Associar a CLT ao fascismo é uma mistificação da História

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 06/08/2018

Acompanhei algumas edições do “Roda Viva”, da TV Cultura, com os candidatos presidenciais. Percebi uma coisa interessante: todos eles têm sido perguntados sobre a Reforma Trabalhista. E se a malsinada Reforma, que vem de ser elaborada, suscita ainda tantas inquietações em uma eleição presidencial, é porque ela, de fato, foi mal feita e não pacificou o país a respeito do modelo ideal de relações de trabalho.

Mas o que me chamou atenção, nos programas a que assisti, foi o baixo nível intelectual dos debates em torno deste tema (e de outros também). Durante o programa com a candidata de um partido de esquerda, espantou-me que entrevistador e entrevistada aparentassem desconhecer por completo a história do Direito do Trabalho no Brasil. Como se sabe, o programa Roda Vida, convida, além de jornalistas, representantes de entidades da sociedade civil para arguir o candidato. Neste dia, estava lá alguém que representava a “Sociedade Rural Brasileira” e que formulou à postulante à presidência a seguinte pergunta: “por que você defende a CLT, que é uma cópia ipsis literis da Carta del Lavoro fascista?” Diante desta afirmação estapafúrdia, imaginei que a candidata iria espicaçar e espezinhar o seu arguidor, desvelando ao público seu impressionante desconhecimento da história do país e do mundo. Mas, que nada. A entrevistada sequer questionou a validade da assertiva, simplesmente saiu pela tangente, falando de outra coisa sobre a Reforma Trabalhista. A ignorância sobre a nossa história parece ser comum à direita e à esquerda.

O pior é que essa ignóbil associação da CLT ao fascismo italiano foi repetida ad nauseam pelos arautos da Reforma Trabalhista ao longo do ano passado, ao ponto de ser encontradiça até mesmo no Relatório do deputado Rogério Marinho (fls. 17), onde consta que as regras da CLT “foram inspiradas no fascismo de Mussolini”. Mas de onde vem essa afirmação completamente non sense?

Antes de mais nada, é absolutamente incorreto dizer que a CLT é cópia “literal” da Carta del Lavoro, porque este documento, ao contrário do que muitos imaginam, sequer é uma lei ou código; trata-se de uma proclamação política do Partido Nacional Fascista Italiano editada em 1927, que deveria orientar o programa de governo do partido. Neste documento transparece uma concepção de estado “corporativo”, no qual o papel dos sindicatos na ordem econômica e social pode ser vislumbrado em seu enunciado III, que assim estabelecia: “Há liberdade de organização profissional ou sindical. Mas somente o sindicato legalmente reconhecido e sujeito ao controle do Estado tem o direito de representar legalmente toda a categoria de empregadores ou empregados que o constituem. […] ou estipular contratos coletivos de trabalho que vinculem todos aqueles que pertencem à categoria, ou impor-lhes taxas ou exercer em seu nome funções delegadas de interesse público.”

Como o leitor percebe, está subjacente a esse postulado o preceito da intervenção do estado na organização dos sindicatos mediante o estabelecimento do princípio de unicidade sindical. É certo e inequívoco que o art. 516 da CLT seguiria a mesma linha. Porém, é preciso considerar vários fatores que tornam absolutamente falsa a afirmativa de que a CLT (como corpo de normas) foi inspirada no fascismo italiano. Vamos a eles.

A concepção “corporativa” de ordem sindical (isto é, sindicato único autorizado e regulado pelo Estado) é anterior ao fascismo, que a abraçou tardiamente; ela estava presente em fins do século XIX tanto no positivismo sociológico de Augusto Comte, como na “doutrina social” da Igreja Católica, especialmente nas encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno.

Esta ideologia corporativa da ordem sindical era uma reação reformista ao sindicalismo revolucionário de origem socialista e anarquista e estava em grande voga nas primeiras décadas do século XX como política conservadora, sendo adotada tanto em estados autoritários (Itália, Turquia, Portugal e Brasil), como em estados liberais democráticos, (França, Nova Zelândia e Estados Unidos). Observe-se que, quanto a este último país, após o crash de 1929 e a eleição de Franklin Delano Roosevelt para a presidência, o Congresso norte-americano aprovou, em 1935, a National Labor Relations Act, que tinha uma concepção que reservava importante papel ao Estado na organização dos sindicatos, através da instituição do National Labor Relations Board, órgão que tinha poder de organizar eleições entre trabalhadores para a formação de sindicatos (pelo critério de unicidade sindical) e de definir a dimensão das categorias (bargaining unit), além de instituir contribuições compulsórias (agency fee) destinadas às entidades sindicais. Além disto, como se sabe, esta legislação permitia até mesmo, em situações extremas, a intervenção do Estado em casos de greve, o que veio a ocorrer, por exemplo, durante a Guerra da Coreia, quando o governo Truman encampou siderúrgicas para pôr fim a conflitos trabalhistas. São essas características, aliás – ainda vigentes hoje na sua essência – , que impedem os EUA de assinarem a Convenção 87 da OIT, sobre liberdade sindical. Ou seja, trata-se de um modelo que em linhas gerais tem as mesmas inspirações ideológicas “corporativas” da “Carta del Lavoro”, porém nunca se disse que o sistema de Direito Coletivo do Trabalho dos EUA é “fascista”.

Alguns querem atribuir um suposto caráter fascistoide à CLT devido à natureza autoritária do Estado Novo. Não se pode ignorar, todavia, que as linhas mestras das normas sobre sindicalismo na CLT foram fixadas muito antes do advento da ditadura estadonovista. Foi durante a passagem do político gaúcho Lindolfo Collor pelo Ministério do Trabalho, entre 1931 e 1932, no Governo Provisório instaurado pela revolução que levou Vargas ao poder, que o avô do ex-presidente Fernando Collor determinou a opção pelo modelo de intervenção do estado na organização sindical, com a existência de um sindicato único e oficial. Lindolfo Collor (como o próprio Vargas e todos os políticos gaúchos daquela geração) era fortemente influenciado pelas ideias positivistas de Augusto Comte, inclusive sobre o papel do Estado em relação aos sindicatos, como pode ser percebido na exposição de motivos do Decreto 19.770/31, que já estabelecia a figura da unicidade e do controle do governo sobre o registro sindical.

Não há, em nenhum dos diversos trabalhos de Lindolfo Collor sobre Direito do Trabalho, qualquer menção à Carta del Lavoro, sendo, aliás, a doutrina francesa a sua maior influência. Além disto, o verdadeiro criador do sistema de sindicato único no Brasil era um declarado adversário dos sistemas totalitários. Collor, descendente de alemães nascido em São Leopoldo, exilou-se do país após o advento do Estado Novo e foi morar uns tempos na Alemanha de seus antepassados, onde se opôs firmemente ao regime nazista, cujo caráter maligno denunciou em vários artigos e cartas, que, inclusive, acabaram censurados no Brasil pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas.

É verdade que, mais tarde, já durante o período autoritário de Vargas, o jurista Francisco de Oliveira Vianna foi quem influenciou intelectualmente o grupo que delinearia de forma mais orgânica o sistema sindical cartorial que viria a ser fixado na CLT, em 1943. Embora seja, com razão, identificado com o chamado “pensamento autoritário brasileiro”, de viés conservador, centralizador e antiliberal (e que exerceu grande influência intelectual nos anos 30), Oliveira Vianna não pode ser classificado como um intelectual “fascista”. Em todos os seus escritos sobre direito do trabalho, há referências expressas à doutrina social da Igreja Católica e até mesmo às então recentes políticas do New Deal, de FDR. E, além disto, no grupo de juristas que participou formalmente dos trabalhos preparatórios da CLT, havia também aqueles de tendências moderadamente liberais (como Segadas Viana e Arnaldo Sussekind).

Fosse assim tão simplório o exame do processo histórico, teríamos que carimbar com o rótulo de “fascista” todos os relevantes códigos e importantes leis que foram elaborados durante o Estado Novo por juristas conservadores, o que incluiria a Lei de Introdução ao Código Civil de 1942, o CPC de 1939 e os vigentes Código Penal (1940) e Código de Processo Penal (1941). Todos esses diplomas carregam, é claro, algum traço de concepções autoritárias de poder, mas daí a classificá-los como normas fascistas, vai uma enorme diferença.

E, ainda que se pudesse dizer que o art. 516 da CLT tem a mesma concepção do enunciado III da Carta del Lavoro, seria absolutamente incorreto afirmar que o diploma brasileiro, no seu conjunto, teve inspiração do “fascismo de Mussolini”. Além de estabelecer a ordem sindical, no plano do Direito Individual do Trabalho a CLT limitou a jornada laboral, assegurou o direito de indenização pela cessação do contrato, fixou salário mínimo e normativo, disciplinou o direito a repouso semanal e a férias, regulamentou o trabalho de adolescentes e mulheres, estabeleceu normativas de saúde e segurança no trabalho, criou sistema de inspeção laboral e introduziu modernas normas de processo do trabalho, entre tantas outras importantes inovações. O que há de fascista nisso? Absolutamente nada, são normas que já haviam sido introduzidas nos países liberais e capitalistas mais avançados da Europa e que chegavam já muito tardiamente ao Brasil.

Aliás, normas que foram adotadas com ênfase em governos conservadores, como o de Bismarck na Alemanha e de Disraeli na Inglaterra, justamente para conter o avanço dos movimentos socialistas e incorporar a classe trabalhadora à democracia liberal. E, observe-se, foram justamente as proteções aos direitos individuais dos trabalhadores (que, repita-se, nem de longe têm a ver com políticas autoritárias dos anos 30) que foram o objeto de ataque central na Reforma Trabalhista, defendida a pretexto de se combater um suposto “fascismo” da legislação trabalhista… É realmente espantoso o grau de revisionismo e falsificação da história a que chegaram os parlamentares que lideraram esse processo.

É preciso, finalmente, contextualizar histórica e politicamente a “Carta del Lavoro”, pois em 1927 se percebe uma certa confusão ideológica implícita àquela proclamação, típica do entreguerras, quando a democracia liberal enfrentava séria crise e se buscavam soluções autoritárias à esquerda e à direita, misturadas a políticas conservadoras. Veja-se, por exemplo, que certos aspectos de influência até mesmo liberal ainda estavam presentes naquele documento, como se percebe de seu postulado VII: “O Estado corporativo considera a iniciativa privada, no campo da produção, como o instrumento mais eficiente e útil da nação.” Será que poderíamos considerar esta ode à iniciativa privada como “fascista”, pelo simples fato de estar ela inscrita na Carta del Lavoro?

Aliás, vejam só, caros leitores, que coisa curiosa: os princípios básicos da ordem sindical brasileira que comungariam dos mesmos conceitos adotados na Carta del Lavoro foram todos incorporados ao art. 8º. da Constituição democrática e cidadã de 1988 (como tinham estado, também, nas Constituições de 1946 e 1967). Lá estão a unicidade, o registro sindical, as contribuições recolhidas via Estado e o poder normativo do judiciário. Pergunto se há alguém que, por esse simples fato, denomine a nossa vigente Carta constitucional de “fascista”.

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Para quem quiser estudar a história da construção do Direito do Trabalho no Brasil, notadamente no que diz respeito às fontes ideológicas prevalecentes nos anos 1930 a 1940, recomendo os seguintes livros, onde algumas das informações aqui mencionadas podem ser encontradas:
– LIMA, Mário de Almeida. Origens da Legislação Trabalhista Brasileira. Exposição de Motivos de Lindolfo Collor. Brasília: Edições do Senado Federal, volume 216, 2015.
– ARRUDA, Hélio Mário. Oliveira Vianna e a Legislação do Trabalho no Brasil. São Paulo: LTr, 2007; WERNECK VIANNA, Luiz. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
– OLIVEIRA VIANNA, Francisco. Direito do Trabalho e Democracia Social. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.
– OLIVEIRA VIANNA, Francisco. Problemas de Direito Corporativo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.

Cássio Casagrande é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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