do reclamante, mesmo para quem detém o direito à gratuidade da justiça. O verdadeiro objetivo do esvaziamento da gratuidade e da fixação de sucumbência recíproca é acabar com “a farra” do acesso à justiça, ou seja, da busca pelo reconhecimento e reparação das lesões a direitos fundamentais. A gratuidade da justiça constitui elemento de cidadania, que inclusive justifica a existência da Justiça do Trabalho. Trata-se de permitir acesso à justiça a quem não tem condições financeiras para isso. Tornar a gratuidade da justiça menos garantista na Justiça do Trabalho, em relação às outras searas do direito, é tornar o trabalhador um cidadão de segunda classe, estimular o descumprimento de direitos fundamentais, fomentar o assédio no ambiente de trabalho.

É preciso pontuar, ainda, o grande esforço hermenêutico que a aplicação dessas regras exigirá dos juízes e juízas. Isso porque a Constituição estabelece o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV). E integral, segundo o dicionário, é aquilo que não sofre diminuição ou restrição; é total, completo. Logo, a assistência judiciária gratuita só será integral quando for total, completa. É até estranho ter que argumentar o óbvio, mas bem sabemos da necessidade de fazê-lo, especialmente em tempos de exceção, como o que vivemos atualmente no Brasil. É evidente que nada disso altera a principal discussão deste artigo: ainda que houvesse previsão legal para a fixação de honorários de sucumbência a serem suportados pelo trabalhador ou trabalhadora, nos casos de improcedência (o que não há), ou que fosse possível exigir pagamento de honorários de perito do beneficiário da justiça gratuita sem ferir de morte a Constituição, não se sustentaria o discurso ameaçador que busca forçar a parte a desistir da causa, sob o argumento de que haverá a tal condenação.

Portanto, mesmo reconhecendo a possibilidade de aplicação desses dispositivos, nada justifica que sejam eles utilizados como argumento de terror durante audiências trabalhistas. O clima de ameaça compromete a possibilidade de convívio saudável entre os atores do processo. Juízes, juízas, advogados e advogadas exercem funções que se complementam. Profissões que não existiriam, uma sem a outra. E a audiência é talvez o momento mais importante do processo, em que não apenas esses atores estabelecem o diálogo direto, mas também as partes, pela primeira vez, tomam contato com o Poder Judiciário e ficam frente a frente uma da outra, em situação de paridade. Se para os juízes ou advogados as audiências se multiplicam no dia ou na semana, para as partes muitas vezes ela é única. Via de regra, os trabalhadores apostam muito alto em suas demandas, pois ali deduzem pretensões econômicas, mas também afetos, mágoas, diálogos interrompidos.

IHU On-Line – Como a Justiça do Trabalho está tratando, a partir de agora, as reclamatórias trabalhistas encaminhadas antes de 11 de novembro do ano passado? Com a não votação da MP 808, ainda há risco de insegurança jurídica?

Valdete Souto Severo – Há total insegurança jurídica em razão das Leis 13.429 e 13.467. A MP 808 não resolvia isso. A MP 808 nada mais é do que o atestado de que a “reforma” trabalhista foi feita de modo açodado, sem discussão com as entidades representantes das categorias profissionais e econômicas, sem correspondência com os anseios da sociedade e sem técnica legislativa. O texto é tão ruim, que apenas três dias depois de entrar em vigor foi remendado por uma MP que altera, entre artigos e incisos, 87 dispositivos da lei recém aprovada! E que, evidentemente, não corrige os equívocos da lei. Ao contrário, aumenta ainda mais a confusão que resulta de um amontoado de regras contrárias ao sistema de proteção constitucional trabalhista. A MP sequer poderia versar sobre a aplicação da lei no tempo. Logo, nada muda com a sua perda de vigência.

IHU On-Line – Os tipos de trabalho mudaram muito desde a promulgação da CLT, em 1943, e hoje as atividades trabalhistas são modificadas por conta das tecnologias, das demandas das empresas, as pessoas trabalham em turnos variados etc. Considerando esse quadro, que tipo de legislação seria adequado para dar conta das mudanças no mundo do trabalho, ou mesmo da realidade do mercado de trabalho brasileiro?

Valdete Souto Severo – No momento atual, o ideal seria a pura e simples revogação das Leis 13.429 e 13.467, até porque nenhuma delas contribui para o trato de questões que decorrem das novas tecnologias. Basta ver que ao regular o teletrabalho, a “reforma” não protege de modo diferenciado esse trabalhador, cuja perda da possibilidade de desconexão é um dos maiores fatores de adoecimento laboral nos últimos tempos. Preocupa-se exclusivamente em retirar dele o direito ao pagamento de horas extras, introduzindo mais uma hipótese no inconstitucional art. 62, e em dizer que ele poderá ter que arcar inclusive com os custos do trabalho. O momento não é de apostar em novas leis. Já temos leis demais no país. A lei do motorista, por exemplo, traz a novidade de que o trabalhador poderá ter seu horário controlado por um método supertecnológico: a papeleta.

O que estou tentando evidenciar com isso é que a legislação que tínhamos, com todos os seus problemas, como a previsão de justa causa com consequências absolutamente diversas e mais nocivas para o empregado do que para o empregador, era bem melhor, inclusive para dar conta da realidade das relações de trabalho no mundo contemporâneo, do que essa colcha de retalhos mal-intencionada, mal redigida e avessa à proteção, que é a tal “reforma” trabalhista.

IHU On-Line – Como a reforma trabalhista tem sido discutida dentro do Judiciário?

Valdete Souto Severo – Tem sido discutida tanto em encontros acadêmicos, quanto na realidade dos processos. Nesses, poucas questões já apareceram, pois as demandas que estão sendo julgadas ainda são aquelas propostas antes da entrada em vigor da Lei 13.467, ou relativas a contratos que ocorreram em período no qual a lei ainda não estava vigente. Existe uma resistência importante, dentro da magistratura trabalhista, que percebe com nitidez as incoerências, a má técnica e a perversidade da chamada “reforma”. É claro que alguns juízes e juízas estão aplicando as alterações inseridas na CLT, e inclusive têm suas decisões amplamente divulgadas por uma mídia nitidamente aliada ao capital financeiro, único que realmente poderá (e já está) extrair benefícios dessas alterações legais, mas a verdade é que uma parcela importante dos intérpretes aplicadores do Direito percebe o que a “reforma” objetiva (o fim da Justiça do Trabalho e, com ela, do Direito do Trabalho) e tem criado ambientes de discussão e construído uma racionalidade comprometida com os parâmetros constitucionais de regulação da relação entre capital e trabalho.

Basta ver o resultado da II Jornada de Direito Material e Processual realizada pela ANAMATRA. Nela foram aprovados alguns enunciados importantes para esse filtro constitucional e convencional (baseado no cotejo das regras com convenções e recomendações da OIT e pactos internacionais sobre direitos humanos firmados pelo país) das leis 13.429 e 13.467. Não concordo com essa ânsia na criação de verbetes, que parece contaminar a forma como o Judiciário lida com o ordenamento jurídico, mas não posso deixar de ressaltar a importância dessa II Jornada.

IHU On-Line – O governo Temer tem recebido críticas de uma parte da sociedade por conta da reforma trabalhista, da reforma da Previdência e da PEC do Teto. Como você avalia a articulação dessas três medidas? Do ponto de vista do Estado, ou de um modelo de Estado que o governo Temer propõe, o que elas significam?

Valdete Souto Severo – A “reforma” trabalhista representada especialmente pelas Leis 13.429/17 e 13.467/17 é uma compilação confusa do que há de pior em súmulas do Tribunal Superior do Trabalho – TST, de entendimentos minoritários já professados no âmbito das relações de trabalho judicializadas, e de teses apresentadas nas defesas de grandes grupos empresariais. Sem dúvida é parte de um movimento maior, em que a PEC 287 (sobre a previdência) e a terrível PEC 95 também estão inseridas. Trata-se do resultado de um processo de exceção que não se inicia, mas se aguça fortemente com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e que se torna possível tanto pelo revanchismo da “Casa Grande”, em resposta à inclusão social promovida nos últimos anos no Brasil, quanto pelo movimento cíclico de um sistema que não é feito para todos, que se alimenta da destruição dos recursos naturais, que se move de modo predatório e que se baseia na acumulação de riquezas nas mãos de poucos.

A “reforma”, portanto, reflete uma deliberada vontade de promover a maior destruição de direitos sociais trabalhistas que já experimentamos por aqui. A crise do capital é cíclica e decorre de circunstâncias que são objetivamente produzidas pelo próprio sistema — como o desemprego, a concentração de renda, o esgotamento de recursos naturais etc. Por sua vez, os direitos sociais, notadamente os trabalhistas, constituem algo “penosamente arrancado do capital”, como escreveu Marx, algo com o que o capitalismo lida de forma tensa. Direitos sociais em uma lógica capitalista de meritocracia e acumulação de riquezas, em uma realidade na qual as oportunidades não são e nunca serão para todos e todas, constituem uma concessão que só é possível na medida em que não comprometa demais essa ordem excludente. É por isso que a história dos direitos sociais e, bem assim do Direito do Trabalho, é uma história de avanços e retrocessos.

Os direitos sociais já foram considerados mecanismo de auxílio para o enfrentamento de crise econômica, como no caso da criação da OIT em 1919 ou do New Deal em 1929, mas também já foram considerados, como hoje, culpados dessas consequências objetivas da nossa escolha de convívio social. A “reforma” realizada, e aquelas pretendidas, como a “reforma” da Previdência ou a PEC 300, dialogam diretamente com a lógica de exceção que permite a Michel Temer a edição de um Decreto determinando a intervenção militar, sob o disfarce de intervenção federal, no Rio de Janeiro. O Decreto assinado dia 16/2/2018, já foi aprovado tanto pela Câmara quanto pelo Senado, no dia 20/2/2018, e pretende a pacificação através da ocupação militar. Como na música dos Engenheiros do Hawaii, “a história se repete mas a força deixa a história mal contada”. Sabemos que capitalismo e democracia não são indissociáveis. A história do capital nos últimos séculos tem oscilado entre períodos de maior abertura democrática, em que a luta pela liberdade efetiva e pela melhor distribuição de bens ganha espaço, e períodos de avanço do discurso fascista, que é um discurso concentrador, inimigo das liberdades e, por consequência, das garantias sociais.

O mundo ocidental, infelizmente, por uma série de razões que não há como serem aqui explicitadas, enfrenta uma fase conservadora, algo que não se reflete apenas nas “reformas”, mas também na forma de governar e na escolha de governantes em países de diferentes tradições históricas; nas políticas de intolerância para com as diferenças, entre tantos outros exemplos. Já passamos por isso, mas é evidente que quanto mais avançamos no tempo sob a mesma forma de organização social, quanto mais aumentamos como número de seres humanos sobre a Terra, quanto menos recursos naturais e áreas de exploração temos ao nosso dispor, pior fica.

No caso do Brasil, pesa também o fato de sermos um país de tradição escravista e colonialista, que ainda funciona na lógica da relação senhor/escravo, na qual os direitos sociais nunca foram realmente respeitados. Basta ver a nossa dificuldade em efetivar direitos que estão há décadas na Constituição, como é o caso da garantia contra despedida arbitrária. Temos uma cultura de que o trabalhador “ganha emprego” e o empregador “dá trabalho”. É difícil lidar com o senso comum (ideologia) que habita as relações sociais. Mesmo os trabalhadores e trabalhadoras muitas vezes acabam reproduzindo o discurso de que são gratos ao seu empregador, como se não estivessem vendendo tempo de vida por remuneração, inclusive pela absoluta impossibilidade de sobreviver de outro modo em um sistema capitalista de produção.

Ruptura

Para que se compreenda o espectro simbólico dessas “reformas” e sua íntima relação com o momento de exceção em que vivemos, basta pensar que nenhuma campanha eleitoral as defendeu em 2014. A intervenção militar, o recrudescimento ainda maior do espectro punitivo do Estado, a supressão de direitos e liberdades individuais estiveram presentes nos discursos de alguns parlamentares. A desfiguração da CLT e o desmonte do sistema de seguridade social, não. Apenas com a ruptura democrática operada em 2016, tais “reformas” entraram em pauta, de modo agressivo, e com uma velocidade impressionante. Bem ou mal, desde que promovemos (de modo conciliado, é verdade) a abertura democrática após os anos de chumbo da ditadura civil-militar, sabíamos quais eram as regras do jogo democrático. Não havia possibilidade concreta de retirada ostensiva de direitos sociais, porque sequer havíamos alcançado o que se costuma chamar de “patamar mínimo civilizatório”.

É verdade que a efetividade da Constituição foi negada de inúmeras formas, seja pelo parlamento, seja pelo Executivo e até mesmo pelo Poder Judiciário, encarregado de defendê-la. Havia, porém, um limite e um certo receio de investir contra os pilares das garantias sociais. Também é verdade que as poucas conquistas auferidas durante a última década e meia no Brasil endereçaram-se a uma espécie de inclusão por renda, sem que tenhamos conseguindo alterar as bases e a qualidade da estrutura pública de educação, saúde, moradia, e sem que conseguíssemos fazer valer integralmente a Constituição de 1988, no que tange ao sistema de proteção ao trabalho. Ainda assim, havia uma espécie de consenso, retratado no texto da Constituição, acerca da necessidade de avanços.

O golpe parlamentar perpetrado em 2016 promoveu uma ruptura desse diálogo de consenso que, se em grande medida era apenas simbólico, exercia na prática uma contenção importante contra o avanço liberal. A partir da ruptura, tudo passou a ser permitido. As regras do jogo são constantemente alteradas sem que haja preocupação em fingir que seguimos respeitando-as. O que vale para alguns não vale para outros. O parlamento — o mais conservador de todos os tempos no país, segundo pesquisa oficial — aprovou a “reforma” trabalhista em dois meses, de modo sorrateiro, mudando um projeto original que tinha poucos artigos, votando a portas fechadas em troca de vantagens e privilégios, em uma tramitação relâmpago e completamente de costas para a vontade social. Foi mais ou menos como se a cortina caísse e nos deparássemos com uma realidade completamente diferente daquela que até então enxergávamos.

Obviamente essa realidade já estava lá, há muito tempo, e tem estreita relação com a herança escravista que mencionei antes e com o movimento de recrudescimento da repressão estatal que ganhou forças especialmente a partir de 2013. A questão é que o disfarce, que em alguma medida se materializava em práticas de contenção da lógica destruidora do capital, foi eliminado. Agora, temos um governo que financia campanha mentirosa em favor da “reforma” da Previdência, aprova portaria que praticamente autoriza trabalho em situação de escravidão e propõe, sem que a situação fática do Rio de Janeiro tenha se alterado de forma substancial recentemente, uma intervenção militar em ano eleitoral. O pior é que esse governo conta com o beneplácito de um parlamento que não apenas aprova a intervenção em um dia, sem qualquer discussão com a sociedade, mas também pretende criminalizar o aborto; reduzir a maioridade penal; privatizar presídios; instituir a “cura gay”; rifar nossos recursos naturais; acabar com a proteção às terras indígenas; permitir que a população utilize armas de fogo; intensificar o poder das Polícias Militares, entre outros projetos de lei que tramitam em nosso Congresso Nacional.

Os problemas reais e a falência do Estado

O problema real, traduzido numa completa falência do Estado, não será resolvido com soluções que apenas irão gerar mais exclusão social e miséria. Já temos presídios suficientes; nossos presos e presas estão amontoados como bichos, vivendo em condições subumanas, num ambiente que apenas produz mais e mais violência. Enquanto não enfrentarmos as causas da violência urbana, e bem sabemos que elas passam por uma séria discussão acerca do sistema de convívio social que adotamos, medidas como a proposta por Michel Temer apenas agravarão ainda mais nossos problemas sociais.

IHU On-Line – O que está em jogo na discussão que tem sido feita hoje no Brasil sobre a Justiça do Trabalho? Qual é a importância e o sentido de se ter uma Justiça do Trabalho?

Valdete Souto Severo – A Justiça do Trabalho é o ambiente em que as normas fundamentais de proteção ao trabalho encontram espaço para serem exigidas, para serem respeitadas. Suprimir esse espaço ou torná-lo ameaçador é retirar dos trabalhadores e trabalhadoras a possibilidade de exercício de sua cidadania, de exigência do respeito às normas constitucionais. Não há dúvida de que atualmente a Justiça do Trabalho, como o Poder Judiciário em geral, sente o peso que a pressão pelo cumprimento de metas impõe à estrutura judiciária. E, em nosso caso, com um ingrediente especial: somos a Justiça dos ex-empregados. Grande parte das trabalhadoras e dos trabalhadores que propõem demandas trabalhistas já perderam o posto de trabalho. A urgência no provimento de suas pretensões é evidente e promove um constante conflito interno em quem advoga ou julga. Estamos sempre correndo contra o tempo, com uma quantidade invencível de demandas. Isso, porém, não justifica promover constrangimentos ou ameaças, buscando afastar o litígio do crivo do Poder Judiciário, sem resolvê-lo. Ao contrário, assim agindo, estaremos negando nossa razão de existência.

A Justiça do Trabalho serve à estabilização da sociedade dentro dos padrões do capitalismo, portanto, uma lógica assediadora serve apenas para esvaziar — por dentro — sua funcionalidade. Para que todos exerçamos nosso mister cumprindo a função constitucional de dar efetividade ao cumprimento de direitos fundamentais trabalhistas é indispensável a criação de um ambiente de respeito, urbanidade e mútuo auxílio. Isso pressupõe o reconhecimento da independência de cada um dos atores do processo. A fragilização dessa independência ocorre dentro do próprio Poder Judiciário Trabalhista, quando práticas assediadoras, seja para a realização de acordos, seja para a desistência de pretensões, tornam-se lugar comum. Os relatos insistentes de ameaças nada veladas a trabalhadores e testemunhas, durante as audiências, é um péssimo indicativo de que estamos perdendo esse parâmetro de convívio saudável. E o resultado disso é o aumento do estresse, da litigiosidade e do conflito entre advogados e juízes que, repetimos, tem suas funções necessariamente imbricadas e atuam para uma finalidade comum: a realização da tutela jurisdicional.

O respeito aos diferentes entendimentos jurídicos que se formam a partir das alterações impostas à legislação trabalhista não impede o convívio saudável em audiência. E certamente não autorizam atitudes agressivas, ameaçadoras, desrespeitosas, que sirvam para constranger trabalhadores a renunciar a direitos dos quais creem ser titulares. O exercício da independência da magistratura e da advocacia está diretamente relacionado ao respeito às suas prerrogativas, como também à estrutura judiciária e, sobretudo, à constante troca de ideias, entre esses atores da jurisdição, desde a perspectiva de que estamos todos do mesmo lado.

IHU On-Line – A senhora tem acompanhado as mudanças trabalhistas que ocorrem também na Itália e na França. Que comparações estabelece entre as propostas desses dois países e a reforma brasileira?

Valdete Souto Severo – É difícil estabelecer comparações, embora algumas alterações sejam similares, como a fragilização das regras de proteção sobre a despedida e o contrato intermitente. Precisamos considerar, porém, o fato de que nesses dois países houve a realização de um Estado de bem-estar social, o que não ocorreu no Brasil. Lá havia, por exemplo, direito à estabilidade e embora a “reforma” tenha fragilizado a situação dos trabalhadores, criando contratos precários e retirando a estabilidade de alguns trabalhadores, segue existindo um conjunto de proteção, retratado, por exemplo, no dever de motivar a despedida, que tornam a situação tanto da França quanto da Itália incomparáveis com a do Brasil.

IHU On-Line – No dia primeiro de maio celebrou-se o dia do trabalhador, uma data simbólica de reafirmação dos direitos dos trabalhadores. Do ponto de vista jurídico, que reflexões a senhora faz acerca dessa data? O que é possível comemorar e, de outro lado, quais sãos os desafios do Brasil nesse sentido?

Valdete Souto Severo – O primeiro de maio é um dia de luta coletiva dos trabalhadores e trabalhadoras, daí sua importância em nível mundial. Em 2018, após o desmanche promovido ano passado e diante da evidente escalada de pensamentos fascistas, intolerantes e contrários a direitos humanos, parece-me que o maior desafio é manter a nossa frágil democracia. É disso que também a “reforma” trabalhista realmente se ocupa. A democracia, embora tolerada em alguns períodos de nossa história, sempre lidou com a resistência do capital. E faz muito tempo que o Brasil não respeita suas instituições. As regras do jogo foram quebradas ainda antes do afastamento de Dilma e nada é mais sintomático dessa realidade do que o voto de uma ministra do STF, fundamentado no inexistente “princípio da colegialidade”, para tornar majoritário um posicionamento que, sem o referido voto, seria vencido.

