A repressão do Judiciário trabalhista à organização da classe trabalhadora é notória. Basta ver as decisões dos Tribunais do Trabalho em dissídios de greve e em interditos proibitórios, que, na prática, inviabilizam o exercício do direito constitucional de greve.
Hugo Cavalcanti Melo Filho
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 24/09/2020
O Direito do Trabalho, produzido nos marcos da institucionalidade burguesa, constitui instrumento de dominação de classe, verdadeira chancela estatal à exploração do trabalho pelo capital, na medida em que garante a apropriação da mais-valia pelo capitalista. Por outro lado, em virtude de seu caráter interventor no âmbito da autonomia da vontade, impõe limite a esta exploração. Esse limite consiste na permanente busca da fixação de parâmetros civilizatórios na relação naturalmente desequilibrada entre capital e trabalho, que se dá, com maior ou menor eficácia, em cada momento histórico e em cada lugar. Há, portanto, uma tensão permanente entre os papéis de garantidor da atuação coercitiva do Estado e de legitimador, em termos hegemônicos, das relações sociais de produção para formação do bloco histórico.
No último período, o Direito do Trabalho vem se restringindo à função de avalista da coerção Estatal em favor da exploração capitalista, seja pela produção normativa direcionada ao interesse da extração da mais-valia e da acumulação, seja pelo reforço do aparelhamento repressivo e ideológico da Justiça do Trabalho.
A compreensão do desenvolvimento histórico em determinado período não pode ser alcançada apenas com o conhecimento das ideias predominantes à época, senão pela consideração prioritária dos condicionamentos concretos sob os quais se vivia e se agia, dependentes do que Marx denominou forças produtivas, entendidas como forças que contribuem para a produção de recursos.
Para entender como forças produtivas influenciam o processo histórico econômico é preciso confrontá-las com fatores que, de acordo com o pensamento marxiano, facilitam ou alteram a sua incidência, as relações de produção, que são as formas sociais genéricas pelas quais se processa a produção.
A interação entre esses dois fatores se fundamenta em princípios de produção, distribuição e propriedade. As contradições estruturais do capitalismo manifestam-se nesse movimento dialético dos contrários, o antagonismo que se encontra nas relações de classe, na luta por interesses diferentes no processo produtivo.
Marx sintetiza a interação entre forças produtivas e relações de produção, apontando o conjunto destas últimas como “a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política”, e sustenta que “o modo de produção material condiciona o processo social, político e intelectual em geral” (MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 24).
Na esteira de Marx, Pachukanis concebe o direito “não como acessório de uma sociedade humana abstrata, mas como categoria histórica que corresponde a um ambiente social definido, construído pela contradição de interesses privados” (Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 86). Assim, “o processo histórico de desenvolvimento da economia mercantil-monetária e mercantil-capitalista acompanha a realização desses esquemas [da ideologia jurídica] na forma da superestrutura jurídica concreta” e assim “temos todas as condições para o desenvolvimento da superestrutura jurídica com suas leis formais, seus tribunais, seus processos, seus advogados, e assim por diante” (ibidem, p. 62).
No Brasil, a partir do Golpe de 2016, deu-se a retomada da hegemonia dos ideais neoliberais, materializada na seara juslaboral, inicialmente, na Lei n.º 13.467/2017, com alterações afrontosas aos princípios do Direito do Trabalho, à Constituição e às Normas Internacionais do Trabalho, escancaradas em seis eixos principais: ampliação das possibilidades de terceirização de mão-de-obra; ampliação das possibilidades de contratação de empregados a tempo parcial; autorização de dispensa massiva de trabalhadores; flexibilização máxima quanto à jornada de trabalho; enfraquecimento dos sindicatos; a redução da relevância institucional da Justiça do Trabalho; prevalência do negociado (in pejus) sobre o legislado.
Em 2020, na vigência do estado de calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19, Bolsonaro editou as Medidas Provisórias 927/20 e 936/20. A primeira, vigente até 19.7.20, dispôs sobre as medidas trabalhistas que poderiam ser adotadas pelos empregadores nesse período. Além da indecente autorização de suspensão de contratos de trabalho por até 120 dias, sem salário ou benefício (art. 18 da MP 927, revogado pela MP 928), cuidou de flexibilizar, em exclusivo proveito dos patrões, os institutos do teletrabalho, das férias e dos feriados, do banco de horas e da jornada de trabalho dos profissionais de saúde. Principalmente, autorizou a celebração de acordo individual com preponderância sobre as leis e normas coletivas.
Já a Medida Provisória 936/20 (convertida na Lei n.º 14.020/20) instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, autorizando a suspensão do contrato de trabalho e a redução proporcional de jornada e salário, por negociação individual ou coletiva.
