Em abril de 2020, um motorista de Belo Horizonte entrou com uma ação trabalhista contra a Uber. Desligado da plataforma após dois anos de serviço prestado, o trabalhador pediu o reconhecimento do vínculo empregatício e o pagamento de despesas previstas na lei trabalhista brasileira, como hora extra e adicional noturno. A causa teve valor fixado em R$ 100 mil.
A primeira instância de julgamento, na 46ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, negou o pedido. A sentença levou em conta que o motorista não precisa entrar em contato com a Uber para avisar que não irá trabalhar em determinado dia, por exemplo, como uma evidência de falta de subordinação – essencial à caracterização do vínculo empregatício. O entendimento foi seguido pelo Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, o TRT-3. Vitória da Uber.
Mas o motorista recorreu das decisões, e, em fevereiro de 2022, o julgamento da causa foi designado à 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho. Às 9h do dia 23 de fevereiro deste ano, um novo julgamento decidiria, de maneira definitiva, a legitimidade do pedido do motorista. Por causa das duas vitórias anteriores, tudo parecia favorável à empresa. Na véspera, no entanto, um pedido foi apresentado em conjunto pela Uber e pelo trabalhador solicitando a retirada do caso da pauta. No lugar, as partes apresentaram um acordo para homologação.
Mesmo em clara vantagem, a Uber acordou com o motorista o pagamento de R$ 12 mil pela liquidação de qualquer problema na relação contratual. O acordo foi aceito e homologado pelo tribunal.
O que pode parecer uma derrota para a Uber, que terá que pagar o motorista mesmo com duas decisões a seu favor, é na verdade mais uma grande vitória. Com o acordo, a empresa impediu que uma turma, na maior instância trabalhista do Judiciário, reconhecesse o vínculo empregatício com um de seus motoristas. A ideia não é economizar dinheiro, mas evitar a criação de jurisprudência: um predatório trabalho de longo prazo para desestimular novos processos e, caso eles ocorram, garantir uma decisão favorável.
Com uso de jurimetria, uma sofisticada análise de dados de tribunais do trabalho brasileiros, a Uber criou uma estratégia para evitar perder processos de motoristas. O método utilizado é complexo, mas a ideia é simples. Ainda não existe uma decisão consolidada sobre o vínculo de trabalho entre motoristas e aplicativos de transporte, abrindo espaço para interpretações dos magistrados, que recorrem às decisões judiciais anteriores para balizar sua decisão atual. Isto é: na hora de julgar um processo do tipo, o responsável olha o que outros juízes na mesma situação fizeram. Isso não determina sua escolha, mas serve como um parâmetro. A Uber, então, analisa a propensão de um determinado magistrado ou tribunal específico julgar casos em favor do motorista – e não da empresa.
Se existe chance de a empresa perder, um acordo é oferecido ao motorista, evitando o registro de uma derrota no tribunal. Se a possibilidade maior é de a plataforma sair vitoriosa, a empresa não se mexe e espera o julgamento. Com isso, sentenças contrárias ao reconhecimento de vínculo de trabalho são sempre registradas, enquanto possíveis sentenças a favor do vínculo são antecipadas por um acordo, evitando a formação de jurisprudência.
O fenômeno foi percebido por Ana Carolina Leme, analista judiciária do TRT-3. Em sua dissertação de mestrado, ela aponta que os acordos são propostos pelas plataformas sempre em segunda instância, geralmente após vencer em primeira decisão e o trabalhador recorrer. Chama atenção a proximidade na data do julgamento e dos acordos, muitas vezes feitos na véspera – assim que vem à tona qual é o magistrado ou turma responsável pelo processo.
Acordos judiciais não são ilegais. Pelo contrário: eles preveem soluções consensuais e desoneram o serviço judiciário brasileiro. O modo como a Uber se utiliza deles, porém, passa longe do interesse na resolução dos conflitos. Escolhendo os casos em que oferecerá acordos não pelo mérito da causa, mas pela propensão à sentença negativa, a empresa faz o que o TRT-3 classificaria posteriormente como “intento de simular falsa uniformidade jurisprudencial”. Dar a impressão de que, judicialmente, existe consenso sobre o tema do vínculo empregatício de motoristas de aplicativo – quando, na verdade, não há.
Para Marcelo Nunes, presidente da Comissão de Jurimetria e Análise Preditiva da OAB-SP, no entanto, essa prática “não desregula a formação de consenso judiciário”. Segundo ele, o uso da técnica por empresas é uma imposição da realidade, pois existem processos demais e não seria o ideal geri-los “com base em achismo e intuição”.
Apesar de reforçar o caráter legal do uso das ferramentas e de não apontar desrespeito à formação de jurisprudência por seu uso, Nunes pinta uma disputa entre empresas e o Poder Judiciário: “Não faz sentido proibir que as empresas proponham acordos para que um dissenso jurisprudencial possa se propagar no tempo. As empresas devem correr para fazer acordos, e os tribunais devem correr para uniformizar sua jurisprudência”.
Dados levantados por Leme apontam que, até julho de 2018, o TRT-3 havia analisado, em segunda instância, pouco mais de 30 processos individuais contra a Uber pedindo reconhecimento de vínculo de trabalho. Destes, 14 foram considerados improcedentes e 12 tiveram acordo. Em nenhum o vínculo de trabalho foi reconhecido.
Mesmo com a manobra, entretanto, a Uber chega perto de reconhecer a legitimidade da solicitação dos motoristas. Um processo tramitado em 2017 no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo foi descrito por Leme como “um primeiro indício” da estratégia de conciliação seletiva da empresa. Nele, a Uber pagou ao motorista, em um acordo assinado no dia anterior ao julgamento, valor igual ao pedido no processo, sem qualquer negociação.
O caso chamou atenção porque o acordo foi firmado apenas dois meses depois de a empresa vencer em primeira instância, alegando que era ela que prestava serviço ao motorista, e não o contrário.
Acordo e mordaça
Apesar de serem sigilosos, o que destoa da natureza pública dos processos trabalhistas, os acordos oferecidos pela Uber deixam clara a exigência de quitação ampla, geral e irrestrita de qualquer pendência entre as partes. Também proíbem o trabalhador de ingressar com novo processo contra a empresa em qualquer esfera judicial. Essa discrepância com demais processos trabalhistas foi destacada por Antônio Gomes de Vasconcelos, desembargador do TRT-3 que se recusou a homologar um acordo entre a Uber e um motorista em 2020.
“A reclamada tem dado sinais de uso estratégico do processo com o objetivo de fazer transparecer uma visão distorcida do estado da arte da jurisprudência acerca da questão relativa à existência ou não de vínculo empregatício entre os motoristas e as empresas”, disse o magistrado em sua explicação. “Se configurada a estratégia, ela concorre para que a comunidade jurídica e os trabalhadores desse setor de atividade tenham a impressão de que a jurisprudência é, por princípio e em quaisquer circunstâncias, uníssona em uma direção, ainda que não se tenha quaisquer precedentes de uniformização de jurisprudência sobre a matéria”.
Parece ter acendido um alerta nos magistrados o fato de a empresa oferecer, em casos específicos, acordos aos motoristas que eventualmente tenham sido derrotados em primeira instância, mas deixar processos em que motoristas venceram em primeira instância sem acordo.
Um parecer emitido pelo Ministério Público do Trabalho e anexado pelo desembargador na recusa da homologação explica melhor a desconfiança: com uso de jurimetria, o MPT chegou à conclusão de que processos encaminhados para turmas específicas do TRT-3 recebem propostas de acordo, enquanto em processos encaminhados para outras não há movimentação da empresa – independente de qual tenha sido o resultado na primeira instância.
“Houve oferta de proposta e celebração de acordo exatamente nas turmas em que já houve o reconhecimento de vínculo de emprego entre as partes”, resume o MPT. Com os dados, é possível especificar: receberá uma proposta de acordo o motorista que, por sorte, tiver seu processo distribuído à 1ª, 4ª ou 11ª turmas do TRT-3.
Em nota ao Intercept, a Uber disse que “não manipula e não tenta manipular a jurisprudência sobre a natureza da relação entre a empresa e motoristas” e que “afirmações em sentido contrário pressupõe descrença na imparcialidade da Magistratura e deveriam ser encaradas como desrespeito à independência do Poder Judiciário”. A empresa não respondeu se usa ferramentas de jurimetria, se analisa a intenção de voto da turma julgadora para decidir oferecer ou não um acordo ao motorista que a processou ou porque, em alguns casos, os acordos são ofertados aos motoristas às vésperas do julgamento.
Fonte: The Intercept Brasil
Texto: Paulo Victor Ribeiro
Data original da publicação: 28/04/2022