A atual crise sanitária colocou em evidência o que parte do feminismo vem considerando fundamental para repensar um projeto que tenha a vida como central: somos todos interdependentes.
Karina Batthyány
Fonte: Clacso
Tradução: DMT
Data original da publicação: 20/05/2020
A COVID-19 desalinhou os modelos de vida aos quais estávamos acostumados. A atual crise sanitária colocou em evidência o que parte do feminismo vem considerando fundamental para repensar um projeto que tenha a vida como central: somos todos interdependentes. A rápida disseminação da COVID-19 e as medidas institucionais de isolamento social que estão sendo aplicadas na maioria dos países destacam um dos elos mais fracos de nossa sociedade: os cuidados.
As pessoas precisam de bens, serviços e cuidados para sobreviver. Os cuidados são relacionais e interdependentes. Todos nós precisamos ou precisaremos de cuidados em algum momento de nossas vidas e todos cuidamos ou cuidaremos de alguém nas etapas do nosso ciclo de vida. Todas as pessoas precisam de comida, roupas, abrigo, assistência, apoio, companhia; assim como todas as pessoas, nos machucamos, adoecemos, atravessamos a primeira infância e chegaremos, provavelmente, à velhice.
Uma das lições que essa emergência de saúde nos deixa diz respeito à invisibilidade desses cuidados. Diante disso, nos perguntamos como as mudanças propostas pelas medidas que os países estão adotando têm impacto no cotidiano de homens e mulheres. Essa situação é uma oportunidade para nos perguntarmos – o que, a propósito, poucos meios e formuladores de políticas se perguntaram -: o que acontece com os cuidados no contexto dessa emergência de saúde?
Para um problema estrutural dessa magnitude, a solução não é simples. Uma abordagem histórica da questão foi ignorar a centralidade do cuidado, assumindo que a incorporação das mulheres ao trabalho produtivo redistribuiria essa carga por si só, quando, na verdade, as evidências nos mostraram que isso se traduziu em uma dupla jornada para as mulheres. Algo que sabemos a partir dos estudos de gênero e de cuidados é que a economia considerada produtiva é sustentada pelo trabalho de cuidados (não reconhecido e não remunerado), embora ele seja, em muitos casos, invisível. Como sabemos, na região as mulheres realizam quase 80% do trabalho de assistência não remunerada e são a grande maioria entre as que trabalham no trabalho de cuidados remunerado; portanto, grande parte do total dos cuidados é exercido por mulheres.
Dentro de casa, em todo o mundo, o trabalho não remunerado é realizado por mulheres e meninas. Mas em nossa região, o desequilíbrio na distribuição das tarefas domésticas e no cuidado das pessoas é muito pior do que em outros lugares. Se analisarmos o tempo total gasto em trabalho não remunerado em residências, na América Latina e no Caribe, em média, as mulheres contribuem com 73% e os homens com os 27% restantes. A título de comparação, na Suécia a contribuição dos homens é de 44%, nos Estados Unidos é de 38% e na China de 39%.
Algumas das medidas propostas envolvem o isolamento em ambientes domésticos e a busca de soluções individuais para os cuidados, por parte dos ambientes familiares. Soluções individuais mediadas, portanto, pelos recursos de vários tipos que cada um possui. É um retorno às “portas fechadas”, onde todos devem encontrar sua solução.
A necessidade de fechar estabelecimentos educacionais e de cuidados mostra que as jornadas de trabalho não são compatíveis com o cuidado de meninas, meninos, adolescentes e dependentes. No que diz respeito especificamente às crianças, também é adicionado o monitoramento das tarefas escolares em casa. Em outras palavras, o número de formas de trabalho não remunerado em casa aumentou exponencialmente.
As instruções de isolamento social total de pessoas com mais de 60 ou 65 anos, dependendo do país, lembram-nos, novamente, que em nossos países milhares delas não possuem redes de apoio, cuidadores ou recursos.
Por outro lado, e de acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 126 milhões de mulheres trabalham informalmente na América Latina e no Caribe. Isso equivale a aproximadamente metade da população feminina da região. Isso se traduz, entre outras coisas, em instabilidade no emprego, baixa renda e falta de mecanismos essenciais de proteção em uma crise como a atual. Em muitos países da região, os níveis de informalidade são extremamente altos. Na Bolívia, Guatemala e Peru, 83% das mulheres têm empregos informais, sem nenhum tipo de cobertura previdenciária ou proteção da legislação trabalhista. Na região, quase 40% das mulheres trabalhadoras estão empregadas no comércio, restaurantes, hotéis e trabalho doméstico. Esses são os setores mais afetados e os empregos menos protegidos na crise econômica desencadeada pela emergência sanitária.
Como é possível pensar que essas mulheres podem isolar-se? Como é possível pensar que essas mulheres podem continuar com seu papel produtivo junto ao isolamento social de seus dependentes?
Além disso, quase um quarto de todas as mulheres empregadas na região são empregadas domésticas. Apesar dos esforços e conquistas para formalizar suas condições de trabalho, a maioria dessas trabalhadoras ainda trabalha em condições muito precárias, sem acesso à seguridade social. A maioria continuou trabalhando apesar da recomendação para que a população em geral ficasse em casa – ou foi mandada para casa, mas sem remuneração.
Por sua vez, lembremo-nos de que na região metade dos médicos e mais de 80% da equipe de enfermagem são mulheres, a maior porcentagem do mundo. Essa segregação ocupacional por gênero não é acidental; é influenciada pelas normas de gênero que tornam a saúde uma profissão socialmente aceita para as mulheres, sendo uma extensão da divisão das tarefas no lar. A isso, deve-se acrescentar que parte do trabalho não remunerado que coloca as mulheres em maior risco de contágio, o cuidado dos doentes em casa, também é seu papel .
Recordemo-nos de que a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) indica que 80% dos cuidados de saúde da população são realizados nas residências e sabemos por estudos realizados em diferentes países que esses cuidados são realizados principalmente por mulheres nessas residências. Com a pandemia, as demandas por cuidados a doentes e idosos aumentarão. Para solucionar a crise dos cuidados, precisamos de uma nova ideia de gestão pública que entenda que a interdependência das pessoas é um fato da vida em comum.
A solução não é apenas distribuir o trabalho de cuidados de forma mais equitativa entre homens e mulheres no nível individual, mas também reconhecer sua importância e valor, para que possa ser prestado também, em parte, pela sociedade e pelo Estado assumindo sua responsabilidade.
A emergência da COVID-19 coloca novamente como central a questão da organização social dos cuidados. É necessário que, juntamente com o apoio a todas as medidas e ações que colocam a humanidade no centro – e não o mercado – para aliviar a pandemia, sejamos capazes de instalar a necessidade de colocar os cuidados nesse centro, superando o mercado como o eixo organizador da vida em comum. Esta crise mostra que é hora de começar a pensar em novas formas de organização social em geral, em que o cuidado desempenhe um papel central.
A crise dos cuidados terá outra consequência não menos importante: a dificuldade de incorporação ou continuidade das mulheres no trabalho produtivo em igualdade de condições com os homens. Considerando que os trabalhadores e as trabalhadoras sem proteção, informais e intermitentes, receberão o maior impacto das repercussões econômicas desta crise sanitária, podemos afirmar que a pandemia tornará as mulheres mais pobres e vulneráveis. Já vimos essa situação em casos de emergências devido a desastres naturais. Como o Estado abordará as consequências da perda de empregos devido à sobrecarga de trabalho de cuidados? Que medidas para promover a corresponsabilidade nas tarefas domésticas e de cuidados podem ser realizadas entre o Estado, as empresas e os trabalhadores e trabalhadoras em situação de isolamento social?
A única resposta total e eficaz às crises na reprodução da vida é oferecida pelas instituições universais, públicas e gratuitas, através dos espaços do comum, do coletivo. Nesta situação de alarme, os Estados em geral convocaram a responsabilidade individual para enfrentar uma crise estrutural que evidencia as fraquezas dos sistemas públicos de atenção às pessoas dependentes. A incapacidade dos Estados e governos de ver a dimensão estrutural dos cuidados é preocupante.
As mulheres continuam sendo as mais afetadas pelo trabalho de cuidados não remunerado, principalmente em tempos de crise. Como mencionamos, devido à saturação dos sistemas de saúde e ao fechamento das escolas, as tarefas de cuidados recaem principalmente sobre as mulheres. São necessárias medidas que rompam os moldes tradicionais para que essa situação não caia excessivamente sobre as mulheres. Deve-se pensar de outro modo em como essa crise se distribui, para que não sejamos sempre nós, mulheres, que tenhamos que sustentar os momentos críticos do funcionamento de uma sociedade. Isso implica, entre outros elementos, a construção de uma perspectiva alternativa em nosso modelo de convivência, fundamentado sobre a real igualdade – e não somente formal – entre homens e mulheres. Recuperar a dimensão política da vida cotidiana parece ser um caminho a percorrer.
Karina Batthyány é secretária executiva da Clacso e professora titular na UDELAR (Uruguai).
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