Acordo bilionário entre MPT e Vale em Brumadinho ignora Reforma Trabalhista

Um acordo entre o Ministério Público do Trabalho e a Vale foi homologado na noite de segunda (15), na 5ª Vara do Trabalho de Betim, estabelecendo os valores de danos morais e materiais que a empresa terá que pagar por conta do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), no dia 25 de janeiro. Considerado o maior acidente de trabalho da história do Brasil, deixou 248 mortos e 22 desaparecidos até agora. Isso só foi possível porque um dispositivo trazido pela Reforma Trabalhista que limita a indenização por danos morais foi ignorado na negociação.

Cada cônjuge ou companheiro(a), filho(a), mãe e pai de trabalhadores mortos receberão, individualmente, R$ 700 mil pela perda do familiar (R$ 500 mil como dano moral e R$ 200 mil como seguro adicional por acidente de trabalho). Irmãos e irmãs receberão, individualmente, R$ 150 mil por dano moral. De acordo com o procurador Geraldo Emediato de Souza, coordenador do grupo especial do MPT para o caso, o núcleo familiar de um trabalhador que tenha deixado esposa, dois filhos, pai e mãe e dois irmãos receberá R$ 3,8 milhões. Isso não compensa o sofrimento pela perda do ente, mas contribui para evitar que novas tragédias se repitam.

A Vale confirmou os dados do acordo através de nota pública em seu site, afirmando que depositará, em juízo, R$ 400 milhões de dano moral coletivo no dia 6 de agosto. Segundo a empresa, o acordo determinou a liberação do valor de R$ 1,6 bilhão que haviam sido bloqueados em suas contas pelo MPT para a garantia de pagamento de indenizações. “A partir de agora, os familiares dos trabalhadores vítimas do rompimento da barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, poderão se habilitar para receber reparação, iniciando a execução do acordo individual”, diz a nota.

Desde o início das negociações, o Ministério Público do Trabalho considerou inconstitucional o artigo da Reforma Trabalhista que limitou a indenização por dano moral a 50 salários contratuais em caso de situações gravíssimas, como a morte de empregados.

O artigo 223-G da lei 13.467/2017, que trata da reforma, estabeleceu uma gradação para a concessão de indenização por dano moral que levaria em conta uma série de fatores com base em uma escala de gravidade. Para casos gravíssimos, o teto ficou em 50 vezes o salário contratual do trabalhador. Para quem, hipoteticamente, recebia um salário mínimo (R$ 998,00), o teto seria  de R$ 49.900,00. Para que ganhava R$ 20 mil, o teto iria a R$ 1 milhão.

Ou seja, há uma diferenciação do sofrimento diante da morte de acordo com a função que a pessoa desempenhava – lembrando que a indenização por danos materiais, que inclui a pensão vitalícia à família do trabalhador morto, já é calculada com base no tamanho dos salários.

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, havia se pronunciado de forma contrária ao dispositivo em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que tramita no Supremo Tribunal Federal. O relator da ação, proposta pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), é o ministro Gilmar Mendes.

A defesa da Vale solicitou, de acordo com Emediato, que a matéria fosse suspensa até o pronunciamento do STF sobre o artigo que limita a indenização, que tem julgamento marcado para o início de outubro. Este blog antecipou no dia 27 de janeiro que o dispositivo da Reforma Trabalhista seria usado para tentar limitar as indenizações por danos morais na tragédia.

A empresa, contudo, acabou aceitando um acordo antes que a questão fosse decidida pela Justiça. O Ministério Público do Trabalho juntou aos autos do processo elementos colhidos pela Polícia Federal e a Polícia Civil que indicariam dolo eventual por parte da Vale, ou seja, de que ela sabia dos riscos, mas mesmo assim continuou mantendo seus empregados sob perigo. As informações foram coletadas por advogados que representam as famílias, o que poderia levar a indenizações ainda maiores.

“É uma tragédia sem precedentes. Seria uma grande injustiça, com limitação a indenizações pífias, se fosse aplicado o dispositivo da Reforma Trabalhista”, afirma o procurador Geraldo Emediato de Souza.

As famílias que se anteciparam e haviam fechado acordos individuais com a empresa terão direito à complementação até o montante estabelecido com o MPT. “Desde o primeiro momento, estamos nos reunindo com os atingidos. Esses valores foram apresentados às famílias e elas aprovaram”, afirma o procurador.

Estima-se que entre danos morais individuais e coletivos, danos materiais, estabilidade de três anos para todos os empregados e terceirizados (que pode ser convertida em dinheiro), auxílio-educação aos filhos, entre outros elementos acordados, a empresa irá desembolsar aproximadamente R$ 2,5 bilhões.

“Uma das funções do dano moral é que, sem causar enriquecimento ilícito, seja pedagógico para que o empregador nunca mais volte a causá-lo”, explica Ivandick Rodrigues, professor de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogado trabalhista.

A família de um trabalhador morto terá direito a danos materiais para restaurar sua renda mensal. Os dependentes receberão pensão mensal até a idade de 75 anos do falecido e o valor mínimo total será de R$ 800 mil, mesmo que a renda do trabalhador não alcançasse esse valor. Serão pagos valores integrais, sem desconto no salário.

Os R$ 400 milhões de danos morais coletivos serão usados para mitigar e reparar o impacto causado. Está previsto que um comitê formado por Defensoria Pública da União, Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho e representantes das famílias atingidas

Com a desmobilização da Mina do Córrego do Feijão, é necessário criar fontes de renda para a região, que depende da Vale. Isso inclui incentivo à agricultura familiar e a qualificação de trabalhadores com os recursos dos danos morais coletivos.

“Quando é feito um plano de contingenciamento e de emergência, deve-se calcular qual o curso da lama em caso de rompimento. Se foi bem feito, mostraria que esse curso passava exatamente onde estava o refeitório e a administração. Não há duvida que houve negligência da empresa”, afirmou Ronaldo Fleury, procurador-geral do Ministério Público do Trabalho. Após o acidente, Fleury conversou com o blog e ressaltou que apesar de ser uma das maiores tragédias trabalhistas da história do país e da grande maioria das vítimas serem trabalhadores que perderam suas vidas nas dependências da Vale, as indenizações por dano moral, se aplicada a letra da lei, estariam limitadas a 50 vezes o salário deles graças à Reforma Trabalhista. Por conta do acordo, essa situação foi afastada.

Geraldo Emediato de Souza afirma que o acordo homologado pela Justiça do Trabalho pode contribuir com o entendimento de que esse dispositivo é equivocado e ter efeito na jurisprudência sobre a indenização para danos morais, afetando outros casos. “Ele abre um precedente porque a empresa aceitou pagar valores acima do limite apesar da lei.”

Fonte: UOL
Texto: Leonardo Sakamoto
Data original da publicação: 16/07/2019

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