Em sua primeira entrevista concedida como presidente, Jair Bolsonaro reafirmou sua visão de que é preciso aprofundar a reforma trabalhista aprovada pelo Governo Temer: “O Brasil é o país dos direitos em excesso, mas faltam empregos. Olha os Estados Unidos, eles quase não têm direitos. A ideia é aprofundar a reforma trabalhista”, afirmou a jornalistas do canal SBT, na noite de quinta-feira (03/01).
O discurso explícito sobre a necessidade de mudanças nas regras trabalhistas é uma relativa novidade no cenário político, já que propostas de mudanças mais profundas na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), originalmente de 1943, costumava provocar reações negativas.
Com o bolsonarismo, no entanto, a questão não é tabu e foi explorada na campanha. Uma pista para uma maior aceitação do tema apareceu em uma pesquisa Datafolha de setembro: num país com 13,2 milhões de desempregados,metade dos eleitores afirmaram preferir ser autônomo, com salários mais altos e pagando menos impostos, ainda que sem benefícios trabalhistas, contra 43% que preferiram ter a carteira de trabalho registrada, com todos os direitos previstos na lei.
Em dezembro, o então presidente eleito havia sido incisivo ao dizer que a legislação trabalhista teria “que se aproximar da informalidade” para que empregos pudessem ser gerados. Em outras ocasiões, Bolsonaro já havia falado sobre o “tormento” de ser patrão no país, algo que repetiu em teor semelhante nesta quinta: “Eu não quero, eu podia ter uma micro empresa com cinco funcionários. Não tenho por quê? Eu sei das consequências depois se o meu negócio der errado, se eu mandar alguém embora, entre outras coisas. Devemos mudar isso daí”. Por fim, o presidente faz ataques contumazes atacou o Ministério Público do Trabalho, cujas atribuições incluem fiscalizar trabalho em condições análogas à escravidão, trabalho infantil e outras irregularidades, e a própria existência da Justiça do Trabalho. “O Ministério Público do Trabalho. Pelo amor de Deus, se tiver clima a gente resolve esse problema. Não dá mais para continuar – quem produz sendo vítimas de ações de uma minoria, mas de uma minoria atuante”, afirmou o capitão.
Carteira “verde e amarela”
Ainda não está completamente claro como o Governo Bolsonaro pretende mexer na questão e se ela será tão prioritária como a reforma da Previdência. Durante a campanha, a proposta de criar uma carteira de trabalho alternativa, “verde e amarela”, foi apresentada como um dos grandes trunfos do plano de Governo para resolver o problema do desemprego. Além da capa inovadora, nas cores da bandeira nacional ao invés da tradicional azul-escuro, o documento contemplaria novas regras para um regime de trabalho “flexibilizado” – e, pela legislação vigente, contrário à Constituição Federal e à CLT. Paulo Guedes, o poderoso ministro da Econômica do Governo Bolsonaro, já adiantou que estes contratos que sua pasta pretende criar “não têm encargos trabalhistas e a legislação é como em qualquer lugar do mundo: se for perturbado no trabalho, você vai à Justiça e resolve”. No discurso de posse, nesta quarta, Guedes disse que estes contratos vão “libertar” o trabalhador da “legislação fascista” da CLT.
No plano de Governo apresentado na campanha, a proposta de mudança nos regimes de trabalho não é esmiuçada – apesar da magnitude da medida, são dedicadas a ela cinco linhas no programa. Mas, de acordo com Guedes, caberá ao jovem optar por qual regime de trabalho ele quer: “Porta da esquerda tem sindicato, legislação trabalhista para proteger e encargos. Porta da direita tem contas individuais e não mistura assistência com Previdência”. Em entrevista à Globo News em outubro, Guedes deu alguns detalhes de sua proposta, e afirmou que o FGTS como “mecanismo de acumulação” será extinto neste regime. Estas alterações vão de encontro ao artigo 7º da Constituição Federal, que trata dos direitos trabalhistas, logo sua implementação dependeria de forte base no Congresso para aprovar, por exemplo, uma Proposta de Emenda à Constituição.
Desde antes de ser eleito Bolsonaro já vinha sinalizando que um tempo com menos direitos poderia estar no horizonte do trabalhador brasileiro como uma espécie de remédio amargo para a criação de empregos. “O que o empresariado tem dito pra mim, e eu concordo, é o seguinte: o trabalhador vai ter que viver esse dia: menos direitos e [com mais] emprego, ou todos os direitos e desemprego”, afirmou o presidenciável. A alteração exigiria mudanças na legislação que não foram feitas na reforma trabalhista, aprovada no Senado em julho de 2017 e sancionada pelo presidente Michel Temer.
Causa e efeito
A proposta bolsonarista não foi vista com bons olhos por economistas em um cenário de crise e falta de investimentos. “Essa medida parte do pressuposto equivocado de que a contratação se dá por conta do custo de mão de obra. As empresas não contratam porque é barato ou caro, mas sim porque a economia está demandando”, explica Antônio Correa de Lacerda, economista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “A solução é fazer a economia crescer, e não achar que um ajuste fiscal por si só provoca um aumento da confiança. É preciso investimento do Estado e financiamento à atividade econômica, isso gera emprego de qualidade”.
Ruy Braga, especialista em sociologia do trabalho da Universidade de São Paulo, também concorda que no momento atual uma flexibilização dos contratos não surtiria o efeito desejado. “Você tem hoje no país uma taxa alta de desemprego por uma combinação de crise econômica com supercapacidade das empresas. O que cria emprego não é rebaixamento dos contratos, é investimento público e privado”, afirma. “Por que um empresário vai ampliar sua planta se não está nem usando toda a capacidade? Esta proposta aumenta a desigualdade e impede que o motor do consumo possa ser um ente dinamizador da economia. Uma proposta como essa não resolve o problema do investimento e piora a situação ao não oferecer ampliação do emprego”.
Além de não resolver o problema, a adoção de dois regimes de trabalho diversos poderá provocar insegurança jurídica. “Para ele propor a criação de um documento desse teria que haver uma nova rodada de revisão na lei trabalhista, Bolsonaro teria que aprovar uma nova reforma que abra essa possibilidade de dois vínculos diferentes”, afirma Alexandre Chaia, economista do Insper. Além disso, caberia ao capitão provar que esta alteração é constitucional. “Isso pode gerar contestações no Supremo Tribunal Federal, não é uma ideia simples de se concretizar”. Chaia acredita que a existência de dois regimes provocará processos por “assédio moral” e outros problemas trabalhistas.
Além disso, o professor também não acredita que no contexto atual a carteira verde e amarela geraria empregos. “No momento em que vivemos, mesmo tendo uma carteira de trabalho sem encargos não necessariamente haveria um aumento das contratações, tendo em vista o cenário de mercado nervoso e expectativas econômicas que não são boas”, explica. “Em outro momento econômico e expandindo o regime para todos poderia fazer sentido. Hoje não acho que alteraria o quadro do trabalho no país, o que resolve é construção civil, consumo, comércio…”.
A reportagem enviou uma série de questionamentos ao ainda gabinete de transição do Governo para elucidar pontos nebulosos envolvendo a carteira de trabalho “verde e amarela”, mas não obteve resposta.
Fonte: El País
Texto: Gil Alessi
Data original da publicação: 04/01/2019