Competência territorial trabalhista em tempos desterritorializados: contribuições garantistas e com “vontade de Constituição”

A pandemia trouxe possibilidades que antes de se traduzirem em respostas definitivas, ampliam o campo de discussão.

Oscar Krost

Fonte: Direito do Trabalho Crítico
Data original da publicação: 14/06/2022

O discurso jurídico, em suas múltiplas manifestações, tem aversão a tudo quanto é novo.”

Luiz Alberto Warat[1]

A competência territorial trabalhista é determinada pelo local da prestação dos serviços do trabalhador, independente de onde tenha acontecido a contratação (CLT, art. 651, caput). Entretanto, quando a lide for proposta por agente ou viajante comercial, o processamento competirá à Vara do Trabalho em que o empregador tenha agência ou filial e a esta o empregado esteja subordinado e, em sua falta, à Unidade Jurisdicional da localidade em que domiciliado o empregado ou a mais próxima (CLT, art. 651, §1º).

A jurisdição laboral alcança, ainda, os dissídios ocorridos em agência ou filial no estrangeiro, desde que o sujeito subordinado seja brasileiro e não haja convenção internacional dispondo em contrário (CLT, art. 651, §2º). Acaso o empregador promova atividades fora do lugar do contrato de trabalho, faculta-se ao empregado propor ação no foro da celebração ou da execução do contrato (CLT, art. 651, §3º).

A matéria é regida exclusivamente por disposições infraconstitucionais, mais especificamente por um único artigo de lei.

Contudo, é comum que após a extinção da relação de emprego, em busca de nova colocação ou retornando às origens, o trabalhador mude o Município de domicílio e encontre dificuldades para, ajuizada demanda, se deslocar fisicamente até a cidade em que foi admitido, atuou e foi dispensado, anteriormente, a fim comparecer às audiências no processo do trabalho e à eventual perícia.

Nesta encruzilhada, é posto em xeque o Direito Fundamental de acesso à Justiça, protegido inclusive contra a ação legislativa (Constituição, art. 5º, inciso XXXV). Opta, então, pela propositura da ação perante a Vara com jurisdição sobre a localidade em que atualmente reside.

Citado, o ex-empregador pode apresentar exceção de incompetência em razão do lugar. Assim procedendo, requer a remessa dos autos ao Juízo competente.

Nada de extraordinário, portando-se ambas as partes de modo legal e até previsível.

Antes de adentrar nas possibilidades postas, de grande valia recordar as palavras de Wilson de Souza Campos Batalha que, já em 1951, alertava: ”O princípio genérico da competência do fôro do local da prestação de serviços foi mantido em nossas leis mais recentes. Mas, o princípio não ficou rigidamente estabelecido, admitindo-se atenuações.”[2]

Agora sim, às hipóteses:

1. LEITURA LITERAL, GRAMATICAL E LEGALISTA: acolhe-se a exceção e remetem-se os autos ao Juízo competente, dando margem ao:

a. prosseguimento do feito e ao exercício do direito de ação SE o autor puder se deslocar até o local das audiências, independente dos custos e intercorrências, ou SE a audiência for realizada de modo remoto

ou

b. arquivamento dos autos, “após o trânsito em julgado. Cientes os presentes. Nada mais”, SE nenhuma das possibilidades anteriores apresentar-se viável.

Para além dos “SEs”, uma ameaça considerável de negação ao regular exercício de um Direito Fundamental.

2. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA, GARANTISTA E CONSTITUCIONAL: rejeita-se a exceção, prorroga-se a competência, assegura-se a tramitação do feito de modo digital (Juízo 100% digital) e o exercício dos também fundamentais Direito à Ampla Defesa e ao Contraditório, possibilitando à demandada:

a. acatar a decisão e contestar as pretensões deduzidas, de modo remoto, produzindo as provas que entender pertinentes no curso do feito

ou

b. recorrer e insistir no deslocamento da competência.

Como podemos perceber, a pandemia trouxe possibilidades que antes de se traduzirem em respostas definitivas, ampliam o campo de discussão. Não há resposta absolutamente certa, tampouco absolutamente errada no campo jurídico.

Existem, entretanto, respostas melhor ou pior fundamentadas, com mais ou menos argumentos e aderência. Temos, então, que reconhecer que a adoção de uma ou de outra via, em se tratando de competência territorial trabalhista, é fruto da conjugação de escolhas com prioridades, não apenas legais, mas, principalmente, jurídicas.

Onde ocorreu a relação trabalhista também tende a ser o local em que mais facilmente podem ser produzidas as provas. Local este, inclusive, em que pode se realizar eventual perícia e cuja Unidade da Justiça do Trabalho bem conheça o dia a dia da atividade econômica patronal e das empresas.

Sem sombra de dúvida, não há como negar.

Mas assim como a máxima “o que não está nos autos, não está no mundo” teve que ser revista após os autos serem alçados à nuvem e se dissiparem na grande rede mundial de computadores, a ponto de tudo estar nos autos, as observações acima apresentadas também exigem revisão.

No “Brasil de 2022 quase pós-pandêmico” praticamente tudo está ao alcance da mão que segura o smartphone: consultas médicas, encomendas de alimentos, transporte urbano, serviços bancários…a lista é extensa. Por que motivo tudo se imaterializa e avança em matéria de consumo, mas segue rígido, litúrgico e arcaico em se tratando da defesa de Direitos Fundamentais Sociais e de verbas alimentares?

Para além de uma leitura tópica de regras de competência, essencial ter-se a “vontade de Constituição” referida por Konrad Hesse em 1959.[3] Do contrário, de que adiantaria uma Constituição Cidadã, principiológica e com vocação pós-positivista se as lentes que a lêem insistem em fazê-lo sob a ótica de leis editadas sob a égide de outra Norma Ápice, sob tipos normativos fechados e uma inspiração positivista clássica?

Nelson Hamilton Leiria, ao abordar o papel dos Juízes na obtenção do acesso à Justiça, entende que estes precisam “abandonar a interpretação positiva e dogmática em nome de visão sociológica”, atualizando textos obsoletos por meio da atividade hermenêutica.[4] Sem essa guinada, seguirão habitando “torres de marfim” e se colocando cada vez mais distantes dos jurisdicionados, razão de ser de sua função.

Muito mais poderia ser aqui escrito, explicado e destrinchado. Poderia, mas não vai. A intenção não é informar, apenas provocar.

Assim, a título de “inconclusão”, uma ironia derradeira: dar-me conta do quanto refleti, ponderei e argumentei para defender algo lógica, formal e materialmente óbvio, além de condizente com a realidade contemporânea, enquanto que há quase 05 anos, sem tanto esmero e coerência, o Poder Legislativo promoveu, por meio da Lei nº 13.467/17 (“Reforma Trabalhista”), a alteração de 100 artigos da CLT, sob o pretexto de modernizar a normatividade laboral e desburocratizá-la. Detalhe: dentre as dezenas de dispositivos, não figurava justamente aquele que clamava por uma “repaginada”, o art. 651.

Questão de competência.

Notas

[1] WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito: interpretação da lei – temas para uma reformulação. Vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p 25.

[2] BATALHA, Wilson de Souza Campos. Instituições de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Max Limonad, 1951, p. 146, grifei.

[3] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Mendes Ferreira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 19.

[4] LEIRIA, Nelson Hamilton. A pós-modernidade e a necessária redesignação do conceito de ‘acesso à justiça’. In: KÜLZER, José Carlos et at. Direito do Trabalho Efetivo: homenagem aos 30 anos da Amatra12. São Paulo: LTr, 2013, p. 427.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *