Flávia Biroli
Fonte: Dados, Rio de Janeiro, v. 59, n. 3, p. 719-754, jul./set. 2016.
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar as conexões entre a divisão sexual do trabalho, aqui entendida como um fator fundamental na produção do gênero, e os limites das democracias contemporâneas. A análise se apoia em extensa literatura sobre o tema, acompanhada de aporte empírico que permite situar a discussão no contexto brasileiro. É orientada por dois axiomas e uma hipótese, aos quais correspondem as três principais seções do artigo: (A1) a divisão sexual do trabalho está na base das hierarquias de gênero nas sociedades contemporâneas; (A2) essas hierarquias assumem formas diferenciadas segundo a posição de classe e raça das mulheres; (H) as assimetrias assim constituídas, entre as quais se destacam o acesso desigual a tempo livre e a renda, limitam a participação política das mulheres. O reconhecimento do impacto da divisão sexual do trabalho se faz em uma concepção ampliada da política, que leva em conta as relações de poder no cotidiano. A análise destaca como essas relações incidem no acesso ao sistema político. Procura, com isso, colaborar para a construção de modelos teóricos que incorporem essa dimensão fundamental das relações de gênero, a divisão sexual do trabalho, à análise crítica dos limites da democracia.
Sumário: Divisão sexual do trabalho e a posição desigual das mulheres | Posições diferenciadas: convergências entre gênero, raça e classe | Divisão sexual do trabalho, gênero e democracia | Considerações finais | Referências bibliográficas
As teorias políticas feministas têm contribuído para o avanço das análises teóricas e empíricas sobre a democracia. Trata-se de um conjunto amplo e diverso de abordagens e problemas ao qual se pode atribuir uma base comum, a crítica às formas modernas e contemporâneas da dualidade entre a esfera pública e a esfera privada, tendo como contexto da análise sobretudo as sociedades ocidentais e, entre elas, destacadamente a Europa e a América do Norte. Este artigo analisa o potencial crítico e explicativo dessas teorias, com foco na relação entre divisão sexual do trabalho e democracia, e avalia seu impacto tendo em mente o contexto brasileiro. O ponto de partida da análise é o entendimento de que, ao abordar a divisão sexual do trabalho, o feminismo evidencia as conexões entre as relações de poder no cotidiano e a baixa permeabilidade das democracias contemporâneas.
Com todas as transformações que ocorreram nas últimas décadas, as mulheres continuam a dedicar mais tempo às tarefas domésticas e a ter rendimentos médios menores do que os homens pelo trabalho desempenhado fora de casa. Isso se dá mesmo quando, como acontece no Brasil de hoje, acompanhando tendências verificadas em outras partes do mundo, as mulheres têm mais tempo de ensino formal que os homens e são a maior parte dos indivíduos que completam o ensino superior. A ampliação do acesso à educação e as transformações no padrão ocupacional não permitiram superar as desigualdades entre mulheres e homens nos rendimentos e a maior precariedade das primeiras nas relações de trabalho (A. Araújo e Lombardi, 2013; Bruschini, 2006; Bruschini e Lombardi, 2001; 2002).
As relações de trabalho também expõem com clareza os padrões hierárquicos nas relações entre as mulheres, organizados por outras variáveis, entre as quais se destacam classe e raça. Como afirmou Heleieth Saffioti (2013:133), “se as mulheres da classe dominante nunca puderam dominar os homens de sua classe, puderam, por outro lado, dispor concreta e livremente da força de trabalho de homens e mulheres da classe dominada”, o que tem expressão clara no recurso das mulheres mais ricas ao trabalho doméstico mal remunerado e precarizado das mais pobres. Nesse caso, a concentração de renda é um componente incontornável das hierarquias, embora não suspenda os padrões de gênero na responsabilização pelo trabalho doméstico e no acesso a ocupações. O ponto aqui é que as desvantagens que atingem as mulheres não são suficientes para que se faça delas um grupo minimamente homogêneo. Nessa dinâmica, gênero, raça e classe organizam conjuntamente sua vivência. Em outras palavras, o gênero não se configura de maneira independente em relação à raça e à classe social, nem é acessório relativamente a essas variáveis.
Gostaria de deixar anotado que, mesmo tendo em mente as formas múltiplas e cruzadas de opressão e de construção das identidades, mantenho a referência a mulheres e homens ao falar em gênero porque as práticas às quais me refiro atendem em grande medida a um modo binário de organização que ao mesmo tempo constrange e produz comportamentos. Vale esclarecer, ainda, que embora a parcela majoritária da discussão sobre a produção do gênero esteja situada no âmbito da sexualidade, entendo que a construção binária das categorias feminino e masculino ocorre também por meio de prescrições e julgamentos que responsabilizam e conformam habilidades e preferências, com forte expressão no âmbito da divisão das responsabilidades e do trabalho. Como parte desse processo, são ativados filtros que incidem sobre as mulheres no acesso a ocupações e no acesso ao âmbito da política institucional, constituindo padrões sistemáticos de exclusão e de marginalização. Elas constituem, assim, um grupo onerado pelo cotidiano de trabalho não remunerado, direcionado a ocupações específicas, relativamente menos remunerado no trabalho e sub-representado na política.
A literatura sobre divisão sexual do trabalho que será discutida neste artigo permite que sejam apresentados dois axiomas. Em conjunto com subsídios empíricos mobilizados para testá-los e situá-los no contexto brasileiro, eles organizam a discussão e servem como ponto de partida para a hipótese apresentada subsequentemente:
Axioma 1 – A divisão sexual do trabalho é uma base fundamental sobre a qual se assentam hierarquias de gênero nas sociedades contemporâneas, ativando restrições e desvantagens que produzem uma posição desigual para as mulheres.
Axioma 2 – Essas hierarquias de gênero assumem formas diferenciadas segundo a posição de classe e raça das mulheres. A divisão sexual do trabalho não encontra, no entanto, um limite nas vantagens de classe e de raça – impacta as mulheres por serem mulheres, ainda que isso não signifique padrões resultantes comuns.
Flávia Biroli. Universidade de Brasília (UnB), Brasília, D.F., Brasil.