Afinada com desejo de informalização total, do presidente, comissão governista quer liquidação vasta dos direitos, da fiscalização trabalhista e dos sindicatos. Quais as propostas. Que concepção as orienta. Por representam regressão inédita.
Remir-ABET
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 21/21/2021
No último 29 de novembro, veio a público mais um capítulo do processo de desmonte do direito do trabalho, com a divulgação do relatório de atividades do GAET – “Grupo de Altos Estudos sobre o Trabalho”, comissão composta pelo governo, em funcionamento desde 2019. Apesar de várias inconsistências internas, o relatório é coerente com o projeto neoliberal de desconstrução de direitos, avançando agora no plano constitucional. Dá um passo adicional em um modelo de relações de trabalho que supõe uma relação de igualdade, julgando dispensável a proteção social e admitindo a negociação individual. Introduz novos percalços para a ação coletiva dos trabalhadores e para a atuação das instituições públicas. E, ainda, sugere que os problemas do mercado de trabalho são oriundos das opções realizadas pelos trabalhadores, supostamente para tirar vantagens do acesso aos benefícios do seguro desemprego e do FGTS.
Neste sentido, orientado pelos mesmos princípios que embasaram a Reforma Trabalhista de 2017, o relatório constitui uma nova ofensiva contra o direito do trabalho, tornando trabalhadores e trabalhadoras mais vulneráveis à lógica de funcionamento do mercado e legitimando estatutos contratuais precários. O conjunto de propostas nele apresentado aprofunda a liberdade de as empresas determinarem as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho, além de retirar a responsabilidade do Estado e das empresas sobre a proteção social das pessoas ocupadas.
Se a Reforma Trabalhista de 2017 alterou a legislação infraconstitucional - o que permite, ainda hoje, um debate sobre a flagrante inconstitucionalidade de diversas de suas medidas -, a intervenção ora proposta visa alterar os marcos fundantes dos direitos sociais e trabalhistas inscritos na Constituição Federal de 1988, protegendo as empresas em detrimento dos trabalhadores e instituindo, em contradição com o princípio protetivo que emana do art. 7º da Constituição, a liberdade negocial individual entre trabalhador e empregador. Assim, o documento revela seu caráter antissocial e até anticivilizacional e, se aprovado, ampliará o retrocesso social do país, comprometendo definitivamente as possibilidades de tornar o Brasil uma nação democrática e menos desigual.
O extenso relatório (262 páginas) reúne, de forma não sistematizada, os resultados apresentados por 4 subcomissões (economia do trabalho, direito do trabalho e segurança jurídica; trabalho e previdência; e liberdade sindical). Nota-se, em primeiro lugar, a ausência ou a absoluta insuficiência de diálogo social na elaboração das propostas, que não foram discutidas com representantes dos trabalhadores, nem com setores mais amplos da comunidade científica, especialmente as diversas instituições de pesquisa que se dedicam ao estudo da regulação do trabalho. Em segundo lugar, marcos relevantes para a discussão foram ignorados, como por exemplo o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5766 pelo STF, que declarou inconstitucional dispositivos da Reforma Trabalhista de 2017 que obstavam o acesso à Justiça por parte dos trabalhadores vulneráveis. Em terceiro lugar, apesar de orientados por princípios comuns, há passagens em que os textos apresentados pelas diferentes subcomissões se contradizem entre si, o que revela uma falta de coerência interna do estudo. Esses três pontos, por si só, já indicam a necessidade de uma discussão cuidadosa sobre o conteúdo e os impactos das propostas. Elencamos a seguir, apenas para ilustrar, alguns dos problemas identificados.
A subcomissão de “Economia do Trabalho” propõe, por exemplo, modificações radicais na cobertura e operacionalização do seguro-desemprego. A proposta é que cada trabalhador faça uma poupança individual para pagar o eventual seguro-desemprego, cujo sistema seria unificado ao do FGTS. Ainda, desloca o pagamento dos 40% da multa do FGTS para o Estado, com a pretensa justificativa que isso reduziria a informalidade. Trata-se, em essência, da mesma proposta apresentada na década de 1990, sob o argumento de que os benefícios assegurados pelo Estado estimulariam o rompimento do vínculo de emprego, levando a uma elevada rotatividade, à prevalência de contratos de curto prazo e à baixa produtividade da economia brasileira. As demais propostas vão na mesma direção, atribuindo os problemas do mercado de trabalho à regulação protetiva e ao comportamento individual dos trabalhadores, omitindo os problemas estruturais da economia e se esquivando da elaboração de qualquer projeto nacional de desenvolvimento.
A subcomissão “Direito do trabalho e Segurança Jurídica”, por sua vez, apresenta uma nova reforma trabalhista, em que se destacam, entre outras, as seguintes alterações: a vedação do reconhecimento do vínculo de emprego dos trabalhadores em plataformas digitais, em total contradição com o que vem acontecendo em países europeus e na própria comunidade europeia; a liberação dos trabalhos aos domingos (folga coincidente com o domingo a cada 7 semanas); a prevalência das negociações individuais sobre as coletivas em um amplo espectro de temas, inclusive matérias de saúde e segurança no trabalho; a possibilidade de a gestante trabalhar em ambientes insalubres (questão superada inclusive por declaração de inconstitucionalidade do STF) e diversas limitações à garantia provisória do emprego da gestante; a revogação de dispositivos que garantem jornadas legais de 6 horas para diferentes categorias; a modificação do prazo prescricional em caso de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, que passa a ser contado “da ciência dos efeitos”, e não da consolidação da lesão; a responsabilização do empregado em caso de acidente de trabalho no qual, tendo sido treinado e equipado, deixe de utilizar o equipamento de proteção individual; a limitação dos casos de responsabilidade objetiva do empregador em casos de acidente de trabalho; a presunção de consentimento tácito do empregado com todas as alterações contratuais, ainda que prejudiciais, quando decorrido o prazo de 5 anos, mesmo com o contrato de trabalho em vigor; a tarifação do dano extrapatrimonial com parâmetro nos valores do teto do regime geral de previdência e a aplicação das leis trabalhistas novas aos contratos vigentes, entre outras mudanças orientadas para reduzir custos e flexibilizar as normas, em conformidade com os interesses patronais.
A subcomissão Direito do Trabalho e Segurança Jurídica propõe, ainda, diversas alterações legislativas no âmbito do Processo do Trabalho, dentre as quais destacam-se a limitação da substituição processual nas ações coletivas aos associados do sindicato, à revelia da jurisprudência assentada no STF e no TST; a possibilidade de quitação geral nos acordos extrajudiciais, não podendo o juiz homologar parcialmente o ajuste; a instituição do incidente de configuração de grupo econômico, dificultando a responsabilização jurídica das cadeias empresariais; a impossibilidade de reconhecimento de nulidade de cláusula de acordo ou convenção coletiva por controle difuso e incidental, somente podendo se dar pelo controle concentrado, em ação anulatória da cláusula, em grave restrição ao acesso à justiça pelos trabalhadores; a revisão das normas relativas às Comissões de Conciliação Prévia, entre outras medidas. As alterações propostas revelam claramente o objetivo de enfraquecimento da Justiça do Trabalho pela limitação dos poderes de atuação dos juízes e órgão julgadores.
As proposições da subcomissão “Liberdade Sindical” sugerem a extinção dos conceitos de unicidade e de categoria e indicam o critério do sindicato mais representativo para assumir a negociação em caso de eventual pluralidade. Além de liberar a organização sindical conforme os critérios definidos pelas partes interessadas, o texto abre a possibilidade de organização por empresa. A pretexto de fortalecer a negociação coletiva e a liberdade sindical, argumento também utilizado na Reforma Trabalhista, o texto aponta para a ampliação da prevalência do negociado sobre o legislado, com a introdução de duas possibilidades: 1) a prevalência pode abranger a criação de normas, a solução de conflitos e a administração/fiscalização do cumprimento das normas, hipótese em que resultariam afastadas as funções da Justiça do Trabalho (JT), do Ministério Público do Trabalho (MPT)e da fiscalização do trabalho; 2) a prevalência pode assumir somente a produção de normas, delegando a resolução de conflitos e a fiscalização a esses órgãos estatais. Em qualquer das possibilidades, estabelece-se uma relação de força ainda mais assimétrica entre trabalhadores e empregadores.
Há diferenças entre as propostas apresentadas pelas subcomissões “Direito do Trabalho e Segurança Jurídica” e “Liberdade Sindical”, a exemplo da descabida proposta de reconhecimento constitucional do locaute sustentada pela última, bem como quanto aos mecanismos para operacionalizar a proposta de negociação coletiva por empresa, ponto a respeito do qual convergem.
O texto da subcomissão “Trabalho e Previdência” aponta para a limitação do benefício da aposentadoria por invalidez, para a extinção da figura do acidente de trajeto (acidente de trabalho havido no percurso entre a residência e o local de trabalho), propõe revisão dos critérios de configuração da periculosidade e da insalubridade; acena para a revisão do Nexo Técnico Epidemiológico ocupacional; investe contra a imprescritibilidade das ações declaratórias trabalhistas, convergindo parcialmente com a subcomissão anterior quanto ao regime jurídico previdenciário diferenciado (e restritivo) para o trabalhador intermitente. A tônica dessa Comissão é a redução dos custos gerados pelos direitos trabalhistas para a Previdência Social.
Observando o conjunto do relatório, salta aos olhos a ausência de um esforço de construção de uma proposta comum a ser apresentada ao debate público. Algumas passagens deixam explícitas manifestações em primeira pessoa, em particular de magistrados inconformados com suas posições vencidas em colegialidades jurisdicionais, o que traz a impressão de uma colcha de retalhos, com pouca sistematicidade, embora permeada por grande coerência de princípios e ideias que são lesivas aos trabalhadores.
É preocupante também que a construção do documento não se reporte, na maioria dos seus trechos, ao monitoramento dos impactos da Reforma Trabalhista de 2017, seus efeitos sobre renda, emprego, ocupação e índice de formalidade no país. Já ficou demonstrado, nas inúmeras pesquisas desenvolvidas no âmbito da REMIR e da ABET, que as reformas trabalhistas e sociais implantadas nos últimos anos não criaram os empregos prometidos. Pelo contrário: conforme demonstram os sólidos dados empíricos nos quais se baseiam essas pesquisas, os resultados dessas reformas são socialmente perversos, pois contribuem para a desproteção social. A nova iniciativa se ancora no mesmo discurso que subsidiou diversas medidas aprovadas desde 2017, dando continuidade a um projeto que vem se mostrando falido nos últimos 4 anos.
Não bastassem esses elementos, em todas as páginas do documento, o governo que promoveu os trabalhos da referida Comissão se isenta de qualquer responsabilidade por seus resultados, com a declaração preventiva de que suas conclusões “não contam, necessariamente, com a concordância, integral ou parcial, deste Ministério do Trabalho e Previdência ou mesmo do Governo Federal”. No entanto, ela apresenta coerência com as manifestações do presidente da República, que reiteradas vezes defendeu que a legislação trabalhista se aproximasse da informalidade, ou seja, da ausência de direitos e proteções sociais.
Diante do exposto, conclamamos todas as pessoas e instituições preocupadas com o contexto de retrocesso social a se contrapor às propostas apresentadas no presente relatório, pois tais propostas já demonstraram ser ineficazes para enfrentar os problemas do trabalho. Pelo contrário, trouxeram mais problemas para quem precisa trabalhar para sobreviver. Já chegamos ao limite da desconstrução de direitos e do aumento da desigualdade. Precisamos de proposições que sejam capazes de resolver o grave problema da ausência de oportunidade de trabalho, a imensa precariedade de trabalho e a falta de direitos e proteção social para a maioria dos que trabalham.
Remir é a Rede de Estudo e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista.
ABET é a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho.