
Ministro deixa um legado de ataques à proteção trabalhista que aproximou o STF da Era Lochner.
Rodrigo Carelli
Fonte: JOTA
Data original da publicação: 22/10/2025
Para se fazer um perfil-balanço da atuação do Ministro do STF Luís Roberto Barroso na área trabalhista deve-se começar e terminar pelo fato mais marcante em relação ao tema: a divulgação da falsa (e absurda) “informação” de que o “Brasil, sozinho, é responsável por 98% dos processos trabalhistas de todo o planeta”. E não foi a única notícia falsa que o ministro apresentou no mesmo discurso: também deixou a entender que o Citibank havia deixado o Brasil por conta das ações trabalhistas, que o próprio o próprio banco desmentiu. Ao divulgar o implausível dado e o fato inexistente, Barroso afirmou que a informação original era de Flávio Rocha, proprietário da Riachuelo. No mesmo discurso, o ministro anunciou à claque empresarial ainda quais as medidas que o Supremo Tribunal Federal estaria tomando para enfrentar o problema, diagnosticado por ele como “excesso de proteção, (que), em última análise, desprotege.” A fala foi realizada em um fórum no Reino Unido patrocinado por grandes empresas brasileiras ou estrangeiras com atuação no Brasil.
Essa anedota ilustra três pontos cruciais e característicos da passagem de Barroso pelo Supremo Tribunal Federal: (1) a participação ativa em eventos de, com e para empresários, (2) a utilização das ideias do patronato sem respaldo fático ou científico e (3) o ataque incansável à proteção trabalhista.
Barroso passou todo o seu período na Suprema Corte ouvindo e falando com e para empresários. Em 2025, até o mês de junho, tinha recebido oficialmente 22 representantes do patronato e nenhum de trabalhadores (com exceção de representantes de servidores do Poder Judiciário Federal, seus subordinados diretos) e participado de diversos eventos empresariais, no Brasil e principalmente fora, onde discursou para os brasileiros convidados, em geral os próprios empresários e seus representantes. O Ministro se tornou, através dos anos no STF, figurinha fácil em eventos, do Guarujá a Paris, passando por Nova Iorque e Zurique, do BTG Pactual (onde, aliás, seu jovem filho ocupa cargo de diretor nos Estados Unidos) do Grupo empresarial Esfera Brasil, do Grupo de Líderes Empresariais – LIDE, além de outros patrocinados por grandes empresas, boa parte delas com ações a serem julgadas no Supremo Tribunal Federal. É ao mesmo tempo ridículo e carregado de simbolismo discutir o Brasil em eventos de empresários na Europa e nos Estados Unidos, mas Barroso defendeu a participação dizendo que estava discutindo as ações do Supremo com a “sociedade” (sociedade brasileira fora do Brasil?) e que há “preconceito contra a iniciativa privada” (sic)..
Em suas palestras, Barroso tentou disseminar a ideia de que realmente a legislação trabalhista e o sistema da Justiça do Trabalho prejudicam o emprego e o país e são contra o interesse dos trabalhadores, que acabariam “desprotegidos”. Em suas próprias palavras, Barroso transformou essa ideia em “princípio”, que ele mesmo criou, para guiar suas decisões: “preservação do emprego e aumento da empregabilidade”. É o famoso mantra ideológico, sem base na empiria, de que “melhor trabalho sem direitos do que direitos sem trabalho”, que tem em Jair Bolsonaro um dos seus repetidores tão fiéis quanto Barroso, sempre amplificado pela mídia tradicional alinhada com os interesses patronais. E conseguiu a proeza de que no relatório da reforma trabalhista o falso dado em relação às ações trabalhistas brasileiras constasse no relatório da Reforma Trabalhista de 2017 como forma de justificar as modificações na lei restritivas ao acesso à Justiça do Trabalho. E usou sempre esse mantra ou como quer, “princípios de atuação” em seus votos, que em sua grande parte são contra os trabalhadores, chegando a 85% em 2022.
Deve ser lembrado que a Reforma Trabalhista de 2017 começa bem antes, em 2015, em processo de sua relatoria sobre a validade de plano de demissão incentivada – PDI, que chancelou a renúncia de direitos quando o plano for aprovado por negociação coletiva, ficando então estabelecida a prevalência do negociado sobre o legislado. No ano seguinte, houve julgamento da constitucionalidade da lei que cria a jornada 12 por 36 para bombeiros civis em que Barroso afirmou que “toda a tendência do Direito do Trabalho contemporâneo é no sentido da flexibilização das relações e da coletivização das discussões”, mas ao mesmo tempo, defendeu que caberia “ao empregador e ao empregado de, por contrato de trabalho, convencionarem diferentemente” da lei. Ou seja, de maneira contraditória com o que disse no mesmo julgamento, já demonstrava a intenção clara de avançar para a prevalência da negociação individual de patrão e empregado sobre a lei, projeto que retomaria mais à frente. Barroso foi o relator da Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional que atacou a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho e declarou a legalidade da terceirização nas atividades fins e meio.
Um dado retrata com nitidez sua passagem no banco de supremos julgadores: Barroso votou pela constitucionalidade de todos os dispositivos que foram colocados à prova na Suprema Corte, inclusive daqueles que o STF acabou invalidando, permanecendo ao final vencido, como no caso do quórum especial para edição de súmulas no Tribunal Superior do Trabalho e na questão do pagamento de honorários por beneficiário da justiça gratuita, neste último caso tendo sido o relator original. Entusiasta da Reforma Trabalhista, afirmou recentemente, sem qualquer referência a evidências empíricas, que as alterações resultaram em diminuição do desemprego.
Na questão da pejotização o ministro Barroso finalmente pôde desenvolver sua ideia colocada quase dez anos antes de prevalência do negociado individualmente sobre a proteção legal, derrubando decisões da Justiça do Trabalho em Reclamações, seja de altos empregados travestidos de pessoa jurídica, seja de trabalhadores de baixos salários (apesar da decisão do ministro dizer que se tratava de profissional de remuneração expressiva, não chegava a dois salários mínimos – entre dois a três mil reais era a sua remuneração).
Na sua gestão como presidente do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que coincide com a mesma função no STF, criou grupo de trabalho para discutir a “litigiosidade na Justiça do Trabalho”, afirmando que “essa litigiosidade prejudica o país, a segurança jurídica e a atratividade do país para fins de investimentos. Você só sabe o custo de uma relação do trabalho no Brasil depois que ela termina, isso é muito problemático, inclusive, do ponto de vista da empregabilidade.” Das discussões desse grupo saiu a redação da Resolução do Conselho Nacional de Justiça sobre a BTG Pactual. Foi BTG Pactual pela plateia de empresários presentes no evento em que anunciou essa medida, com pompa e circunstância e como ótima notícia, pois “proibiria” o ajuizamento de ações pelo trabalhador que concordar com a homologação da rescisão e terminaria com a “indústria das reclamações trabalhistas”.
Em sua presidência do CNJ, esteve à frente de um claro ato de violência institucional. Criou o Exame Nacional da Magistratura – ENAM, uma etapa obrigatória para todas as pessoas que desejam ser magistradas no Brasil, em qualquer dos ramos, inclusive trabalhista. No entanto, não há questões de direito do trabalho. Em claro ataque, apesar de constar no edital que na disciplina direito constitucional poderá haver questões de direito constitucional do trabalho, toda a parte dos direitos fundamentais trabalhistas, do art. 7º ao 11, foram extirpados do programa. Ou seja, os direitos trabalhistas, para Barroso, nem são direitos fundamentais sociais (só o “direito ao trabalho”, que consta do programa). A liberdade econômica está presente, mas não a valorização do trabalho humano.
A Era Barroso no Supremo Tribunal Federal, é relacionada muitas vezes com a chamada Era Lochner, período no qual insistentemente a Suprema Corte dos Estados Unidos rechaçava a aplicação de direitos sociais, cujos argumentos são extremamente similares ao que Barroso defende, chamando sua ideologia de “lochnerismo”. Não menos interessante que Barroso tenha, logo antes de anunciar sua aposentadoria do Supremo Tribunal Federal, proposto o Darwinismo Social para o futuro do direito do trabalho, o que faz todo o sentido para todo o conjunto de ideias que propugna hoje, que eram vanguarda na virada do século XIX para o século XX.
Barroso termina sua saga no Supremo Tribunal Federal soltando a voz com os empresários não somente em eventos de institutos empresariais. Em jantar na residência do CEO da iFood, BTG Pactual que patrocina o Forum Brazil UK citado no começo deste texto (aliás, quem estava presente novamente no Forum Brazil UK este ano? Quem adivinhar não ganha nada, pela facilidade extrema da adivinha). A ironia é que a aposentadoria anunciada de Luís Roberto Barroso o impedirá de julgar os temas do trabalho em plataformas digitais e da pejotização, bastante caros à empresa. Porém, não se pode negar que durante todos esses doze anos de trajetória o ministro teve importante papel, não somente em emprestar voz aos empresários nas questões trabalhistas no Supremo Tribunal Federal, mas em implementar várias medidas do interesse da classe patronal.
Rodrigo Carelli é doutor em Ciências Humanas (Sociologia), Professor de Direito do Trabalho e da Pós-Graduação em Direito na Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). É Procurador Regional do Trabalho, atualmente convocado para a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público do Trabalho

