O capitalismo historicamente se reinventa, mas mantém a perspectiva de perversidade sobre os trabalhadores. No atual capítulo da história brasileira, as mudanças no Trabalho e na Previdência assumem esse papel. Para o filósofo e economista José Dari Krein, as políticas de austeridade começadas em 2015 representam um “processo continuado de deterioração do mercado de trabalho, com a explosão do desemprego aberto e oculto, fazendo com que no começo de 2019 haja 27,9 milhões de brasileiros e brasileiras na condição de subutilização, que continua refirmando as discriminações históricas”.
Segundo Krein, a reforma trabalhista foi implantada com falsas promessas, pois, um ano e meio depois, a economia apresenta índices ainda piores. “O ministro da Fazenda ‘profetizou’ que ela iria criar 6 milhões de empregos. Por enquanto, o desemprego aberto em março está pouco acima do de outubro de 2017”, afirma o economista, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Da mesma forma, o projeto de reforma da Previdência intensifica o desmonte do sistema previdenciário que a reforma trabalhista “já arruinou”. Krein argumenta que há “a possibilidade de [a reforma da Previdência] ter efeitos perversos sobre as bases de arrecadação, pois pode contribuir para uma desestruturação ainda maior no mercado de trabalho”.
Desse modo, o capitalismo segue na “sua busca sem limites por acumulação”. O economista então alerta para a ofensiva de “novas rodadas de reformas na perspectiva de ampliar o grau de mercadorização da força de trabalho”, e diz que o que está em jogo “não pode se limitar à questão fiscal, pois está em jogo o tipo de sociedade que se pretende construir”.
José Dari Krein é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, tem mestrado e doutorado em Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde atualmente é professor no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – Cesit.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Como observa a situação do trabalho e dos trabalhadores no Brasil nesse contexto de crise anterior à reforma trabalhista, entre os anos 2014 e 2017?
José Dari Krein — O ano de 2015 significa uma inflexão na trajetória do mercado de trabalho com a interrupção de uma tendência que vinha desde o começo do século XXI, em que, mesmo com movimentos contraditórios, havia uma tendência de diminuição do desemprego, de elevação do número de ocupados protegidos pela seguridade social com a formalização dos contratos e uma melhora dos rendimentos do trabalho, especialmente para os que estavam na base da estrutura social.
É uma tendência com contradições, pois continua ocorrendo um processo de flexibilização das relações de trabalho, de terceirização e de uma crescente polarização nas ocupações geradas, em que parte expressiva das pessoas trabalham em atividades com baixa remuneração. Apesar dos avanços, o mercado de trabalho continuou apresentando características bastante desfavoráveis, tais como um alto índice de pessoas trabalhando na informalidade (próximo de 42%), inserção em ocupações precárias, prevalência de baixo poder de compra dos salários e de desigual distribuição e alta rotatividade.
No entanto, havia um movimento que podemos chamar de estruturação do mercado de trabalho, com geração de empregos e aumento da formalização, ainda que grande parte destes fossem precários.
Desestruturação do trabalho
A partir de 2015, com a adoção das políticas de austeridade, há um processo continuado de deterioração do mercado de trabalho, com a explosão do desemprego aberto e oculto (por desalento e por inserção precária, subocupado), fazendo com que no começo de 2019 haja 27,9 milhões de brasileiros e brasileiras na condição de subutilização, que continua reafirmando as discriminações históricas, com as mulheres negras estando fortemente alocadas nesta condição de vulnerabilidade. A renda do trabalho continua baixa e os efeitos distributivos do salário mínimo deixam de ocorrer, pois praticamente não há mais aumento real. Cresce também a informalidade e, consequentemente, um número de pessoas sem acesso aos benefícios sociais.
Em síntese, avança o processo de desestruturação do mercado de trabalho, em que as pessoas estão submetidas a uma condição de maior vulnerabilidade e insegurança. É importante destacar que todas as iniciativas ultraliberais (por exemplo, Emenda Constitucional do congelamento do gasto público [1], as privatizações, a redução do gasto público, a reforma trabalhista e as mudanças políticas do governo com o golpe institucional contra a Dilma) defendidas como redentoras da retomada do crescimento econômico e, consequentemente, do emprego não trouxeram os resultados esperados. Pelo contrário, a desestruturação do mercado de trabalho é uma das causas da dificuldade de retomada do crescimento, pois contribuiu para contrair a demanda e também restringir os circuitos de crédito.
IHU On-Line — Um ano depois da entrada em vigor, como avalia os impactos da reforma trabalhista no cotidiano do trabalho e dos trabalhadores no cenário brasileiro?
José Dari Krein — A reforma trabalhista não entregou o que prometeu. O então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, “profetizou” que ela iria criar 6 milhões de empregos. Por enquanto, um ano e meio após a sua implementação, os resultados mostram que o desemprego aberto em março está pouco acima do de outubro de 2017 (12,2 para 12,4% em março 2019). A experiência concreta brasileira recente mostra, mais uma vez, que não há relação direta entre a geração de emprego e legislação trabalhista. As novas modalidades de contratação inseridas pela reforma apresentam baixa incidência. Os contratos intermitentes e parciais representam menos de 1% do total dos empregos formais. Por enquanto, esses contratos precários não pegaram.
As falsas promessas da reforma
O que vem crescendo, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – Caged, são os empregos tipicamente terceirizáveis. Também houve incremento na ocupação dos autônomos, como estratégia de sobrevivência. Por exemplo, vendedores indefinidos, vendedor a domicílio, vendedores de quiosques, motoristas autônomos (fundamentalmente Uber), crescem, respectivamente 87%, 40%, 37% e 25% depois de um ano da reforma. Além disso houve um incremento de 7,4% dos subocupados (por horas insuficientes trabalhadas) e uma elevação de 500 mil trabalhadores sem carteira de trabalho.
Ou seja, a reforma também não cumpriu outra promessa, de promover a formalização, mesmo com o rebaixamento do marco legal com a introdução dos contratos mais atípicos e precários. Em síntese, as tendências de desestruturação do mercado de trabalho iniciadas com a crise econômica e política em 2015 não foi revertida. A vida de quem precisa trabalhar para sobreviver continuou piorando e cresceu o número de pessoas excluídas dos benefícios da seguridade social.
IHU On-Line — Entre os argumentos de defesa da reforma trabalhista, está o de que o arcabouço legal que embasa a regulação do mercado de trabalho produz efeitos negativos sobre a atividade econômica. Daí a defesa para flexibilização de diretrizes da CLT, com vistas a aumentar o volume total de ocupados. Um ano depois da reforma, tal flexibilização se reverteu em aumentos de atividade econômica? Por quê?
José Dari Krein — A experiência empírica brasileira mostra que não há relação entre o arcabouço legal e o nível de emprego tanto no século XX quanto nos anos recentes. O processo de assalariamento veio com a industrialização, tendo como referência o marco legal consolidado na CLT, que não foi empecilho para o Brasil ter uma economia com grande dinamismo econômico entre 1930 e 1980. O dinamismo não foi influenciado pelo arcabouço legal, mas sua baixa efetividade apresenta relação, por um lado, com a existência de um excedente estrutural de força de trabalho (dada a não realização da reforma agrária e o estímulo à migração), que é fundamental para reafirmar as características do nosso mercado de trabalho com baixos e desiguais salários, alta informalidade, ausência de proteção social e a inserção de uma parte expressiva das pessoas em ocupações precárias. Por outro lado, o processo foi agravado pela interrupção da democracia no momento em que o país apresentou maior dinamismo na geração de emprego, com o controle e a repressão dos sindicatos.
Reforma trabalhista é para a retirada da proteção social
A experiência entre 2004 e 2014 mostrou que o dinamismo do mercado de trabalho e a sua explicação foi na contramão dos argumentos dos defensores da reforma. Nos anos 1990 já estavam colocados os mesmos argumentos de que a flexibilização seria a condição para combater a informalidade e criar emprego. A vida real mostrou o contrário. Agora, pós-reforma, também temos a comprovação de que as mudanças legislativas não estão trazendo os resultados esperados. A questão da geração de emprego é algo muito mais complexo, que depende fundamentalmente da dinâmica econômica, em que o crescimento é um pressuposto, que pode ser maior gerador de emprego, dependendo de suas características.
Por exemplo, as opções de crescimento com inclusão social tendem a ter efeitos mais positivos na geração de ocupações. Isso é evidente nas experiências recentes da América Latina. O crescimento da Colômbia, por exemplo, foi maior do que o do Brasil no mesmo período, no entanto os efeitos sobre o mercado de trabalho e a proteção social foram menores do que a experiência brasileira, pois foi um crescimento baseado na exportação de produtos primários. Em síntese, estamos refutando o argumento de que a reforma em si seja capaz de gerar emprego, pois este depende de muitos fatores combinados.
Muitos conservadores têm noção de que a reforma não cria emprego, mas ela é defendida na perspectiva de construir uma sociedade em que os indivíduos sejam submetidos à concorrência com os outros, tirando-lhes os direitos e as proteções sociais. É a busca constante – faz parte da luta social – por parte do capital de ampliar a sua liberdade em determinar as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho. Por isso, vemos e vamos continuar vendo ofensivas de novas rodadas de reformas na perspectiva de ampliar o grau de “mercadorização da força de trabalho”.
IHU On-Line — Dentro das estratégias das reformas liberais, como compreender a questão de fundo que une as reformas trabalhista e da Previdência?
José Dari Krein — As duas reformas fazem parte de um mesmo ideário ultraliberal de derrogar os direitos e a proteção social na perspectiva de submeter as pessoas à concorrência, deixando-as em condição de vulnerabilidade e insegurança, no intuito de reafirmar que não “há alternativa” e todos se sujeitem, como afirma Byung-Chul Han [2], na Sociedade do Cansaço [3], ao excesso de trabalho e desempenho, em que a liberdade e coação coincidam como forma mais eficiente de exploração do outro. Acrescento, na perspectiva de viabilizar uma sociedade de mercado, voltada para produção de mais valor. Como são reformas sem apelo popular e os discursos de sua legitimação estão desgastados, caminha-se para reformas liberalizantes com viés autoritário. Como as reformas anteriores no mundo real são consideradas insuficientes, novas rodadas são propostas, dentro das disputas políticas se sociais sobre os rumos da sociedade.
Reforma trabalhista já afeta a Previdência
Em termos concretos, a reforma trabalhista de 2017 já implicou em uma reforma da Previdência, em termos formais. Por um lado, a efetivação do mundo do trabalho desenhado pela reforma trabalhista irá dificultar imensamente aos ocupados conseguirem preencher os requisitos exigidos para ter acesso aos benefícios da seguridade social, tais como tempo de contribuição para Previdência e o seguro-desemprego. Por outro lado, a reforma tende a minar fontes importantes de financiamento da seguridade social vinculadas ao registro em carteira, por estimular a adoção de novas modalidades de contratação precárias, tais como:
1) autônomos permanentes, em que assalariados são substituídos de forma fraudulenta por Microempreendedores Individuais, que têm uma contribuição muito baixa para a Previdência;
2) os contratos atípicos (intermitente, temporário e tempo parcial), que são mais precários e instáveis. Mas também por admitir que o pagamento pelo serviço prestado seja feito em forma de bens e serviços e por produção.
Ou seja, em uma amostra com médias e grandes empresas, em 2016 (continua a mesma tendência), evidencia-se que 30% dos rendimentos anuais do trabalhador não são considerados como salário e, portanto, não incidem sobre o valor de arrecadação para a seguridade social. Além disso, no contexto atual, de elevado desemprego e altíssima subutilização da força de trabalho, a estratégia mais utilizada pelos empregadores não é, por enquanto, as novas modalidades oferecidas, mas a informalidade, o que piora ainda mais as bases de arrecadação. Por exemplo, 38% dos ocupados, fora os desempregados, não contribuem para Previdência. Em síntese, a reforma trabalhista de 2017 já arruinou o sistema previdenciário construído na Constituição de 88.
IHU On-Line — Caso aprovada, como a reforma da Previdência proposta pelo governo de Jair Bolsonaro deve impactar as relações de trabalho? Podemos conceber alternativas a esses impactos? Como?
José Dari Krein — A proposta do governo Bolsonaro embute uma nova rodada de flexibilização das relações de trabalho, pois se constituiu em outra etapa de desconstrução dos direitos e de proteção social, buscando viabilizar uma situação em que, nas palavras do presidente, prevaleça um arcabouço legal muito próximo da informalidade. Ou seja, faz parte da disputa social de viabilizar um sistema de regulação do trabalho cada vez mais próximo da selvageria do mercado.
Retrocesso em verde e amarelo
Essa perspectiva se expressa na proposta de combinar um sistema de capitalização na Previdência com a “carteira verde amarela”. O sistema de capitalização, além de gerar uma oportunidade de negócio para o mercado financeiro, traz a lógica da individualização das regras trabalhistas, pois cada um seria responsável por ser previdente. Assim, a “carteira verde amarela” – que formalmente seria opcional, mas na prática tende a tornar-se impositiva – abre a possibilidade de o empregador contratar sem que os direitos inscritos na CLT e nas convenções coletivas sejam considerados, pois o conteúdo do contrato seria negociado diretamente pelo trabalhador e pelo patrão.
É a volta ao período anterior à Organização Internacional do Trabalho – OIT, pois suprime dois dos seus princípios fundantes: que há uma relação desigual entre capital e trabalho; e que o trabalho não pode ser considerado como uma mercadoria qualquer. Por isso, ela significa o esforço contínuo de alterar as regras legais em uma perspectiva de fazer com que as relações de trabalho sejam a imagem e semelhança do mundo idealizado pelo capital, em que o trabalhador é uma mera engrenagem no processo de acumulação.
A reforma da Previdência também tem a finalidade de deixar o trabalhador em uma condição menos segura, forçando-o a adaptar-se na sua luta pela sobrevivência.
IHU On-Line — O avanço tecnológico tem não só reconfigurado as relações de trabalho como também reduzido os postos de trabalho. Por outro lado, a proposta de reforma da Previdência do governo Bolsonaro quer, entre outras medidas, manter as pessoas mais tempo no mercado de trabalho. Mas, num mundo em que o emprego parece cada vez mais restritivo, como assegurar postos de trabalho para novas gerações e manter trabalhadores por mais tempo na ativa?
José Dari Krein — Estamos em um momento muito desfavorável em que as soluções apresentadas pelos governos de plantão não contribuem para pensar uma sociedade com inclusão social. Pelo contrário, o capitalismo, especialmente o desregulado, tende a produzir desigualdade e exclusão social. O crescimento da desigualdade tende a produzir ocupações mais serviçais, em que os de baixo trabalham para atender as crescentes necessidades das outras pessoas, especialmente dos mais ricos. Essa tendência ocorre em um momento em que há uma nova etapa de inovações tecnológicas, que são economizadoras de trabalho. Hoje, diferentemente do que ocorreu depois da 2ª Revolução Industrial, as inovações estão sendo utilizadas na luta social para justificar novas rodadas de reformas, que responsabilizam as pessoas pela sua situação no mercado de trabalho e na sociedade, por não terem empregabilidade, empreendedorismo e não serem previdentes para assegurar o seu futuro. Neste sentido, pode-se dizer que o capitalismo é historicamente, na sua livre manifestação, destruidor de pessoas – subjugando-as como mercadoria – e da natureza, pois não aceita limites na sua insana busca de acumulação.
Mas o avanço tecnológico poderia, caso houvesse outra correlação de forças, levar a sociedade a pensar outras formas de organização social, como, por exemplo, discutir quais são as ocupações socialmente desejáveis, que incluiria uma redistribuição do trabalho, possibilitando uma redução do tempo de trabalho diário, anual e até da vida, possibilitando que as pessoas pudessem viver em plenitude todas as dimensões da vida. Assim, a proposta de elevação da idade e da contribuição partem de uma outra lógica, fundamentalmente fiscalista e de individualização dos riscos sociais. É claro que seria necessária uma mudança social profunda, em que as referências para reformar a Previdência precisariam ser construídas sobre outras bases, outros princípios e diretrizes.
E essa posição leva à necessidade de construir um contexto e espaços adequados para uma discussão substantiva sobre como resolver os problemas de garantir uma vida digna para as pessoas que precisam trabalhar e que têm o direito de viver em plenitude todas as fases da vida.
IHU On-Line — Em que medida podemos afirmar que, no que diz respeito à proteção ao trabalhador, a reforma trabalhista promove uma fragilização de instituições públicas e do sindicalismo? E que relações podemos estabelecer entre essas fragilizações e a proposta de reforma da Previdência e a fragilização da seguridade pública?
José Dari Krein — A viabilização de um padrão de regulação flexível do trabalho traz consigo uma tentativa continuada de desconstrução das instituições que têm algum poder de colocar limites à liberdade do capital em determinar as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho, especialmente na perspectiva de reduzir custos do trabalho. Neste sentido, a reforma foi mais uma iniciativa nessa direção.
A fragilização da ação coletiva dos trabalhadores
Não é sem razão que, por exemplo, a Justiça do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e sistema de fiscalização são constantemente atacados na perspectiva de limitar o seu papel de afirmar o direito vigente. Um exemplo: a reforma reduziu imensamente o número de novos processos trabalhistas (-37%) até o momento, o que está sendo “comemorado” pelas entidades patronais e pela mídia como um efeito positivo da reforma. No entanto, a pergunta que deveria ser feita é outra: a redução de reclamatórias trabalhistas melhorou as condições de trabalho? A resposta é não, pois cresceu o número de trabalhadores sem carteira de trabalho e diminuiu o número de reclamantes que tiveram direitos sonegados. Como, por exemplo, no primeiro trimestre de 2018, 2,4 milhões de empresas não depositaram o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, mas somente em torno de 300 mil fizeram uma reclamação desse direito sonegado.
O mesmo raciocínio vale para o movimento sindical. A lógica da reforma é fragilizar a capacidade de ação coletiva dos trabalhadores e descentralizar a definição das regras para o âmbito da empresa e até os indivíduos. Os resultados da reforma parecem confirmar a sua intencionalidade de fragilização, com um certo esvaziamento das instâncias de segundo e terceiro grau do sindicalismo, especialmente das Centrais sindicais, que perderam muita receita e enxugaram as suas estruturas. Do ponto de vista organizativo, há muitas discussões sobre alternativas, mas o que se consegue identificar até o momento são as ações adaptativas de redução de custos, de enxugamento da máquina sindical e da redefinição de serviços. O resultado pós-reforma das negociações coletivas são mais desfavoráveis aos trabalhadores com a queda do número de instrumentos celebrados. Em relação ao conteúdo, as negociações constituem ao mesmo tempo um espaço de alguma resistência às novas normas (buscando atenuar seus efeitos) e de legitimação das temáticas inseridas na reforma. Ademais, a prevalência do negociado sobre o legislado em um contexto de mercado de trabalho desfavorável e mudanças na reconfiguração das classes trabalhadoras está mostrando que serve para negociar o rebaixamento de direitos.
A lógica da fragilização do movimento ficou ainda mais evidente com a edição da Medida Provisória 873/2019 [4], em que o atual governo tem a finalidade de estrangular financeiramente os sindicatos exatamente no período de tramitação da reforma da Previdência. Ela apresenta muita perversidade, pois, sem nenhuma transição, afeta todas as formas de arrecadação, inclusive a mensalidade associativa. Sempre na lógica de individualizar todas as relações. Como no caso de a proposta, que tem alguma probabilidade, mesmo em tempos de exceção como estamos vivendo, de não prosperar – dadas as negociações em curso e as decisões judiciais iniciais –, poder “cumprir” o desejo de deixar os sindicatos sem recursos para mobilizar os trabalhadores e a sociedade no momento da tramitação da resposta.
IHU On-Line — Como conceber alternativas para enfrentar os problemas fiscais brasileiros, sem necessariamente passar por essa proposta de reforma da Previdência e estrangulamento da seguridade pública, levando ainda em conta que se vive a realidade pós-reforma trabalhista?
José Dari Krein — A experiência entre 2004 e 2014 mostrou que o crescimento econômico e o processo de formalização contribuíram muitíssimo para viabilizar o superávit no regime geral da Previdência. O crescimento econômico, em que proporcione geração de emprego com formalização dos contratos, seria uma primeira forma de reforçar o financiamento do sistema atual de repartição baseada na solidariedade intergeracional. Em segundo lugar, o aprimoramento do sistema de fiscalização para combater a ilegalidade nas formas de contratação e dívidas previdenciárias. Em terceiro lugar, temos que pensar em uma reforma tributária para diminuir a desigualdade e cobrar tributos dos que ganham mais na sociedade. Em quarto lugar, ampliar as bases atuais de financiamento, em que o peso da folha salarial tenha menos peso, dadas as mudanças no mundo do trabalho.
É preciso considerar que a reforma da Previdência tem grande possibilidade de ter efeitos perversos sobre as bases de arrecadação e pode contribuir para uma desestruturação ainda maior no mercado de trabalho, em razão da queda do poder de compra dos aposentados e pensionistas, o que afetará negativamente o nível de atividade econômica, especialmente para as regiões mais pobres. Por último, a referência não pode se limitar à questão fiscal, pois está em jogo o tipo de sociedade que se pretende construir. Não podemos aceitar a lógica de uma sociedade “cada um por si e Deus para todos”.
Notas:
[1] Emenda Constitucional Nº 95: a EC 95 limita por 20 anos os gastos públicos. Os senadores aprovaram a proposta (PEC 241/16) em 13/12/2016. Foi encaminhada pelo presidente Michel Temer – quando ele ainda estava na condição de interino – ao legislativo com o objetivo de equilibrar as contas públicas por meio de um rígido mecanismo de controle de gastos. Chamada de PEC do teto dos gastos, determina que, a partir de 2018, as despesas federais só poderão aumentar de acordo com a inflação acumulada conforme o índice nacional de preços ao consumidor amplo (IPCA). É considerada umas das maiores mudanças fiscais em décadas. Uma das principais críticas refere-se ao fato de que a PEC limita gastos que historicamente crescem todos os anos acima da inflação, como educação e saúde. Outra crítica incide no congelamento dos gastos com programas sociais. Especialistas e entidades setoriais avaliam que a medida prejudica o alcance e a qualidade dos serviços públicos oferecidos. A EC pode resultar na redução de R$ 12 bilhões em repasses para a área da saúde em dois anos. Para saber mais sobre a PEC 241, acesse a entrevista com Grazielle David, intitulada PEC 241/16: uma afronta à saúde, aos direitos sociais e à Constituição, publicada nas notícias do dia de 11-7-2016, no sítio do IHU. (Nota da IHU On-Line) [2] Byung-Chul Han (1959): pensador sul-coreano, teórico cultural e professor da universidade de artes de Berlim. É o autor de 16 livros, dos quais os mais recentes são tratados sobre o que ele chama de “sociedade do cansaço” (müdigkeitsgesellschaft ), uma “sociedade da transparência” (transparenzgesellschaft ) e seu conceito neologista de shanzhai , que procura identificar modos de desconstrução nas práticas contemporâneas do capitalismo chinês. O trabalho atual de Han se concentra na transparência como uma norma cultural criada pelas forças do mercado neoliberal, que ele entende como o impulso insaciável para a divulgação voluntária que beira o pornográfico. Segundo Han, os ditames da transparência impõem um sistema totalitário de abertura à custa de outros valores sociais, como vergonha, sigilo e confiança. (Nota da IHU On-Line) [3] HAN, Byung-Chul. Müdigkeitsgesellschaft. Berlim, Alemanha: Matthes & Seitz Berlin Verlag, 2010; Publicação brasileira: HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015. (Nota da IHU On-Line) [4] Medida Provisória 873/19: altera a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT para dispor sobre a contribuição sindical, e revoga dispositivo da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que determinava o desconto em folha, sem ônus para a entidade sindical a que for filiado, o valor das mensalidades e contribuições definidas em assembleia geral da categoria. A partir da MP 873, a contribuição sindical deve ser feita pelo próprio trabalhador, se for do seu interesse. (Nota da IHU On-Line)Fonte: IHU On-Line
Texto: João Vitor Santos e Wagner Fernandes de Azevedo
Data original da publicação: 27/04/2019