A lenda de Robin Hood para legitimar as emendas dos precatórios. E a lenda se realiza como farsa

Fotografia: David Reed/Pixabay

Expropriação atinge créditos alimentares de segurados da previdência, pequenos funcionários da União, pequenos proprietários rurais corridos de suas terras pelas grandes hidroelétricas e outros mais da base da sociedade.

Rogério Viola Coelho

1 – As Emendas editadas em dezembro de 2021 criaram um teto para o pagamento de dívidas oriundas de decisões judiciais, representadas por precatórios (= ofício destinado ao executivo para inclusão de verba no orçamento), muito inferiores à soma necessária, autorizando uma reapropriação pela União da maior parte dos valores habilitados. Já no primeiro ano (2022), faltou mais da metade da soma habilitada em 2021 e, até 2026, o volume de precatórios acumulados, com o carimbo “sem prazo de pagamento”, poderá alcançar 500 bilhões ou mais, conforme estimativas de órgãos técnicos do Congresso[1]. No fim de 2022, o estoque de precatórios não pagos da União já era o dobro do estimado.

A expropriação atinge créditos alimentares de segurados da previdência, pequenos funcionários da União, pequenos proprietários rurais corridos de suas terras pelas grandes hidroelétricas e outros mais da base da sociedade, todos invisíveis porque espalhados no imenso território nacional. Todos eles continuarão sujeitos a ações coercitivas de seus fornecedores, começando pelo Estado, credor de vários tributos e taxas, abrangendo todos os seus fornecedores e ainda os banqueiros a quem quase todos devem. É formado, assim, um círculo perverso sobre esse universo de pessoas.

Uma vez que as sentenças transitadas em julgado transferem os bens que eram litigiosos para o patrimônio do vencedor da ação, é evidente que as Emendas autorizaram a apropriação pela União de valores já pertencentes a centenas de milhares de credores pobres. No texto da Emenda 114, o artigo 107-A, que bloqueia os valores devidos com a fixação do teto, anuncia que eles serão destinados ao pagamento da renda básica, visando assim legitimar a pilhagem de um universo de centenas de milhares de pessoas pobres. 

As Emendas foram anunciadas tal qual uma operação ROBIN HOOD, o justiceiro à margem da lei que vivia com seu bando e assaltava os nobres em busca de víveres para distribuir aos pobres. Em verdade, a previsão e conteúdo das Emendas se assemelham muito mais a antiga prática de pilhagem, as quais durante o Estado Absoluto eram praticadas pelos monarcas nas guerras internas ou externas, modificando as leis ou mesmo agindo a margem delas baseado em seu poder absoluto e divino.

Para legitimar a pilhagem de centenas de milhares de pessoas pobres, seu real conteúdo aparece velado e é anunciado como uma forma de beneficiar os miseráveis. Na verdade, o produto da pilhagem tem destinação diversa: as emendas secretas do relator e os compradores dos precatórios aviltados, os banqueiros, receptadores habituais do crime. Os beneficiários dos despojos estavam mais uma vez no andar de cima. E a lenda se realiza como farsa.

No Estado de Direito, conquistado através das revoluções oitocentistas, foram instituídas as garantias fundamentais para assegurar o exercício dos direitos, em primeiro o direito pela liberdade e propriedade e depois contra o Estado: a igualdade de todos na aplicação da lei, o devido processo legal e, para garantia das garantias, a tutela jurisdicional.

2 – A coisa julgada é uma garantia institucional consagrada entre os direitos e garantias individuais no artigo 5º da Constituição que dispõe: “XXXVI – A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”. A diferença entre os três consiste em que a coisa julgada opera a transferência imediata do bem litigioso para a parte favorecida pela sentença, enquanto as outras duas necessitam que seja proposta uma ação judicial para se fazer valer. Afonso da Silva (2008) assinala que “tutela-se a estabilidade dos casos julgados para que o titular do direito aí reconhecido tenha a certeza jurídica de que ele ingressou definitivamente no seu patrimônio”[2].

A operação instituída pelas Emendas é uma apropriação indevida de valores monetários já pertencentes a terceiros, os vencedores das ações contra a União.  Ela corresponde ao delito tipificado no artigo 168 do Código Penal como apropriação indébita, que é praticado por quem detém e retém bem alheio, sem razão legitima com pena de reclusão de uma a 4 anos e multa.

O “espaço fiscal” que teria sido aberto pela redução das verbas para pagamento de precatórios seria destinado à cobertura da renda básica e da seguridade social conforme artigo 107-A, introduzido pela Emenda 114 referindo-se aos termos do art. 194 da Constituição Federal que versa a respeito da seguridade social.

Foi também introduzido pela Emenda 114 o parágrafo único do artigo 6º que cria a renda básica: “Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária.”

Entretanto, essa pretensa vinculação do espaço fiscal que estaria sendo aberto com os benefícios apontados é juridicamente impossível. Os recursos orçamentários gerados por impostos ou por cortes de despesas não comportam carimbo de destino, a única forma de vinculação de receitas à gastos determinados é por meio de contribuições. O melhor exemplo são as contribuições previdenciárias, recolhidas dos segurados, dos empregadores e da própria União, receitas que devem ser contabilizadas em orçamento distinto do orçamento geral da União, consignando-se também aí as despesas com os benefícios pagos aos segurados e seus dependentes. A destinação do “espaço fiscal” que teria sido aberto pela redução das verbas para pagamento de precatórios à cobertura da renda básica e ao custeio da seguridade social, feita no artigo 107-A do ADCT, constitui, portanto, uma falácia.

A receita destinada ao pagamento do benefício da renda básica e o custeio da seguridade social – despesas obrigatórias e permanentes e que já possuem diversas fontes de receita previstas na Constituição – não pode ser eleita discricionariamente pelos poderes constituídos a partir de medidas de exceção. 

Naturalmente, a União deveria recorrer à imposição de impostos, destinados a cobrir suas despesas e obrigações constitucionais e legais. Como, por exemplo, tributar os dividendos distribuídos por pessoas jurídicas a seus acionistas, que são isentos de tributação desde a década de noventa, um privilégio que só existe em outros quatro países. Poderia também, em situação de crise, instituir um empréstimo compulsório (art. 148), obedecendo ao princípio da capacidade contributiva, em vez de recair sobre o universo dos credores por precatórios, recortados arbitrariamente na base da sociedade. 

3 – A Emenda da Transição – EC nº 126 de dezembro de 2022, postulada pelo governo recém-eleito, aumentou o teto geral de gastos do Executivo em 145 bilhões para o exercício de 2023 (Art. 3º) destinando metade às despesas com a renda básica, o que afastava a alegada necessidade de apropriação indébita dos recursos para pagar precatórios.  No entanto, esta Emenda repetiu o artigo 107-A do ADCT da Emenda 114, que gerou o teto para pagamento das dívidas oriundas de decisões judiciais. A expropriação criminosa introduzido pela Emenda 114 foi ratificada pelo artigo 2º, da Emenda 126, em termos idênticos, incluindo a longa vigência até o final de 2026 e a falsa justificativa de uma operação necessária para viabilizar o pagamento da renda básica para alguns milhões de pessoas mais pobres ainda, revivendo a lenda de ROBIN HOOD, sem ou com o conhecimento do novo Presidente. 

4 – A falsa classificação das dívidas originadas de decisões judiciais transitadas em julgado, representadas por precatórios, como despesas públicas, foi adotada pelas Emendas para considerá-las submetidas ao teto geral de gastos fixado pela Emenda 95, que incide literalmente só sobre as despesas primárias da União. (art. 107, I do ADCT).

Evidente que o corte, se fosse necessário, deveria incidir sobre despesas primárias definidas pela Emenda 95, jamais sobre dívidas da União, como são as dívidas oriundas de decisões judiciais, que têm a mesma classificação de todas as demais dívidas, como por exemplo a dívida pública e que não sujeitam a contingenciamentos. 

BELLUZZO (2023), em artigo intitulado A bomba da dívida[3] enfatizou que os precatórios não são despesas primárias; são ordens de pagamento emitidas pelo Judiciário contra o Executivo, que se tornou devedor. Assim, devem ser classificados como dívida. A Exposição de Motivos da PEC 23, que deu origem às Emendas 113 e 114 dizia que o montante necessário para pagamento das dívidas decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado, correspondia a despesas sujeitas ao teto geral de despesas fixado pela EC-95, recomendando a aprovação da Emenda para abertura de espaço fiscal no orçamento de 2022

5 – O Supremo Tribunal Federal já proclamou a existência de ofensa à dignidade da Justiça em face de emendas que bloqueiam o cumprimento das decisões judiciais. Como é o caso do acórdão RTJ 167/6-7do Ministro Celso de Mello que reitera a exigência de respeito incondicional às decisões judiciais como obrigação constitucional inderrogável dos do poder público. 

Na última ocasião em que o tema foi apreciado pelo STF (ADIs 4.357 e 4.425), o então presidente da Corte, Ministro Luiz Fux, asseverou que: “Permitir que decisões emanadas do Poder Judiciário, já definitivamente constituídas e revestidas de exigibilidade, percam sua força executiva […] representa escárnio à nobre função jurisdicional.” No mesmo sentido, pronunciou-se a MINISTRA ROSA WEBER como relatora na Adin 4.357: 

Compartilho da compreensão dos que conferem exegese ampla às cláusulas pétreas do art. 60, § 4º, do nosso texto magno.  Entendo que também o poder constituinte derivado ou reformador – e não apenas o legislador ordinário – está submetido ao postulado da irretroatividade consagrado no art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

As normas garantistas, que são de relevância extrema no Estado Constitucional necessariamente demandam serem aplicadas pelo Tribunal, afastando assim as ameaças e lesões visadas pelo ato espúrio do legislador. Nestas condições, a omissão prolongada do STF no julgamento da medida cautelar postulada, que segue permitindo o avanço do crime continuado e a ameaça de mais pilhagens de bens de cidadãos da base da sociedade é um atentando contra o sistema de Justiça, instituição muito maior que o poder judiciário em si.  

Observe-se que as Emendas 113 e 114 foram promulgadas em 19 de dezembro de 2021 e em 13 de janeiro de 2022 foi ajuizada a AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE pela ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – OAB, ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS – AMB, e outras entidades legitimadas, com pedido fundamentado de Medida Cautelar, ad referendum do plenário, para suspender a incidência das duas Emendas. Em março de 2022, a OAB voltou a pedir a apreciação da cautelar postulada, tendo sido indeferida em 04 de abril sob alegação de que a complexidade da matéria estaria a exigir exame detido. Em agosto de 2022, a até então relatora MINISTRA ROSA WEBER foi substituída pelo MINISTRO LUIZ FUX, que continuou sem apreciar o pedido de cautelar. 

A demora na prestação jurisdicional está permitindo a pilhagem dos bens de centenas de milhares de cidadãos da base da sociedade produzindo efeitos perversos – gerando a cada ano a apropriação indébita de valores de mais de cem mil cidadãos da base da sociedade que venceram a resistência prolongada da União em ações condenatórias, o que por si só parece suficiente para demonstrar a existência de periculum in mora.

E a razão invocada para não examinar a cautelar postulada é desprovida de razoabilidade, uma vez que a matéria é conhecida da Corte Egrégia, em particular dos Ministros que se sucederam na relatoria. O STF já decidiu várias vezes sobre a matéria, declarando a inconstitucionalidade de emendas que concediam mais prazo para pagamento de precatórios devidos por Estados e Municípios e entes federados que haviam deixado de pagar por vários anos precatórios regularmente habilitados.

6 – Segundo BELLUZZO[4], quando o STF declarar a inconstitucionalidade irá estourar uma bomba contra o erário.  O volume do estouro, que será certamente amplificado pelos agentes políticos e pela mídia, poderá constranger esta Corte a assumir o gesto piedoso de conceder à União alguns anos mais de prazo para os pagamentos, como já ocorreu com os estados e restando ao grupo numeroso de cidadãos, aguardando justo pagamento, a alternativa de transferi-los aos receptadores habituais, por preços ainda mais aviltados. 

O acesso à Justiça, considerado garantia primordial no Estado Constitucional de Direito, está consagrada no inciso XXXV do artigo 5° nos seguintes termos: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão à direito”. Parece uma mensagem ao legislador para que não edite leis (ou emendas) excluindo da apreciação do Poder Judiciário as lesões ou ameaças à direitos. Mas ela contém uma autorização ao Poder Judiciário para que invalide os atos do legislador editados com esse fim e aos cidadãos a faculdade de recorrer a tutela jurisdicional para afastar a aplicação de tal lei ou emenda.

No caso das Emendas dos Precatórios, a omissão prolongada do Tribunal na apreciação da cautelar postulada (e a postergação do julgamento da ADIN) pode levar à consumação do crime continuado em toda a sua extensão, impondo aos cidadãos jurisdicionados a perda definitiva da totalidade de seus bens e nesta hipótese o acesso à Justiça estará reduzido ao cumprimento de um ritual. E com isto a dignidade da vai se estiolando no tempo. Desta vez, por obra dos Ministros do Tribunal Supremo, ou pelo protagonismo perseverante de suas gavetas.  

Leia mais em: PECs 113 e 114 são verdadeiro assalto ao sistema de Justiça e à Constituição. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-fev-01/rogerio-viola-coelho-inconstitucionalidade-pecs-113-11421>.

Crônica. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-fev-09/rogerio-coelho-expropriacao-pobres-olho-olho-bc>

Notas

[1] PIMENTA, Guilherme. Estoque de precatórios da União já é o dobro do previsto. Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/04/14/estoque-de-precatorios-da-uniao-ja-e-o-dobro-do-previsto.ghtml.
[2] AFONSO DA SILVA, José. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2008, p.135.
[3] BELLUZZO, Luiz Gonzaga. A bomba da dívida. Jornal O Globo. Opinião. Rio de Janeiro, 24 jan.2023, p. 2. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/01/a-bomba-da-divida-sobre-o-brasil.ghtml
[4] BELLUZZO, Luiz Gonzaga. A bomba da dívida. Jornal O Globo. Opinião. Rio de Janeiro, 24 jan.2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/01/a-bomba-da-divida-sobre-o-brasil.ghtml.

Rogério Viola Coelho é Advogado em Porto Alegre. OAB/RS – 465

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