Barroso, do Iluminismo ao reacionarismo

Foto: Antonio Augusto/STF

Presidente do STF prega contra a constituição social-democrática.

Cássio Casagrande

Fonte: JOTA
Data original da publicação: 10/07/2025

Considero chocante, mas não surpreendente, a entrevista que Luís Roberto Barroso deu ao jornal Folha de S.Paulo na semana passada. Nela, o presidente de nossa Suprema Corte afirmou que “excesso de proteção desprotege o trabalhador”, defendeu que o modelo do trabalhador “celetista, metalúrgico” não é mais o dominante e concluiu que os entregadores de aplicativo e motoristas uberizados estão na categoria de microempreendedores.

As declarações não surpreendem, porque Barroso ataca o Direito do Trabalho sempre que pode, especialmente quando está diante de plateias empresariais – o que ocorre com muita frequência.

A primeira declaração de Barroso choca-se com o próprio fundamento do Direito do Trabalho: proteger uma das partes de uma relação jurídica assimétrica em razão do poder econômico díspare de cada contratante. A Constituição de 1988 em si reconhece e consagra esse princípio no caput do art. 7º, inc I. que estabelece que a relação de emprego deve ser protegida contra despedida arbitrária.

O que seria, pois, o excesso de proteção a que alude o presidente do STF? Ora, a medida desta proteção é exatamente o que está na Constituição e na legislação ordinária, não cabendo aos juízes constitucionais reduzi-la ou restringi-la.

O caput do art. 7º ressalta que a relação de direitos sociais dos trabalhadores não é exaustiva, pois reconhece que também têm status constitucional “outros que visem a melhoria de sua condição social”. Ou seja, o constituinte proclamou o exato oposto do pensamento barrosiano liberal udenista-naftalínico, incentivando o legislador a ir além das proteções estabelecidas na Constituição.

Barroso defende a ideia jamais demonstrada empiricamente de que o excesso de regulação laboral no Brasil reduziria as oportunidades de trabalho. Para demonstrar sua “tese” sofismática, especula que as mudanças da reforma trabalhista teriam contribuído para os baixos índices de desemprego atualmente registrados.

Bem, ocorre que no ano de 2010 a taxa desemprego era baixíssima (5,3%, dados do IBGE) como a atual e isso ocorreu com a legislação trabalhista pré-reforma. Então, a relação de causa e efeito imaginada por Barroso não passa de uma grande falácia argumentativa. O que gera emprego é o crescimento econômico e não “leis”, lição básica de economia que o presidente do STF, tão sensível a argumentos econômicos, parece ignorar.

Ainda mais falaciosa é a alegação de que “aquela ideia do trabalhador celetista, metalúrgico, empregado, que cumpre oito horas regularmente já não é mais, talvez, a dominante no mercado de trabalho”.

Primeiro, por que associar CLT a trabalhador metalúrgico? A legislação trabalhista não foi criada e não está na Constituição apenas para proteger o trabalhador fabril. Ela é destinada a todo e qualquer empregado que trabalha com subordinação hierárquica no sistema capitalista: comerciários, eletricitários, empregados de escritório, trabalhadores do agro, domésticas, cuidadores de idosos, enfermeiros, motoristas de ônibus, garçons, terceirizados etc. – essa massa da classe trabalhadora que, sim, continua sendo dominante no mercado laboral.

O ministro “esqueceu” que temos “apenas” 40 milhões de carteiras assinadas no Brasil sob regime CLT e que esse é, sim, o tipo de contrato dominante no mercado de trabalho, pois representa fatia maior que a dos trabalhadores informais ou com contrato como “MEI”. Impressiona como o presidente do STF recorre a argumentos contrários aos fatos sem ruborescer.

E para coroar essa declaração desprovida de fundamento fático, Barroso ainda sugere que os celetistas teriam deixado de ser dominantes “no mercado de trabalho de hoje em que você tem pequenos empreendedores individuais, entregadores do iFood, motorista do Uber”.

Bem, segundo dados do IBGE de 2024, cerca de 1,5 milhão de brasileiros trabalham por meio de aplicativos… Ou seja, Barroso quer sugerir que essa é a “nova” forma dominante no mercado de trabalho em contraste aos 40 milhões de celetistas do país. Mais grave, é associar esses trabalhadores a “microempreendedorismo”, quando o próprio STF ainda não decidiu processo que lá se encontra sobre o status jurídico desta forma de trabalho. O ministro está antecipando publicamente o seu entendimento, em violação ao Estatuto da Magistratura?

Como o STF não pode retirar os direitos sociais que estão na Constituição social-democrática, o que a corrente liberal da corte está fazendo? Permitir que o patronato opte por um regime de trabalho que lhe convier, independentemente da realidade fática, bastando rotular o trabalho como “microempreendedorismo”, vulgo pejotização. Em um passe de mágica, a CLT, de fato, deixará de ser dominante, por obra e graça da jurisprudência do Supremo.

Barroso – que um dia imaginou que os juízes constitucionais teriam um papel iluminista de “empurrar” a história rumo ao progresso da humanidade – hoje age como um reacionário que nesse papel também empurra o relógio da história: para trás, para o século 19, quando as relações de trabalho eram regidas pelo Direito Civil.

 

Cássio Casagrande é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro. Visiting Scholar na George Washington University (2022)

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