A reforma trabalhista e a ética do absurdo de Albert Camus

Camus propôs que o absurdo fosse encarado de frente, sem desculpas e sem subterfúgios. Este artigo é  uma denúncia do absurdo jurídico, é um grito para a tomada de consciência da lei que aprisiona e reduz o ser humano à máquina e, por fim, é um clamor de revolta, mas também de esperança.

Raphael Varga Scorpião e Nicollas Madeira de Oliveira

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 22/05/2020

Em 11 de novembro de 2017 começou a vigorar a Lei nº 13.467 de 2017, amplamente divulgada e intitulada como reforma trabalhista. Tal norma alterou significativamente a relação capital/trabalho, dando a ela novos contornos e dimensão.

Tais alterações não se deram de maneira pontual. Procedendo-se à uma análise holística, percebe-se que o pilar de sustentação jurídico e ontológico do direito do trabalho (princípio protetivo) foi abalado. A própria razão de ser da justiça laboral entra em colapso, a partir do momento em que o direito que historicamente (e supostamente) foi criado para balancear uma relação jurídica desforme passa a legitimar e respaldar atitudes antagônicas ao trabalhador. É neste quadro que a ética do absurdo ganha relevo e nos possibilita refletir acerca da Lei nº 13.467/2017 à luz da filosofia da existência, especialmente ao que se denominou escola francesa.

Em um contexto de pós-guerra, em que a condição humana foi desprezada e o homem se deparou com a sua pior faceta, desponta contra o rebaixamento e menosprezo da condição humana a filosofia da existência de matriz francesa, cujos grandes expoentes são Jean-Paul Sartre e o franco-argelino Albert Camus. Revive-se o ideal de que toda a humanidade residiria em cada indivíduo considerado em sua essência.

Nesta esteira, a filosofia da existência (ou existencialismo, em que pese mesmo Jean-Paul Sartre já tenha negado esta expressão) atribui ao homem/mulher a responsabilidade pelo seu destino, pela sua própria existência. O indivíduo seria então alguém lançado ao mundo, abandonado à sua própria sorte, razão pela qual ele terá de fazer e ao fazer, fazer-se, a fim de dar sentido e justificar a existência.[1]

Desta forma, o homem estaria condenado a ter-de-ser e, uma vez lançado ao mundo, seria o responsável por significar a sua existência e dar contornos a ela. O homem não pode deixar de ser visto como um projeto, um devir. É a prospecção do indivíduo que guia a existência e, por assim dizer, é responsável por construir a sua própria identidade.

Dentro do existencialismo, ressalta-se a ética do absurdo, cuja expressão de brilhantismo se deu sob o gênio de Albert Camus (1913-1960), que passou pelo mundo de maneira rápida, porém brilhante, sendo laureado em 1957 com o prêmio Nobel de literatura, três anos antes do acidente automobilístico que lhe ceifou a vida, mas lhe perpetuou na história.

O absurdo, como generosamente nos ensina o filósofo argelino, é um divórcio entre o ser e o mundo, ele nasce do confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo, é o estado metafísico do homem consciente, é o viver tendo como fundamento o espírito e o mundo apoiado um no outro sem poderem se abraçar.[2]

Para Albert Camus, o absurdo não está no homem, nem no mundo, mas sim na presença comum entre homem e mundo. O absurdo estaria em viver em um mundo que não parece lhe pertencer, em um mundo em que seu tempo é escasso, que seus passos são controlados. O absurdo está na lamentável, porém inevitável constatação de que não há o reconhecimento de sua humanidade. O absurdo está em perceber e se perceber como um instrumento, como uma peça de uma engrenagem. O absurdo está em se deparar com a impossibilidade de concretização de seus planos existenciais.

Tal impossibilidade de questionar a própria existência ilustra o sentimento de absurdidade. O que dizer das guerras, da miséria, da exploração do homem, da degradação ambiental, enfim, da instrumentalização da humanidade em nome da acumulação do lucro, ou de um suposto progresso científico e de uma mal arrevessada evolução tecnológica.[3]

O respeito à dignidade humana requer o respeito do ser humano enquanto indivíduo, sendo que a dignidade humana é ofendida quando um sujeito é tratado como objeto por outro sujeito[4]. Por este ângulo, como uma norma que autoriza mulheres gestantes a trabalhar em atividades de grau médio de insalubridade pode conviver com uma Constituição Federal nitidamente antropocêntrica?

Albert Camus entrelaça esta condição alienante e irracional com a absurdidade na sua obra O mito de Sísifo, que retrata a figura de um trabalho inútil e sem esperança, em que a possibilidade de vitória reside em sua lucidez. A tomada de consciência faz com que o homem perceba que é senhor de seu destino, dono de seus dias.

“Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro.” E continua: “A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento de consciência. Ela o desperta e provoca a sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar definitivo.” E arremata: “Tudo começa pela consciência e nada vale sem ela”.[5]

Camus retratou o absurdo sob uma jornada de quatro horas, almoço e posteriores quatro horas. O que a Lei nº 13.467/2017 faz é permitir que o intervalo intrajornada seja “negociado” em menos de uma hora, ou seja, este retrato mostrado pelo filósofo não poderia ser visto sob a atual legislação. O trabalhador não pode se dar ao luxo de pegar o bonde, almoçar em casa e cumprir o restante da jornada. Não lhe é mais dado sequer uma hora de almoço.

A ideia de oito horas de jornada também não é algo certo, uma vez que, sob o crivo da lei, é possível a “negociação” de uma jornada de doze horas, uma vez que se disciplina e, por consequência, se autoriza formas alternativas de controle do empregado. O chamado “home office” e os meios tecnológicos de aferir produtividade faz com que o empregado não desvincule o que é vida e o que é trabalho.

Estimula-se e se naturaliza uma vida voltada ao trabalho e, a partir do momento em que a pessoa não consegue alcançar os mesmos níveis de produção ou a partir do momento em que ela não seja mais interessante para o funcionamento da empresa, esta é demitida (o universo corporativo prefere a expressão desligada) e, sentindo-se inútil, o trabalhador se encontra perdido, sem referências.

Diante de uma jornada extensa, qual o momento em que a pessoa encontra tempo para refletir em seus planos existenciais? Qual momento em que a pessoa constrói uma existência autêntica? Qual o momento em que ela vive comunitariamente: Qual o momento em que desenvolve suas potencialidades? Qual o momento em que assume seus papéis sociais? Qual o momento em que toma as rédeas de sua vida? Esta vida lhe pertence de fato ou pertence a quem lhe emprega? Na obra O estrangeiro, alegoricamente, Albert Camus constrói um condenado à morte que passou pelo mundo sem tocá-lo, sem senti-lo. O trabalhador brasileiro não é um estrangeiro de si mesmo? Ele toma as suas escolhas ou as escolhas foram tomadas à revelia dele?

Neste cenário, o autor da obra O homem revoltado expõe: 

Uma das poucas posturas filosóficas coerentes é a revolta, o confronto perpétuo do homem com sua própria escuridão. Ela é a exigência de uma transparência impossível e questiona o mundo a cada segundo. Assim como o perigo proporciona ao homem uma oportunidade insubstituível de captá-la, também a revolta metafísica estende a consciência ao longo de toda a experiência. Ela é a presença constante do homem diante de si mesmo. Essa revolta é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-lo.[6]

Camus propôs que o absurdo fosse encarado de frente, sem desculpas e sem subterfúgios. Este artigo é  uma denúncia do absurdo jurídico, é um grito para a tomada de consciência da lei que aprisiona e reduz o ser humano à máquina e, por fim, é um clamor de revolta, mas também de esperança.

Não se pretende apenas apontar o absurdo que se opera no cotidiano forense e nas faculdades de direito. Humildemente se pretende enxergar uma luz além desta escuridão que tomou de assalto o país e o direito. Esta luz é um resgate de humanidade, que se dá pelo advento de um direito onírico, poético, ficcional e artístico. Afinal, a vida passa por esses canais e um direito sem vida, um necrodireito, é o que culminou na reforma trabalhista.

Notas

[1] JOSÉ, Caio Jesus Granduque. A construção existencial dos direitos humanos. 2009. Dissertação (Mestrado em direito). Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Franca, São Paulo, 2009, p. 27.

[2] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. 8.ed. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2017, p. 39.

[3] MACHADO, Antônio Alberto. O direito e a ética do absurdo: uma leitura de Albert Camus. Revista Justiça & Democracia, São Paulo, n.3, p.112, 1997.

[4] GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 7. ed., SRS, p. 279.

[5] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. 8.ed. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2017, p.27.

[6] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. 8.ed. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2017, p.60.

Raphael Varga Scorpião é defensor público, mestrando em filosofia do direito pela PUC SP, especialista em direito Civil pela PUC MG, graduado em direito pela UNESP.

Nicollas Madeira de Oliveira é escrevente oficial de registro de imóveis de Santo André/SP, professor assistente na Universidade municipal de São Caetano do Sul (USCS) 2018 a 2019, mestrando em filosofia do direito pela PUC SP, graduado em direito e pós graduado em filosofia pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS).

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