
Com a estabilidade reduzida e a progressão na carreira menos objetiva, aumentam os riscos de demissões arbitrárias e perseguições políticas.
Helena Ramos de Castro, Maristela Wentz Barboza e Enzo Marzotto Nunes
As formas de contratação no mundo do trabalho vêm mudando de acordo com as novas formas de desenvolvimento do capital. O modelo neoliberal de desenvolvimento econômico prevê cortes de benefícios em todas as modalidades de trabalho, maximizando a atividade produtiva por meio do aumento da autoexploração dos indivíduos (CHUL HAN, 2014). Também sob a referida perspectiva político-econômica, ocorrem as tentativas de minimização do Estado, a exemplo do ocorrido com o julgamento da ADI 2135, em 6 de novembro de 2024, figurando dentro desse contexto de subtração de direitos e “enxugamento” da máquina estatal.
A fim de contextualizar a presente discussão, importante realizar a distinção básica entre servidor público e empregado público. Segundo Marçal Justen Filho (2023, p. 551), servidor público é o agente público relacionado ao Estado através de um vínculo jurídico de direito público, enquanto empregado público corresponde ao agente estatal não subordinado ao regime de direito público, mas disciplinado pela legislação trabalhista, embora contratado por pessoa jurídica de direito púbico. Em síntese, o servidor público é regido pelo Regime Jurídico Unificado, doravante, RJU, enquanto o empregado público se sujeita à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Em resumo, Emenda Constitucional 19/98, denominada “Reforma Administrativa”, alterou a redação do artigo 39, caput, da Constituição Federal, suprimindo a obrigação de que os entes federados instituam, em seus âmbitos, um regime jurídico único de contratação de servidores públicos para a Administração Pública direta, autárquica e fundacional. Os partidos PT, PCdoB e PDT entenderam pela ocorrência de vício formal na votação da PEC 173, que originou a emenda, na medida em que, durante os debates parlamentares, não foi respeitado o procedimento de votação da Casa.
Assim, originou-se a ADI 2135 que requeria, liminarmente, a suspensão da eficácia da alteração da redação do caput, do art. 39, CF. A Corte Constitucional deferiu a medida cautelar, vedando a criação de empregos públicos no âmbito da Administração direta, autárquica e de fundações públicas desde 2 de agosto de 2007. Todavia, em 6 novembro de 2024, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do referido trecho, por maioria dos votos, entendendo que não houve vício no processo legislativo de aprovação da emenda.
A partir da atual decisão do STF, ficam permitidos distintos regimes jurídicos para contratação em todos os âmbitos da Administração Pública, situação que a Constituição de 1998, por meio da instauração do Regime Jurídico Único, pretendia justamente abolir. No entanto, necessário ressaltar que foi atribuída eficácia ex nunc da decisão, sendo expressamente vedada a transmudação de regime dos servidores estatutários atuais.
A possibilidade de diferentes regimes de contratação na Administração Pública traz preocupações significativas quanto aos direitos e garantias dos servidores. A flexibilização permite que a Administração opte por vínculos trabalhistas mais precários, nos quais a estabilidade é reduzida e a progressão na carreira se torna menos objetiva, aumentando o risco de demissões arbitrárias e perseguições políticas. Essa mudança compromete a construção de uma Administração Pública democrática e profissionalizada, podendo gerar um ambiente de instabilidade funcional que afeta a qualidade do serviço prestado à sociedade.
Além disso, a flexibilização do regime de contratação impactará diretamente as regras previdenciárias, uma vez que os empregados públicos são vinculados ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), enquanto os servidores ocupantes de cargo público efetivo estão submetidos ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS). Com essa mudança, prevê-se uma maior fragmentação dos direitos dos servidores públicos, comprometendo tanto a equidade quanto a sustentabilidade do sistema previdenciário.
A diversidade de regimes gera, também, desigualdade entre servidores que desempenham funções semelhantes, prejudicando o princípio da isonomia e criando uma disparidade no tratamento e nos benefícios. Nesse contexto, a possibilidade de os servidores públicos serem submetidos a diferentes regimes jurídicos resulta na fragmentação dos direitos e garantias à coletividade, ferindo a igualdade de tratamento prevista entre aqueles que exercem funções semelhantes ou até mesmo idênticas. Necessário enfrentar que tais distinções poderão, também, ensejar a discriminação de servidores que, embora desempenhem atividades equivalentes, se veem sujeitos a condições de trabalho, remuneração e benefícios diversificados.
Em última análise, essa disparidade não apenas contraria o princípio da isonomia, mas também pode, futuramente, acarretar o descontentamento e a desmotivação no serviço público, comprometendo a eficiência e a eficácia da Administração Pública. Diante desse cenário, possivelmente serão previstos novos editais de concursos públicos que prevejam o emprego público como regime jurídico a ser seguido e, sem dúvidas, mais do que nunca, tornar-se-á habitual a ocorrência de indivíduos que exercem a mesma função com garantias legais completamente distintas.
Ainda, a aplicação de diferentes regimes jurídicos implica a mitigação ou supressão de direitos fundamentais anteriormente assegurados, tais como a estabilidade no emprego após o período de estágio probatório e os direitos correlatos à aposentadoria. Embora a ausência de estabilidade não permita a dispensa arbitrária de servidores concursados, eis que um ato de demissão de empregado público é um ato administrativo (vide entendimento do STF RE 688267), ainda assim, aumentam-se as chances de ocorrência de perseguições políticas e pessoais.
Em um regime distinto do Estatutário, há mais possibilidades para uma demissão menos motivada, fazendo com que funcionários públicos possam ser demitidos por conta de suas convicções políticas, o que seria uma evidente afronta ao princípio da eficiência, amplamente consolidado na Constituição Federal.
Tal cenário é mais preocupante no âmbito municipal, onde a perseguição política é um problema recorrente, em razão de questões partidárias e/ou sindicais regionalizadas. Sendo assim, essa situação provoca a violação de princípios constitucionais relacionados à segurança jurídica e à proteção dos servidores públicos, além daqueles estritamente ligados ao bom funcionamento da administração, resultando em consequências diretas sobre a dignidade e qualidade de vida desses trabalhadores.
No mesmo sentido, no tocante à luta coletiva dos servidores públicos, a diversidade dos regimes jurídicos representa um obstáculo significativo à organização e à mobilização coletiva desses profissionais na defesa de seus direitos. A fragmentação das normativas e a heterogeneidade das condições de trabalho e dos benefícios associados a cada regime inviabilizam a formação de uma frente unificada em torno de reivindicações comuns.
Nesse aspecto, a divergência de interesses e necessidades entre os distintos grupos de servidores, decorrente de suas especificidades funcionais e administrativas, tensionará conflitos de prioridades que dificultam a articulação de ações conjuntas, comprometendo a efetividade da luta pela tutela jurídica de direitos, resultando na necessidade de estratégias que contemplem a singularidade de cada regime, sem descuidar da busca por uma representação coesa e articulada.
A eventual revogação ou restrição desses direitos configura um cenário de insegurança que compromete não apenas a integridade das relações de trabalho, mas também a confiança no serviço público como um todo, resultando em violações dos direitos trabalhistas e da proteção social dos servidores, abrindo precedente para a precarização das relações laborais no âmbito do serviço público.
A flexibilização dos regimes jurídicos no serviço público representa um retrocesso significativo, pois enfraquece a proteção dos trabalhadores públicos, compromete a estabilidade das relações de trabalho e ameaça a eficiência dos serviços essenciais prestados pela Administração Pública. O processo de constitucionalização da Administração Pública, segundo Moreira Neto (2000, p. 16) demanda o abandono de uma postura imperial e monopolista do interesse público, para tornar-se um instrumento da sociedade, voltada à concretização dos direitos fundamentais.
Por tais razões, a decisão do STF abre caminho para um cenário de maior instabilidade, reduzindo direitos dos futuros funcionários públicos, contrariando os princípios da dignidade humana e da valorização do trabalho previstos na Constituição Federal. De outro lado, o referido precedente também compromete a imparcialidade e a própria legitimidade das instituições, que demandam uma atuação administrativa democrática e cidadã, abrindo margem para que o direito privado se sobreponha ao direito público, acentuando a crise do constitucionalismo brasileiro.
Referências Bibliográficas:
CHUL HAN, Byung. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. 2014
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense: 2023.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
Helena Ramos de Castro é advogada e mestre em Direito (UFPel)
Maristela Wentz Barboza é advogada, graduada em Direito pela Universidade do Rio dos Sinos. Pós-graduada pela PUC/RS em Direito de Família e Sucessão
Enzo Marzotto Nunes é assistente jurídico, graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul