Empresas dos EUA gastam bilhões de dólares com ações trabalhistas

Apesar de legislação mais flexível, custo com disputas laborais é astronômico.

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 09/12/2019

Reformadores da legislação trabalhista brasileira costumam apontar para o modelo americano de relações laborais como um paradigma a ser seguido, sustentando que aquele sistema produziria menos litigiosidade e, portanto, menos “custos”, sendo responsável por ganhos de produtividade e competitividade das empresas norte-americanas no mercado internacional.

Essa visão edulcorada está muito distante da realidade. As corporações dos EUA gastam bilhões de dólares anualmente com acordos e indenizações judiciais trabalhistas, além de multas pelo descumprimento de normas de Direito do Trabalho.

É fato que o sistema norte-americano de relações laborais é mais flexível do que o brasileiro e do que o de qualquer país europeu desenvolvido, o que se deve essencialmente ao sistema de pactuação at will, no qual se admite a denúncia vazia do contrato de trabalho, por iniciativa do patrão ou do empregado, sem necessidade de aviso prévio ou indenização (embora haja legislações estaduais que criam regras para dispensa imotivada ou estabelecem aviso prévio, como Montana e Califórnia, respectivamente).

Mas o fato de ser “flexível” não significa que o sistema é “simples”.  Basta lembrar, como já tivemos oportunidade de discorrer aqui, que há um sistema trabalhista federal e cinquenta sistemas trabalhistas estaduais, em razão da competência concorrente para legislar sobre Direito do Trabalho. Até mesmo municipalidades e condados podem estabelecer certas regras laborais, como salário mínimo. E os Estados não podem afastar normas trabalhistas federais mais favoráveis, não só em razão da “preemption doctrine” estabelecida na Décima Emenda à Constituição, como também em razão de disposição expressa na Fair Labor Standards Act – FLSA (1938).

Além disso, se de um lado a legislação laboral tem um caráter “minimalista”, ela, por outro, deixa espaço para a negociação coletiva em muitas áreas – e as normas sobre direito sindical são extremamente complexas, reguladas não apenas por direito legislativo, mas também por jurisprudência administrativa da National Labor Relations Board – NLRB e judicial das cortes federais.

Ademais, a cultura de litigância própria dos EUA, o sistema de honorários sem sucumbência (como regra geral) e a facilidade de acesso à justiça por meio das class actions incentivam a proliferação de demandas trabalhistas nos tribunais.

Conforme já expliquei em outro artigo, por uma série de razões, não há nos Estados Unidos (à exceção da Justiça Federal) estatísticas oficiais unificadas sobre o número de ações trabalhistas naquele país.  No entanto, algumas pesquisas e relatórios de entidades privadas jogam alguma luz sobre a dimensão da litigiosidade laboral nos Estados Unidos, em termos de custos.

O escritório de advocacia empresarial Seyfarth Shaw, baseado em Chicago, Illinois, produz anualmente o mais completo relatório sobre ações coletivas trabalhistas ajuizadas em cortes federais e estaduais dos Estados Unidos (Seyfarth Shaw Annual Workplace Class Action Litigation Report).

O trabalho inclui a análise sobre disputas relativas a remuneração e jornada (wage and hour litigation), discriminação no emprego (employment discrimination) e planos de aposentadoria (relativos à lei ERISA – Employment Retirement Income Security Act). A pesquisa examina ano a ano as tendências das demandas e de decisões judiciais sobre diversas matérias de litígio trabalhista. Além disso, reúne estatísticas sobre número de ações e valores pagos em acordos ou execuções.

É importante lembrar que nos EUA cerca de 85% das employment class actions terminam em acordo (settlement), pois por uma série de motivos os empregadores tentam evitar ao máximo a severidade das condenações judiciais. De acordo com a edição de 2019 do relatório Seyfarth Shaw, divulgada no início deste ano, as empresas americanas pagaram cerca de 2 bilhões de dólares anuais, na média dos cinco últimos anos, apenas com acordos trabalhistas em ações coletivas relativas às matérias anteriormente referidas, conforme o quadro que segue:

O número de class actions trabalhistas no judiciário federal dos Estados Unidos (em questões relativas à legislação trabalhista federal – Fair Labor Standards Act, de 1938) tem permanecido estável nos últimos anos, em cerca de 8 mil processos ajuizados, conforme se pode observar do seguinte gráfico:

Embora o número possa parecer pequeno à primeira vista, ele não o é, pelos seguintes fatores. Primeiro, a Justiça Federal dos Estados Unidos recebe apenas cerca de 2% de todos os processos do país; segundo, em cada processo coletivo estão representados dezenas ou centenas de milhares de litigantes, o que mostra que milhões de trabalhadores beneficiam-se de acordos e decisões judiciais em matéria trabalhista a cada ano perante a jurisdição federal; terceiro, a estatística desconsidera as ações trabalhistas individuais; quarto, há class actions trabalhistas ajuizadas em todas as cortes estaduais (que constituem a grande maioria), demandando questões laborais específicas de cada Estado.

O relatório destaca também os maiores acordos trabalhistas, em valores absolutos, por matéria, ocorridos no exercício de 2018.

Eis alguns deles: o WalMart pagou U$ 65 milhões em processo iniciado na Califórnia, por violar lei estadual que obrigava as empresas do comércio varejista a fornecer assento para descanso dos caixas durante a jornada de trabalho (Brown, et al. v. Wal-Mart Stores, Inc., Case nº 09-CV-3339, N.D. Cal. Dec. 6, 2018).

A Bloomberg concordou em pagar U$ 54,5 milhões por não pagamento de horas extras a 1.300 empregados que trabalhavam com suporte aos clientes (Roseman, et al. v. Bloomberg L.P., Case nº 14-CV-2657, S.D.N.Y. Oct. 16, 2018).

Twenty-First Century Fox pagou U$ 90 milhões a um grupo de mulheres que trabalhavam na Fox News, por tolerar o assédio sexual de diretores (Twenty-First Century Fox, Inc., et al. V. Murdoch, et al., Case nº 2017-833, Del. Ch. Feb. 9, 2018). A conhecida rede varejista Family Dollar indenizou grupo de empregadas da empresa vítimas de discriminação de gênero, no importe total de U$ 45 milhões (Scott et al., v. Family Dollar Inc., Case nº 08-CV-540, W.D.N.C. Mar. 14, 2018).

A Universidade do Sul da Califórnia celebrou acordo para pagar U$ 215 milhões para indenizar estudantes de medicina residentes do sexo feminino que foram vítimas de agressões sexuais de um ginecologista empregado pela instituição (Doe A. T. et al. v. University of Southern California, Case nº 18-CV-4940, C.D. Cal Oct. 19, 2018).

Outra empresa do setor hospitalar, a St Joseph Health Services of Rhode Island teve que pagar U$ 125 milhões por esconder informações sobre problemas no plano de pensão dos empregados (St. Joseph Health Services ode Island, Inc. et. Al. v. St. Joseph´s Health Services of Rhode Island Retirement Plan, Case nº PC-2017-3856, R.I. Super. Ct. Oct. 29, 2018).

Observe-se que todos os dados sobre valores pagos em ações trabalhistas no relatório do escritório não consideram as despesas das empresas com custas judiciais e honorários advocatícios.

Outro importante relatório sobre litigiosidade trabalhista foi elaborado recentemente pela Fundação Good Jobs First, com apoio do Jobs With Justice Education Fund, entidades sem fins lucrativos destinadas a estudos e pesquisas sobre a qualidade do emprego nos Estados Unidos.

O trabalho (Grand Theft Paycheck: The Large Corporations Shortchanging Their Workers’ Wages), divulgado ao público em junho de 2018, tem como finalidade denunciar a sonegação recorrente de salários, por grandes corporações, em razão da adoção de práticas ilegais de sonegação de horas extras, supressão de intervalos, classificação incorreta do empregado como não sujeito a controle de horário, trabalho sem registro de jornada, tempo para vestir uniforme ou equipamentos especiais, desrespeito a salário mínimo ou convencional, diferenças de gorjeta, despesas com compra de uniforme obrigatório, entre outros.

A pesquisa abrangeu o período entre janeiro de 2000 a junho de 2018, tendo sido identificados e investigados mais de 4.220 casos, incluindo acordos e decisões em class actions trabalhistas, bem como multas decorrentes de sanções administrativas, em face de grandes corporações, assim entendidas como aquelas listadas na Forbes 500, em que se discutem diferenças decorrentes de remuneração e jornada (wage and hour disputes).

Das 500 maiores empresas americanas, pelo menos 450 pagaram indenizações e/ou multas de no mínimo U$ 1 milhão.

Nesse universo da Forbes 500, as despesas com indenizações e multas trabalhistas apenas em questões de wage and hour litigation custaram no período estudado U$ 9,2 bilhões. O WalMart sozinho respondeu por U$ 1,4 bilhão desse total.

O relatório identificou inicialmente quais são as empresas com maior número de processos trabalhistas coletivos (incluindo os decorrentes de multas administrativas), em que se discutem sonegação de salários (incluindo as controvérsias sobre jornada):

Outro dado interessante é a relação dos maiores acordos trabalhistas firmados no período, assim considerados os estabelecidos acima de U$ 50 milhões, conforme a tabela que segue (algumas empresas aparecem mais de uma vez por terem sido processadas em mais de uma ação):

O relatório da Fundação Good Jobs First identifica ainda quais são os setores da economia nos quais mais são verificadas as práticas de “wage theft” (apropriação indevida da remuneração do empregado, o que inclui gorjetas ilegalmente retidas e horas extras não pagas).

Os valores estratosféricos de ações sobre remuneração e jornada devem-se também a figura jurídica dos “liquidated demages”, que correspondem a danos extrapatrimoniais presumivelmente sofridos pelo empregado, fixados na Fair Labor Stadards Act FLSA. De acordo com João Renda Leal Fernandes, que atualmente desenvolve pesquisa sobre o tema na Universidade de Harvard, em Massachusetts, “o parâmetro utilizado é o “double pay” (valores devidos em dobro). Ou seja, se o empregador é devedor de salários, horas extras ou gorjetas retidas, precisará pagar o débito com acréscimo de 100%. E a Suprema Corte decidiu em Brooklyn Savings Bank v. O´Neil, 324 U.S. 697 (1945) que os “liquidated demages” são irrenunciáveis em acordos extrajudiciais para pagamentos de salários, gorjetas ou horas extras devidas”.

A pesquisa da Fundação Good Jobs First também examinou as sanções administrativas impostas pelos órgãos federais e estaduais de fiscalização da legislação do trabalho, em casos relativos a não pagamento de salários ou horas extras. Nos EUA, em nível federal, a Wage and Hour Division – WHD é o órgão competente do Ministério do Trabalho (Department of Labor) para fiscalização do pagamento correto das horas trabalhadas. Conforme a mesma pesquisa de João Renda Leal Rodrigues, “a WHD do DOL possui uma estrutura colossal, com mais de 200 escritórios regionais espalhados por todo o país. Muitas reclamações individuais são protocolizadas perante a própria WHD, que possui poderes investigatórios, persecutórios e jurisdicionais.

Acordos celebrados perante a WHD podem conferir quitação geral e o Secretary of Labor pode também propor ação judicial em benefício dos trabalhadores lesados. Há ações que chegaram até a Suprema Corte, como Alamo Foundation v. Secretary of Labor, 471 U.S, 290 (1985), na qual se reconheceu que o trabalho “voluntário” prestado para organização religiosa, em típica atividade econômica e em concorrência a terceiros, é atividade abrangida e que deve obediência aos preceitos do FLSA”. E em nível estadual, há várias agências com função correspondente WHD e, como, por exemplo, a California Labor Comissioner´s Ofiice. Vejamos os dados sobre as maiores multas aplicadas por descumprimento de salários e jornada apenas pela WHD:

É preciso observar, especialmente aos ingênuos que acreditam que nos EUA há baixos custos decorrentes de conflitos trabalhistas, que todos esses dados não incluem outras fontes de despesas relevantes em questões laborais: as ações individuais, os gastos com campanhas antissindicais e os recursos investidos em compliance trabalhista.

Embora a típica ação trabalhista nos EUA seja coletiva (class action), há também, evidentemente, litígios individuais, especialmente em casos de danos materiais e morais, sendo muito comum em questões de discriminação e assédio (harassment).

Apenas um exemplo recentíssimo: a Justiça Federal dos Estados Unidos condenou a empresa Cushman & Wakefield (C&W) a pagar uma indenização de 1,3 milhão de dólares ao seu ex-empregado Yury Rinsky, de 63 anos, por ter entendido como discriminatória sua despedia e substituição por empregado mais jovem.

Milhares de ações como essa são processadas tanto na Justiça Federal como na Justiça Estadual e, observe-se, tais condenações milionárias não estão tabuladas nos relatórios anteriormente referidos, que cuidam apenas de ações coletivas.

Outra fonte de enorme dispêndio “trabalhista” para as empresas americanas decorre das eleições sobre representação sindical. No sistema jurídico dos EUA, os trabalhadores podem escolher se querem ou não ser representados por sindicato em seu local de trabalho, mediante votação.

Sob a égide da norma conhecida como Taft-Hartley Act, editada em 1947 como uma reação conservadora aos poderes concedidos aos sindicatos sob o governo Franklin Delano Roosevelt, os empregadores podem expressar sua opinião nesse processo eleitoral organizado pela National Labor Relations Board NLRB.  A Taft-Hartley Act permite que os empregadores participem do debate desde que não incorram em “ameaça de represália ou força ou promessa de benefício”.

Também de acordo com João Renda Leal Fernandes, “com o tempo, esses discursos se desenvolveram e se tornaram verdadeiras campanhas de rechaço aos sindicatos (vote no campaigns ou anti-union campaigns), muitas vezes com o dispêndio de elevadas quantias e uso de diferentes táticas para persuadir os empregados quanto aos malefícios da sindicalização.

Existem inúmeros escritórios e empresas a prestarem consultoria aos empregadores que se deparam com campanhas de sindicalização. (…) Essas empresas e consultores são comumente referidos como union-avoidance consultantsunion-avoidance firmspersuaders ou union busters e costumam cobrar elevados honorários de seus clientes”.

A pesquisa em curso de João Renda Leal Fernandes refere-se a alguns dados compilados por Marni von Wilpert: “em 2013 o Aria Hotel & Resort de Las Vegas contratou consultoria antissindical da Balance Incorporated por US$ 195.000,00.

No mesmo ano, a Domino’s Pizza teria remunerado um consultor antissindical da Action Resources à base de US$2.950,00 por dia de trabalho, o que gerou uma conta total de US$167.566,00. Em 2015, a American Apparel teve que contratar os serviços de Cruz & Associates, a quem pagou nada menos que US$ 462.343,00.

Entre 2015 e 2016, o New York, New York Hotel & Casino pagou a seus consultores antissindicais da Balance Incorporated o montante de US$345.182,00.

No mesmo período, o Pier 1 Imports contratou consultores do Labor Relations Institute, Inc. (LRI) por US$130.331,00. Em 2016, a Williams Sonoma pagou à firma Cruz & Associates a bagatela de US$150.543,00. Ainda no mesmo ano, por fim, a Kraft Heinz Foods Corporation teria contratado consultores do The Burke Group por US$153.123,00”. O estudo de Wilpert, vinculado ao Economic Policy Institute, pode ser consultado aqui.

Finalmente, é preciso acrescentar o custo das grandes corporações norte-americanas com compliance. Como já referido anteriormente, os Estados Unidos possuem um sistema jurídico trabalhista federal e 50 sistemas jurídicos trabalhistas estaduais.

Grandes empresas de alcance nacional como WalMart, Fedex, Hertz, IBM e outras necessitam contratar verdadeiros exércitos de advogados e especialistas em relações de trabalho e recursos humanos para dar conta da diversidade legal, especialmente porque naquele país as opções legislativas são extremamente díspares, pois há Estados tradicionalmente mais liberais que adotam um modelo “pro-labor”, com mais direitos trabalhista e Estados mais conservadores que seguem uma linha “pro-business”, com direitos laborais mais reduzidos.

Em síntese, ao contrário do que preconizam nossos falsos liberais, que gostam de demonizar a legislação trabalhista brasileira, caracterizando-a como excessivamente custosa (como se só houvesse “custo Brasil” e não o mesmo em outros países), é evidente que os conflitos capital-trabalho em uma sociedade complexa como a americana são geradores, em proporção muito maior, de um “custo Estados Unidos”.

Mas lá, esse “custo” é naturalizado e absorvido pelas instituições democráticas do país, como o judiciário e as agências federais e estaduais encarregadas do enforcement da legislação laboral e da resolução de conflitos trabalhistas. Nem mesmo os conservadores pretendem, por lá, destruir o Direito do Trabalho e as instituições públicas encarregadas de protegê-lo.

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O relatório anual do escritório Seyfarth Shaw sobre litigância trabalhista em class actions pode ser acessado na íntegra através deste link.

O relatório da Fundação Good Jobs First sobre sonegação de salários pode ser acessado por aqui.

Agradeço ao Juiz do Trabalho João Renda Leal Fernandes, atualmente pesquisador visitante na Universidade de Harvard, pela revisão, comentários e contribuições para esse pequeno artigo.

Cássio Casagrande é  doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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