Se antigamente era bastante incomum ver demandas trabalhistas chegarem ao Supremo Tribunal, hoje, há real necessidade de acompanhamento da agenda pertinente à matéria lá na corte, que tem decidido sobre o rumo que o Direito do Trabalho terá no Brasil.
Rosangela Rodrigues Lacerda e Silvia Teixeira do Vale
Fonte: Conjur
Data original da publicação: 19/08/2022
Não é surpresa para ninguém que a Corte Suprema tem se consagrado como o órgão de cúpula em matéria trabalhista já há alguns anos. Se antigamente era bastante incomum ver demandas trabalhistas chegarem ao Supremo Tribunal, pela ausência de repercussão geral, hoje, há real necessidade de acompanhamento da agenda pertinente à matéria lá na corte, que tem decidido sobre o rumo que o Direito do Trabalho terá no Brasil, desde matérias claramente infraconstitucionais, como é exemplo a definição sobre ônus da prova em eventual conduta culposa na fiscalização de obrigações trabalhistas, no caso de responsabilidade subsidiária do ente público (RE 1.298.647, Tema 1.118, da tabela de repercussão geral), até temas que costumeiramente eram considerados matéria meramente contratual, como a definida no Tema 1.046, que trata dos limites do que se intitulou chamar de negociado sobre legislado.
Recentemente, porém, a Suprema Corte brasileira julgou inconstitucional a súmula nº 450 do TST, cuja redação original prevê que “a concessão de férias, sem o devido pagamento do salário e do adicional de 1/3, com dois dias de antecedência, além de ensejar multa administrativa, leva ao pagamento da dobra do valor das férias”. A referida declaração de inconstitucionalidade decorreu de ADPF ajuizada pelo governador do estado de Santa Catarina, ao argumento de que o verbete violaria os princípios constitucionais da separação dos poderes e da legalidade, ao criar sanção ao empregador sem previsão legal, vez que o artigo 137 da CLT não trata de tais hipóteses.
A primeira indagação a ser respondida neste ensaio é: é cabível ADPF a fim de declarar a inconstitucionalidade de súmula?
O debate foi travado nesta mesma ADPF nº 501/DF e vale recordar que já em 2017, o ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, não admitiu questionamento acerca da súmula nº 450 do TST, por entender que o pedido não especificava ato do poder público com conteúdo que possa conduzir à efetiva lesão a preceito fundamental (cf. artigo 4º, § 1º da Lei nº 9.882/1999).
Porém, majoritariamente, pelo voto condutor do ministro Ricardo Lewandowski, decidiu o STF que caberá ADPF contra enunciados sumulares, quando estes enunciem preceitos gerais e abstratos, desde que satisfeito o requisito da subsidiariedade. Esse mesmo direcionamento foi adotado nas ADPFs nº 323/DF e 80/DF, que igualmente intentavam a declaração de inconstitucionalidade de súmulas do TST.
Superada essa reflexão, na decisão da ADPF nº 501/DF, o plenário do STF, em 5/8/2022, por 7 votos a 4, julgou procedente o pedido da referida ação, “a) para declarar a inconstitucionalidade da súmula nº 450 do TST” e “b) invalidar decisões judiciais não transitadas em julgado que, amparadas no texto sumular, tenham aplicado a sanção de pagamento em dobro com base no art. 137 da CLT”.
Ao ter o STF acolhido as razões expostas na ADPF, chancelou os argumentos de separação dos poderes e princípio da legalidade, ambos preceitos constitucionais sob a guarda da Corte Suprema e que não podem ser ignorados.
Nada obstante, é justo recordar que tais razões de decidir, apesar de encontrarem amparo no Texto Maior, não são observadas pela própria jurisprudência do STF, conforme se observa na súmula vinculante nº 11, segundo a qual:
“só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado” (aqui).
Percebe-se claramente, pelo teor literal da indigitada súmula, que o Supremo Tribunal Federal criou critérios para o uso de algemas (somente em casos de resistência), com conceito jurídico indeterminado (fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia), estabelecendo formalidade não prevista formalmente em lei (justificada a excepcionalidade por escrito), inclusive considerando ilícito administrativo, civil e penal, passível de punição (sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado). Tais critérios não constam de qualquer lei expressamente positivada, mas a Corte Maior, em sua constituição plenária, ao analisar e julgar o HC 91.952, com decisão publicada no DJe de 19/12/2008, cuja relatoria coube ao ministro Marco Aurélio, invocou os princípios da não-culpabilidade e que do princípio do Estado Democrático decorre “o inafastável tratamento humanitário do cidadão, na necessidade de lhe ser preservada a dignidade”, que igualmente encerra conteúdo principiológico. Isso não seria ofensivo aos princípios da legalidade e separação dos poderes? Parece que assim não conclui a corte, inclusive em demais julgados.
Em 2011 os ministros do Excelsa Corte, ao julgarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, reconheceram a união estável para casais do mesmo sexo, com efeito vinculante, no sentido de dar interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
Percebe-se, assim, que invocando o princípio da não discriminação, a Suprema Corte acresceu significado ao artigo do Código Civil, embora, literalmente não houvesse, à época, previsão no sentido do que restou decidido.
No julgamento da ADPF nº 54, igualmente com a relatoria do ministro Marco Aurélio de Melo, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o aborto de feto anencefálico não é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal, malgrado tal previsão não encontre previsão legal expressa no referido diploma normativo e o Direito Penal seja atrelado ao princípio da legalidade estrita.
Ou seja, por meio do indigitado julgado, a Suprema Corte descriminalizou a hipótese de aborto de feto anencefálico, também sem previsão em norma estatuída pelo legislador.
Em 13/06/2019, o STF, julgando a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 acolheu o enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria.
Em 28/10/2021, o STF julgou o Habeas Corpus (HC) 154.248, e decidiu que o crime de injúria racial configura um dos tipos penais de racismo e é imprescritível, embora a lei especificamente não tenha previsão nesse sentido.
Como se observa pela exposição de alguns dos julgados da Corte Suprema, percebe-se claramente um avanço em relação aos direitos de liberdade ou liberdades públicas, o que demonstra, no sentir destas ensaístas, um viés eminentemente liberal do STF e aqui não se faz uma crítica no que diz respeito à necessidade de avanço da pauta de liberdade, mas apenas se constata que não há em relação aos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores o mesmo ímpeto progressista. Ao revés, o que se pode observar na jurisprudência mais recente da corte em relação ao direito dos trabalhadores, é um imenso retrocesso na pauta social trabalhista.
Recorde-se, por exemplo, que em 2018, o STF, julgando a ADPF nº 324/DF e o RE nº 958.252 fixou a tese segundo a qual é livre a terceirização em território brasileiro, antes da reforma trabalhista operada em 2017, tendo nos referidos julgados havido menção expressa de ofensa à legalidade na súmula nº 331 do TST, que veda a terceirização em atividade-fim, sem previsão expressa na legislação.
Julgando a ADC nº 48, o STF decidiu que “uma vez preenchidos os requisitos dispostos na Lei nº 11.442/2007, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista”. Ora, a partir do citado julgado, a Corte Suprema chancelou o princípio da forma sobre a realidade, afrontando princípio específico do Direito do Trabalho.
Julgando o RE 606.003, referente ao Tema nº 550 da tabela de repercussão geral, o STF decidiu que “preenchidos os requisitos dispostos na Lei 4.886/65, compete à Justiça Comum o julgamento de processos envolvendo relação jurídica entre representante e representada comerciais, uma vez que não há relação de trabalho entre as partes”. A decisão, com todas as vênias possíveis, afronta a literalidade do artigo 114 da CRFB/88, que afirma expressamente a competência material da Justiça do Trabalho para julgar todas as demandas que disserem respeito à relação de trabalho. A interpretação estreita do referido dispositivo constitucional afronta não só o princípio da supremacia da Constituição e a efetividade de suas normas, mas vai no sentido oposto ao que ao que o STF tem avançado em relação aos direitos de liberdade.
Também em decisão monocrática no ARE 709.212, o ministro Gilmar Mendes decidiu que o prazo prescricional para cobrança dos depósitos de FGTS é o do artigo 7º, XXIX, da CRFB/88, ignorando o próprio caput do artigo 7º da Carta Maior, que ordena uma marcha social para a frente e impede retrocessos sociais sem compensações, além de ter olvidado que o FGTS está presente no Título II, dos Direitos e Garantias Fundamentais e, como tal, deve ser tratado, na sua máxima potencialidade.
Como se percebe pelo singelo e rápido contraponto da jurisprudência do STF em matéria pertinente aos direitos fundamentais de liberdade e aos direitos fundamentais sociais, não há coerência na interpretação, nem nos argumentos, sendo certo que se vê uma Suprema Corte bem próspera em relação aos primeiros, mas resistente em evoluir em relação aos segundos e, por vezes, até julgando contrariamente ao princípio da legalidade, que tanto é invocado em relação aos direitos de liberdade.
Rosangela Rodrigues Lacerda é procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 5ª Região, professora adjunta da Universidade Federal da Bahia, mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo, professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, Cers, Ucsal, Unifacs e das escolas judiciais do TRT da 5ª, 6ª, 7ª e 16ª Regiões.
Silvia Teixeira do Vale é juíza do Trabalho no TRT da 5ª Região, mestra em Direito pela UFBA, doutora pela PUC-SP, pós-doutora pela Universidade de Salamanca, professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, Ematra5, Cers, Cejas, Ucsal e da Escola Judicial do TRT da 5ª, 6ª, 10ª, 13º e 16ª Regiões, autora de livros e artigos jurídicos e ex-professora substituta da UFRN.