As inovações do chamado capitalismo de plataformas precarizam ainda mais o trabalho.
Vitor Silveira
Fonte: A Terra é Redonda
Data original da publicação: 08/02/2022
Para aqueles que estão despertos, não restam dúvidas de que vivemos uma época onde a luta se classes se converteu em verdadeira guerra. E a verdade é que neste momento o lado dos trabalhadores está tomando uma verdadeira surra. Estamos levando a pior não apenas por lutar com inimigos muito mais ricos, influentes e organizados, mas especialmente por não ver (ou não querer ver) que estamos em guerra. Enquanto eles sabem que estão em uma briga pela sua existência enquanto classe, nós andamos atormentados pelos problemas, porém distraídos. Como não conseguem fazer o bolo crescer mais, os “donos do mundo” decidiram que a solução é dar fatias ainda mais grossas para os poucos que já têm muito e deixar cada vez menos migalhas para os muitos que têm quase nada.
Recentemente o Partido dos Trabalhadores começou a falar abertamente sobre a revogação da famigerada reforma trabalhista, esta um dos primeiros atos do governo golpista. Os ataques ao PT aumentaram exponencialmente na mídia hereditária após as declarações de Lula e Gleise, dizem que até o tal vice “moderado”, que amplos setores querem na chapa presidencial, ficou preocupado. Isso só mostra a forte disposição da elite de manter a qualquer preço a regressão geral que implementaram e se possível aprofundá-la ainda mais.
Apesar de saber bem que retomar o que foi conquistado com a CLT de 1943 é fundamental, quero hoje falar de uma outra categoria laboral, aquela que nem os limitados direitos trabalhistas da contrarreforma tem, o texto é sobre aquelas pessoas que apesar de trabalharem para empresas bilionárias não contam sequer com a carteira assinada ou com o mínimo de suporte previdenciário.
Desde a década de 1970 do século passado que os sindicatos e demais organizações classistas vêm sendo atacados por todos os lados e a ideologia do cada um por si, salve-se quem puder, vem sendo promovida de forma sistemática, porém com a invenção do chamado capitalismo de plataformas chegamos a um novo nível.
Alguém já disse que a pobreza não tem nada de revolucionária, muito pelo contrário, durante as grandes crises as massas desesperadas costumam disputar ferozmente qualquer coisa que lhes garanta a sobrevivência por mais um dia. Já foi dito também que a tecnologia em si não é boa nem má, tudo depende do uso que se faça dela. Agregar milhares ou milhões de pessoas que pretendem vender um serviço ou produto em um único lugar e fazer a ponte entre estes e os consumidores parece mesmo uma ideia inteligente, se esse “ponto de encontro” for gerido pelos próprios usuários, através de uma associação ou cooperativa por exemplo, poderia mesmo ser uma revolução na economia[1]. Mas esse sonho de autogestão e liberação dos explorados por enquanto é só um sonho mesmo, as plataformas são controladas pela mesma plutocracia que domina o mundo analógico ou por novos tubarões que aprendem rápido as regras desse jogo de baralho marcado.
Aplicativos de entregas e de transporte de passageiros costumam abocanhar até metade (ou mais) do valor pago pelo serviço, além de submeter seus “colaboradores” à jornadas absurdamente longas e manipulá-los de forma sutil através dos algoritmos, que punem ou mesmo excluem aqueles que não querem se submeter a condições de trabalho dignas da primeira revolução industrial, aquela que se iniciou na Inglaterra. Ah, se você cair da bicicleta ou bater o carro, o problema é todo seu, ficará desamparado e sem renda. Se tentar organizar uma paralisação para exigir melhores condições, pode acabar sofrendo represálias ainda mais duras, chegando até mesmo à ameaças de morte, conforme foi relatado por entregadores de comida à imprensa.
Em outros setores, como na venda de bens artísticos e culturais, a abordagem é outra, a plataforma simplesmente diz: confie em mim. E se você quiser vender suas músicas ou seus livros nestes sites quase-monopolistas, vai ter mesmo que confiar. É certo que muitos músicos e autores sempre desconfiaram dos números de vendagem apresentados por suas editoras e gravadoras, porém como os produtos eram físicos, ficava um pouco mais difícil dizer que os artistas não venderam nada quando estes viam sua obra exposta em todas as lojas da cidade. Os tamanhos das tiragens e das edições também podiam ser usadas como uma base de cálculo. Hoje, com os arquivos digitais, é impossível exercer qualquer contabilidade, se o site disser que você vendeu uma ou mil unidades, só lhe restará acreditar. Mesmo que fique desconfiado e faça uma reclamação, a palavra final sempre será da plataforma, e é impossível qualquer auditoria. Ou melhor, não interessa às grandes plataformas tal auditoria, já que com tecnologias amplamente disponíveis como a BlockChain por exemplo, se teria uma transparência total sobre o número de downloads. Quem sabe um grupo de brasileiros talentosos, mas sem oportunidades (maioria do povo) não se reúne e constrói algo assim? E não esqueçam dos meus royalties, hein!
Se ter uma renda parca e incerta já é ruim, lembre-se do velho ditado: o ruim sempre pode piorar. Recentemente conheci um site para venda de fotos que, além de cobrar comissões dignas de cafetão, tem no contrato uma cláusula que diz que se você não entregar em 48h uma foto tratada digitalmente conforme o pedido do cliente, você tem que ressarci-lo em 100% do valor pago. Só que no caso o valor foi pago ao site, e é ele que vai ficar com toda a grana de quem comprou a foto. E se o fotógrafo sofrer um acidente e ficar um mês em coma? Provavelmente vai acordar devendo até as calças, pois também o tamanho da sua dívida será aquele que o site disser.
Saiba ainda que este tipo de clausula claramente abusiva não é incomum, vários sites famosos de tradução, por exemplo, impõe o mesmo tipo de multa. Não importa se caiu um raio na sua casa e queimou seu computador ou se você teve uma emergência familiar, se não entregar o material no prazo determinado você vai ter que devolver o dinheiro do cliente… um dinheiro que você não recebeu, nem receberá.
Realmente é muito inovador o capitalismo do século XXI, nos moldes dele você se mata em jornadas exaustivas, sem quaisquer garantias ou direitos para, na melhor das hipóteses, ganhar uns trocados. No pior cenário, você, além de não ganhar nada, ainda fica devendo ao patrão. Aliás, patrão não, afinal vocês não têm nenhum vínculo empregatício.
Nota
[1] Esse artigo foi escrito antes do anúncio pela grande mídia de que a prefeitura de Araraquara (SP) ajudou a criar um aplicativo de entregas e viagens gerido por uma cooperativa local e através do qual os motoristas e entregadores ficam com até 95% do valor totalVitor Silveira é graduado em Comunicação Social, escritor e fotógrafo. Autor entre outros de Uma Vez Na Estrada.