Trata-se, a toda evidência, de produção normativa estritamente condicionada pelo modo de produção capitalista, no interesse da extração da mais-valia e da acumulação. Mas o quadro dramático para a classe trabalhadora é delineado ainda por outros fatores característicos do modelo.
A tradição marxista concebe o Estado como um aparelho repressor (ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (notas para uma investigação). In ZIZEK, Slavoj (org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p.111). Esta função fundamental do Estado é exercida pela polícia, pelos tribunais e pelo exército, que intervêm como força repressora suplementar, e, acima desse conjunto, pelo chefe de Estado, governo e administração.
Althusser propõe um acréscimo à “teoria marxista” do Estado, a que seja levada em conta não apenas a distinção entre poder estatal e Aparelho de Estado, “mas também uma outra realidade que está claramente ao lado do Aparelho (Repressivo) de Estado, mas não se confunde com ele” (ibidem, p. 114), que conceitua como Aparelhos Ideológicos de Estado. Para Althusser, os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) são os aparelhos ideológicos religioso, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, de informação e cultural (ibidem, p. 115).
Aparelhos repressivos e ideológicos existem para assegurar a submissão da classe trabalhadora às classes dominantes, por meio da exploração capitalista. O aparato judicial figura em ambas as categorias, disso não escapando a Justiça do Trabalho, seja quando avaliza, pela coerção, a exploração de classe (aparelho repressivo), seja quando cria e consolida narrativas que legitimem essa exploração (aparelho ideológico).
A repressão do Judiciário trabalhista à organização da classe trabalhadora é notória. Basta ver as decisões dos Tribunais do Trabalho em dissídios de greve e em interditos proibitórios, que, na prática, inviabilizam o exercício do direito constitucional de greve. Sobreleva, entretanto, a feição de aparelho ideológico que caracteriza o Poder Judiciário.
As decisões da Justiça do Trabalho, em todos os graus de jurisdição, que chancelam as alterações inconstitucionais e inconvencionais feitas pela Lei n.º 13.467/17, que negam o vínculo empregatício dos trabalhadores plataformizados, que ratificam o Direito do Trabalho de Exceção construído para o período da pandemia revelam que se trata de ambiente de efetivação do direito ultraliberal. Mais do que isso, exibem a construção de narrativa da necessidade da salvaguarda empresarial, de redução de direitos como pressuposto do desenvolvimento e da empregabilidade, da priorização do empreendedorismo e da transmutação de empregados em associados e colaboradores desprotegidos. Enfim, a deslegitimação do próprio Direito do Trabalho, que tem por objetivo final fazer com que as massas incorporem, como sua, a ideologia dominante.
À frente dessa construção narrativa de imposição ideológica encontra-se o Supremo Tribunal Federal. O STF milita na causa do desmanche dos direitos sociais há décadas e deu carta branca ao Congresso para a chamada reforma trabalhista, decidindo questões sensíveis como a prevalência do negociado sobre o legislado, a ultratividade das normas coletivas, a flexibilização das jornadas, terceirização, a redução da relevância institucional da Justiça do Trabalho, que terminaram constituindo aspectos centrais da referida reforma. Alterada a CLT, o STF decidiu pela constitucionalidade do fim do imposto sindical e ampliou, por várias decisões, as possibilidades de terceirização.
Ao apreciar as MP 927 e 936, o STF, embora tenha decidido pela suspensão da eficácia de dois dispositivos da primeira (que não considerava doença ocupacional os casos de contaminação de trabalhadores pelo coronavírus e que limitava a atuação de auditores fiscais do trabalho à atividade de orientação), manteve a eficácia do artigo que tratava da prevalência do acordo individual sobre a lei e normas coletivas.
Em relação aos dispositivos da MP 936, o STF manteve a eficácia da regra que autoriza a redução da jornada de trabalho e do salário ou a suspensão temporária do contrato de trabalho por meio de acordos individuais, independentemente da anuência dos sindicatos da categoria. Prevaleceu a tese de que tal possibilidade não fere princípios constitucionais, pois não haveria conflito entre empregados e empregadores, mas uma convergência sobre a necessidade de manutenção da atividade empresarial e do emprego.
E, assim, o aparato judicial vai impondo a ideologia que aparece unificada em torno dos interesses essenciais da classe dominante, sobretudo para assegurar a sua hegemonia, por meio das relações de produção e do conjunto das relações sociais. Infraestrutura sobre a qual se edifica o Estado e o Direito e as ideologias encarregadas de fazer com que a formação social seja capaz de reproduzir continuadamente as suas condições de existência
Hugo Cavalcanti Melo Filho é juiz do Trabalho no Recife, Doutor em Ciência Política, professor de Direito do Trabalho da UFPE, Presidente da Academia Pernambucana de Direito do Trabalho e membro da Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia.