Beneficiário da justiça gratuita ainda paga honorário advocatício sucumbencial na JT

Imagem: Pontonow

O primeiro obstáculo de acesso à justiça é o obstáculo econômico, com a consequente deficiência de aparato jurídico para a assistência aos pobres.

Igor de Oliveira Zwicker

Fonte: Conjur
Data original da publicação: 08/08/2022

Em 20 de outubro de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucionais a parte final do caput e o §4º do artigo 790-B e o §4º do artigo 791-A, ambos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [1].

Antes da publicação do acórdão pela Suprema Corte, a grande maioria — inclusive o próprio Tribunal Superior do Trabalho (TST) — havia entendido que o STF teria considerado inconstitucional a imposição, ao beneficiário da justiça gratuita: 1) da responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais, ainda que tivesse obtido em juízo créditos capazes de suportar a despesa, devendo a União sempre responder por tal encargo; e 2) do pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais, independentemente de o beneficiário ter ou não obtido em juízo, mesmo que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, inexistindo, a partir de então, o rito fixado pela “Reforma Trabalhista” (Lei nº 13.467/2017) de aguardar créditos por dois anos, sob condição suspensiva de exigibilidade, tendo em vista que agora tais créditos seriam, definitivamente, inexigíveis.

Porém, após a publicação do acórdão [2] do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.766 e, posteriormente, do acórdão [3] do julgamento dos embargos de declaração, revelou-se que apenas a primeira conclusão se revelou acertada — no sentido de que o beneficiário da justiça gratuita não tem o ônus de pagar honorários periciais, se sucumbente no objeto da perícia, devendo tal encargo ser suportado pela União, definitivamente —, mas a segunda parte se revelou equivocada: permanece o ônus da parte sucumbente, na Justiça do Trabalho, ainda que beneficiária da justiça gratuita, de pagar honorários advocatícios sucumbenciais.

Com efeito, segundo o STF, se vencido o beneficiário da justiça gratuita, é inconstitucional afastar, ipso facto, a presunção de insuficiência de recursos tão somente pela obtenção da parte em juízo, ainda que em outro processo, de créditos capazes de suportar a despesa.

Porém, a obrigação da parte sucumbente permanece sob condição suspensiva de exigibilidade e poderá ser executada se, em até dois anos, contados do trânsito em julgado da decisão que certificou o crédito, o credor dos honorários advocatícios sucumbenciais (advogado) demonstrar — sendo um ônus seu, do qual deve desincumbir-se cabalmente — que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade.

Caso não exista essa prova — de que a situação de insuficiência de recursos deixou de existir —, dentro do prazo de dois anos assinalado acima, aí sim, a obrigação da parte beneficiária da justiça gratuita em pagar os honorários advocatícios sucumbenciais é extinta, de forma definitiva.

Recentemente, o TST, ao reconhecer expressamente a transcendência jurídica da questão controversa — ou seja, a existência de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista (artigo 896-A, §1º, IV, da CLT) —, publicou acórdão [4], de forma didática, neste exato sentido, ipsis litteris:

“RECURSO DE REVISTA. REGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. HONORÁRIOS PERICIAIS. JUSTIÇA GRATUITA. ARTIGOS 791-A, §4º, E 790-B DA CLT. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 5. 766/DF. TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA RECONHECIDA.
1. Este Relator vinha entendendo pela
 inconstitucionalidade integral dos dispositivos relativos à cobrança de honorários advocatícios do beneficiário da gratuidade judiciária, com base na certidão de julgamento da ADI 5.766/DF, julgada em 20/10/2021.
2.
 Contudo, advinda a publicação do acórdão, em 03/05/2022, restou claro que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da referida ação, declarou a inconstitucionalidade do trecho ‘desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo’ do artigo 791-A, §4º, e do trecho ‘ainda que beneficiária da justiça gratuita’, constante do caput do artigo 790-B, e da integralidade do §4º do mesmo dispositivo, todos da CLT.
3. Em sede de embargos de declaração o Supremo Tribunal Federal
 reafirmou a extensão da declaração de inconstitucionalidade desses dispositivos, nos termos em que fixada no acórdão embargado, em razão da existência de congruência com o pedido formulado pelo Procurador-Geral da República.
4. A
 inteligência do precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal não autoriza a exclusão da possibilidade de que, na Justiça do Trabalho, com o advento da Lei nº 13.467/17, o beneficiário da justiça gratuita tenha obrigações decorrentes da sucumbência que restem sob condição suspensiva de exigibilidade; o que o Supremo Tribunal Federal reputou inconstitucional foi a presunção legal, iure et de iure, de que a obtenção de créditos na mesma ou em outra ação, por si só, exclua a condição de hipossuficiente do devedor.
5. Vedada, pois, é a compensação automática insculpida na redação original dos dispositivos; prevalece, contudo, a possibilidade de que, no prazo de suspensão de exigibilidade, o credor demonstre a alteração do estado de insuficiência de recursos do devedor, por qualquer meio lícito, circunstância que autorizará a execução das obrigações decorrentes da sucumbência.
6. Assim, os honorários de advogado sucumbenciais devidos pela parte reclamante ficam sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executados se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que os certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos do devedor, que, contudo, não poderá decorrer da mera obtenção de outros créditos na presente ação ou em outras. Passado esse prazo, extingue-se essa obrigação do beneficiário.
7. Em relação aos honorários periciais, a seu turno, a supressão resulta em que a União arque com a obrigação, quando sucumbente o beneficiário da justiça gratuita, não mais se cogitando do aproveitamento de créditos. 8. A Corte de origem, ao aplicar a literalidade dos artigos 791-A, § 4º, e 791-B, da CLT, decidiu em desconformidade com o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal. Recurso de revista conhecido e parcialmente provido.”

Para facilitar o entendimento, sugiro ler o artigo 791-A, §4º, da CLT desta forma (redação por mim adaptada):

“Vencido o beneficiário da justiça gratuita, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.”

Por fim, resta válido um último registro: em verdade, o STF não se ateve à constitucionalidade — ou inconstitucionalidade — da totalidade do dispositivo, questão que permanece em aberto. O STF foi claro ao consignar que decidiu à luz da norma-princípio da congruência, ou seja, ateve-se ao pedido inicial da ADI, formulado pelo Procurador-Geral da República.

Existem Tribunais Regionais do Trabalho, por exemplo, que consideram a totalidade da norma-regra inconstitucional, a exemplo do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da Oitava Região (Pará e Amapá).

Segundo o TRT-8ª, por seu Pleno (decisão de 10 de fevereiro de 2020), ao decidir incidente de arguição de inconstitucionalidade, é inconstitucional a totalidade do §4º do artigo 791-A da CLT, por violação a princípios e garantias fundamentais consagrados na Constituição da República — fruto do Poder Constituinte Originário, direitos fundamentais, cláusulas pétreas, de aplicação imediata [5] —, a saber: norma-princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), norma-princípio da igualdade (artigo 5º, caput), norma-princípio de amplo acesso à jurisdição (artigo 5º, XXXV) e garantia fundamental de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovam insuficiência de recursos (artigo 5º, LXXIV).

De acordo com o TRT-8ª, o Estado-legislador, ao impor o pagamento de verbas de sucumbência à parte hipossuficiente, beneficiária da gratuidade da justiça, nega o seu dever de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovam insuficiência de recursos.

Penso que a decisão colegiada no TRT-8ª é a mais acertada. Como bem discorrem Mauro Cappelletti e Bryant Garth, o primeiro obstáculo de acesso à justiça — à ordem jurídica justa — é o obstáculo econômico, com a consequente deficiência de aparato jurídico para a assistência aos pobres [6]. O próprio STF já decidiu, aliás, que descabe ao legislador ordinário restringir a máxima eficácia dos direitos fundamentais.

Há quem defenda onerar o hipossuficiente na Justiça do Trabalho, beneficiário da justiça gratuita, com a máxima de que “não se pode incendiar uma casa para matar um rato”. Eu prefiro sustentar a inconstitucionalidade, com outra máxima: “não se pode curar a enfermidade matando o doente” — é dizer, fechando-se as portas do Poder Judiciário.

Notas

[1] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF derruba normas da reforma trabalhista que restringiam acesso gratuito à Justiça do Trabalho: a cobrança de custas caso o trabalhador falte à audiência inaugural sem justificativa foi mantida. Publicado em: 20 out. 2021. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=475159&ori=1>. Acesso em: 25 out. 2021.

[2] Ementa: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 13.467/2017. REFORMA TRABALHISTA. REGRAS SOBRE GRATUIDADE DE JUSTIÇA. RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DE ÔNUS SUCUMBENCIAIS EM HIPÓTESES ESPECÍFICAS. ALEGAÇÕES DE VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA, INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO, ACESSO À JUSTIÇA, SOLIDARIEDADE SOCIAL E DIREITO SOCIAL À ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA. MARGEM DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CRITÉRIOS DE RACIONALIZAÇÃO DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AÇÃO DIRETA JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. É inconstitucional a legislação que presume a perda da condição de hipossuficiência econômica para efeito de aplicação do benefício de gratuidade de justiça, apenas em razão da apuração de créditos em favor do trabalhador em outra relação processual, dispensado o empregador do ônus processual de comprovar eventual modificação na capacidade econômica do beneficiário. 2. A ausência injustificada à audiência de julgamento frustra o exercício da jurisdição e acarreta prejuízos materiais para o órgão judiciário e para a parte reclamada, o que não se coaduna com deveres mínimos de boa-fé, cooperação e lealdade processual, mostrando-se proporcional a restrição do benefício de gratuidade de justiça nessa hipótese. 3. Ação Direta julgada parcialmente procedente.

(ADI 5766, relator(a): ROBERTO BARROSO, relator (a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 20/10/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-084 DIVULG 02-05-2022 PUBLIC 03-05-2022)

[3] Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 13.467/2017. REFORMA TRABALHISTA. REGRAS SOBRE GRATUIDADE DE JUSTIÇA. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS DE FUNDAMENTAÇÃO NO ACÓRDÃO EMBARGADO. CONGRUÊNCIA ENTRE A CONCLUSÃO DO ACÓRDÃO EMBARGADO E OS PEDIDOS DA PETIÇÃO INICIAL. MODULAÇÃO DE EFEITOS EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA. REJEIÇÃO. 1. O Advogado-Geral da União tem legitimidade para a oposição de Embargos de Declaração nas ações de controle concentrado de constitucionalidade. Precedentes. 2. O acórdão embargado enfrentou e decidiu, de maneira integral e com fundamentação suficiente, toda a controvérsia veiculada na inicial, ausentes os vícios apontados pelo Embargante. 3. Embargos de declaração não se prestam a veicular inconformismo com a decisão tomada, nem permitem que as partes impugnem a justiça do que foi decidido ou suscitem matéria alheia ao objeto do julgamento, pois tais objetivos são alheios às hipóteses de cabimento típicas do recurso (art. 1.022 do CPC/2015). 4. Ausência, no caso de razões de segurança jurídica e interesse social (artigo 27 da Lei 9.868/1999) a justificar a excepcional modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 5. Embargos de Declaração rejeitados.

(ADI 5766 ED, relator (a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 21/06/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-126 DIVULG 28-06-2022 PUBLIC 29-06-2022)

[4] TST-RR-97-59.2021.5.12.0016, 3ª Turma, relator ministro Alberto Bastos Balazeiro, DEJT 24/06/2022.

[5] Artigos 5º, §1º, e 60, §4º, IV, da Constituição da República.

[6] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

Igor de Oliveira Zwicker é doutor em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará); mestre em Direitos Fundamentais pela Unama (PA); especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UCAM (RJ) e em Gestão de Serviços Públicos pela Unama (PA).

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