No campo jurídico, não é mais o Direito o parâmetro para as decisões. Enquanto os defensores da “reforma” trabalhista bradam contra a possibilidade de interpretação judicial, reivindicando juízes “boca da lei”, que se limitem a reproduzir o texto da 13.467, com todas as inconstitucionalidades que ele possui, a livre interpretação da Constituição é a saída para tratar desigualmente situações iguais. Basta comparar os votos proferidos no Recurso Especial Eleitoral 12486-27.2009.6.20.0000/RN e no Habeas Corpus proposto por Lula, pela mesma julgadora. A denúncia de Lenio Streck se confirma, estamos pagando o preço de um ativismo descomprometido com a Constituição.

O problema, porém, não é o ativismo judicial, pois como ensinava Ovídio Baptista da Silva, ainda no século passado, Direito é linguagem, é cultura e, portanto, lidará sempre com discussões acerca dos limites de sua aplicação/interpretação. Os juízes jamais serão “boca da lei” ou “boca da súmula”, e de nada serve um artigo oitavo da CLT ou regras do CPC determinando isso. A questão passa, portanto, por compreender que abraçamos a exceção quando, a partir de 1988, permitimos um processo de desmanche dos direitos e garantias previstos na Constituição. As súmulas do TST, transformadas em regras pela dita “reforma” são exemplo disso. Há tempo estamos desconstruindo nosso incipiente Estado de Direito, apenas chegamos agora a um momento em que não há mais como negar essa realidade. O caráter ideológico das “reformas” tem componentes complexos. Passa tanto pela crença sincera de alguns, de que as alterações irão dinamizar as relações de trabalho, gerar empregos e aumentar a competitividade; quanto pelo ódio de classe que não suporta a inclusão social (por renda e consumo, é verdade) produzida nos últimos anos no Brasil e que tem raízes em nossa herança escravista; quanto, ainda, por um propósito objetivo de destruir o mercado interno, impedindo a competição em patamares mínimos de igualdade, entre pequenos empreendedores e grandes grupos econômicos.

Falsas soluções para problemas reais

A crença sincera decorre de um recurso ideológico muito utilizado: apresentar falsas soluções para problemas reais. Ora, todos sabemos que há desemprego estrutural no país ou que sem sindicatos fortes não há resistência possível no embate entre capital e trabalho. A questão é que nenhum dos efeitos pretendidos foi ou será alcançado, em razão das alterações introduzidas na CLT pela Lei 13.467/2017. Não há nem haverá aumento de emprego, de competitividade ou de autonomia coletiva. Isso não ocorreu nos países que antes de nós se submeteram a essa investida liberal, e não ocorrerá aqui. A razão é simples: aumento de jornada reduz o número de trabalhadores e trabalhadoras necessários para realizar determina função e aumenta episódios de afastamento por doença e acidente de trabalho; trabalhos precários e sub-remunerados impedem concretamente o consumo; sindicatos acuados são o exato contrário de sindicatos fortes. Pior do que a impossibilidade concreta de que as alterações legais resultem os objetivos declarados por seus defensores, é o fato de que a perda da capacidade de resistência dos trabalhadores e trabalhadoras, que parece ser a consequência natural desse desmanche, também não serve, nem mesmo para o capital.

O conflito entre capital e trabalho não é criado pelo Direito, quando reconhece a greve como fato jurídico relevante, estabelece direitos trabalhistas ou disciplina a atividade sindical. O Estado apenas curva-se à necessidade de regulação de fenômenos sociais e o faz com objetivos muito claros. Reconhecer o direito de greve, por exemplo, é também adaptá-lo à realidade da sociedade capitalista, impedindo-o de assumir sua verdadeira função de agente da ruptura. Do mesmo modo, quando disciplina a atividade sindical, o Estado age para conter a tensão entre trabalhadores e tomadores de trabalho. Tensão objetiva, que decorre do fato de que o trabalho não é apenas meio de realização pessoal e social, mas também fonte de subsistência, em uma lógica social em que não há trabalho para todos e todas.

O Estado se imiscui nas relações entre trabalho e capital, regulando tempo de trabalho, salário mínimo, possibilidade de organização sindical, greve, para:

a) conter a crescente insatisfação dos trabalhadores e trabalhadoras que, miseráveis e marginalizados, não suportavam mais tais condições e agiam tencionando a ordem vigente;

b) permitir que o sistema capitalista seguisse se desenvolvendo, na medida em que tais direitos passaram a conter o conflito e, ao mesmo tempo, garantir a possibilidade de consumo e, portanto, de circulação de riquezas, elemento básico de nossa forma de organização social;

c) promover uma concorrência minimamente equilibrada entre grandes e pequenos empreendedores.

O Direito do Trabalho serve, portanto, ao sistema do capital. Transformá-lo em direito empresarial (é isso que a Lei 13.467/2017 pretende fazer) é aguçar elementos de tensão que seguem presentes, e que seguirão presentes enquanto não alterarmos nossa forma de organização social. O resultado é a ausência de limites à concorrência, de sorte a aniquilar nossa economia interna, formada basicamente por pequenos e médios empreendedores, que são aqueles que efetivamente empregam no Brasil. É também a perda do poder de consumo, que concretamente fará (já está fazendo) com que lojas, minimercados e outros empreendimentos menores fechem suas portas.

A ausência de trabalho decente, a insegurança acerca do vínculo e da remuneração, são, ainda, fatores que contribuem para o aumento da violência urbana. Ou seja, o resultado é uma sociedade pior para todos e todas. Podemos escolher acreditar nos que insistem em nos repetir todos os dias que a economia do Brasil está melhorando e que, portanto, as “reformas” são positivas. Mas para isso, precisaremos fechar os olhos para o número cada vez maior de pessoas morando em nossas ruas, para as salas comerciais fechadas, os prédios com anúncio de venda que se multiplicam nas grandes cidades. A intervenção militar promovida no RJ dialoga diretamente com a ideologia por trás das “reformas”, pois seu principal objetivo é desvincular o aumento da violência urbana à evidente falência do Estado, pela ausência de educação, saúde, moradia e trabalho decente. Para que não reste dúvida de que se trata de discurso que mal disfarça as causas do problema real da falência do Estado, basta perceber que o atual governo, após ter gastado mais de R$ 153 milhões nos últimos meses com propagandas em favor da “reforma” da Previdência, ao verificar a impossibilidade de aprovação da PEC 287, promoveu uma intervenção militar que impede a sua votação.

Então, o que até a semana passada era indispensável para que enfrentássemos a crise econômica, condição para que o país retomasse o curso de desenvolvimento (a chamada “reforma” previdenciária) simplesmente não importa mais. Até dezembro, a proposta, em favor da qual o governo empenhou mais de R$ 153 milhões de reais dos cofres públicos de acordo com a mídia, sequer poderá ser submetida à votação. Nada mais emblemático: todo o discurso de que a “reforma” da Previdência seria a nossa única saída é deixado de lado em nome da segurança, em uma clara tentativa de reeditar experiência que já vivemos (e que bem sabemos o que resultou), fazendo crer que a miséria e a exclusão social se resolvem pelo extermínio de pretos e pobres. Novamente, utiliza-se de um problema real (a violência e a completa falência do Estado) para propor falsas soluções. Com isso, toda a miséria e violência que o desmanche de direitos sociais concretamente está provocando passa a ser tratada como caso de polícia. E quando já estivermos convencidos de que nossa liberdade pode ser sacrificada em nome de uma segurança que também não virá, poderá ser tarde demais para reagir.

Então, a grande reflexão a ser feita neste Primeiro de Maio diz respeito ao tipo de sociedade em que pretendemos viver, que legado queremos deixar para nossos filhos e netos. Ainda temos a Constituição, que nos garante liberdade, independência para julgar e direitos, que precisam ser respeitados. Não podemos nos render ao medo. Já vivemos uma intervenção militar, já aprendemos, com dor e sofrimento, o custo da completa ruptura democrática. Sabemos o que significa perder o direito de eleger nossos representantes. Sabemos o que significa, concretamente, uma intervenção militar. É improvável que queiramos repetir essa experiência. É inaceitável que o medo nos paralise agora, mesmo diante do desmanche já promovido em nossa legislação social. Não existe situação irreversível, enquanto estivermos vivos.

2018 é um ano de eleições. Temos o direito de eleger nossos representantes, em um pleito eleitoral em que os candidatos não estejam previamente determinados ou vetados. Temos o direito a julgamentos livres de pressão midiática, militar ou de qualquer espécie. Então, que o medo não nos paralise, mas nos fortaleça na luta necessária pelo retorno de uma lógica democrática e inclusiva em nosso país. Parece-me que essa deve ser nossa reflexão neste Primeiro de Maio.

Fonte: IHU On-Line
Texto: Patricia Fachin
Data original da publicação: 03/05/2018

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