Valdete Souto Severo
Em curso que estou acompanhando na Itália, tenho escutado, aula após aula, o relato de um processo de desmanche do Direito do Trabalho italiano, que é a culminância de um caminho que vem sendo trilhado já há algum tempo. Enquanto isso, na França fervilham atividades de protesto contra uma reforma que se encaminha no mesmo sentido e que o governo aprovou contra a maioria do parlamento.
Na verdade, a Assembleia Nacional Francesa teve de aceitar a reforma do Código do Trabalho porque o governo, não dispondo de apoio da própria maioria parlamentar que o sustenta (Partido Socialista), invocou o art. 49.3 da Constituição, impondo a sua adoção. Esse dispositivo permite, em casos excepcionais, que o Presidente, após consulta ao Conselho de Ministros, imponha ao parlamento as medidas que entende necessárias à consecução da sua política de governo. O parlamento tem a possibilidade de opor uma moção de censura ao governo, por essa imposição, mas precisa fazê-lo dentro de 48 horas após sua apresentação. Como não obtiveram o número mínimo de votos necessários (58) para isso, não houve moção de censura.
O interessante é que, em notícia veiculada esta semana em jornal francês, lê-se a afirmação de que “o FMI considera insuficiente o pacote de medidas da reforma francesa do direito do trabalho” e ainda considera o mercado laboral francês “pouco adaptável à evolução da economia global”. Ou seja, não é suficiente acabar com a reintegração, o que a Itália já fez, nem precarizar o trabalho ou majorar a jornada. O que seria suficiente então? Talvez, acabar com o Direito do Trabalho.
Voltando à realidade brasileira, temos um pacote extenso de medidas legislativas que promovem um desmanche tão grande quanto aquele proposto na França e já levado a efeito na Itália. Mas aqui estamos resistindo. Desde 2004 o projeto de lei acerca da terceirização tem sido insistentemente levado à discussão no Congresso e, se até agora não foi aprovado, é porque existe uma resistência ativa importante.
Se fizermos um quadro comparativo aproximado das principais alterações havidas (ou pretendidas) aqui, na Itália e na França, veremos que constituem variações de um mesmo tema, por vezes com similitudes que impressionam. O trabalho intermitente, a criação de novas formas de contrato por prazo, a majoração da jornada (inclusive com redução de salário), a terceirização, a desconstrução das normas de proteção contra a despedida e o privilégio das normas coletivas em detrimento da lei (mesmo quando suprimem direitos) são as principais questões enfrentadas nessas três realidades tão diversas.
As normas processuais não escapam. A Itália está ultimando uma reforma muito parecida, em sua coluna vertebral, com o NCPC: incentivo à mediação e à conciliação, previsibilidade nas decisões, necessidade de reduzir o tempo e o número de processos em tramitação e o incentivo à completa informatização dos procedimentos. Tudo na linha das recomendações do Documento 319 do Banco Mundial. O problema é que na Itália, ao contrário do Brasil, as reformas atingem em cheio o processo do trabalho, que nada mais é do que um capítulo do Código de Processo Civil italiano. Aqui, ainda podemos resistir à aplicação das normas do CPC ao processo do trabalho.
Enquanto na Itália o desmanche quase completo do Direito do Trabalho já é realidade e na França está em vias de tornar-se, no Brasil ainda temos a chance de desviar o curso e preservar alguns institutos importantes para a regulação minimamente decente da exploração do trabalho pelo capital.
Esse panorama permite que lancemos duas conclusões parciais, sujeitas à análise mais profunda. A primeira hipótese é de que estamos enfrentando uma crise de instituições em que o próprio modelo de Estado tripartite revela traços de esgotamento. O exemplo do Poder Judiciário no Brasil é eloquente, pois cria suas próprias leis (as súmulas vinculantes) e o faz com autorização dos demais poderes, que não apenas permitiram a criação dessas súmulas com superpoderes, através da EC 45, como ainda, recentemente, concederam praticamente a mesma força a todas as decisões proferidas pelos órgãos de cúpula, através da redação de artigos como o 332 e o 927 do CPC. E, ao mesmo tempo em que a magistratura das altas cortes ganham um poder de tamanha dimensão, os juízes de primeiro e segundo graus veem esvaziadas suas atribuições e decididamente comprometida a sua independência. A perda da independência judicial implica o comprometimento da própria possibilidade de exercício da democracia.
É certo que podemos compreender essa crise como algo positivo, por conferir a possibilidade de superação do sistema que hoje adotamos. E também por permitir que reflitamos sobre a função do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho, especialmente em nosso país.
Desse modo, chego a segunda hipótese. Parece-me que a resistência que no Brasil conseguimos exercer, e que certamente explica-se por fatores complexos, é de certo modo potencializada pela existência de uma Justiça do Trabalho.
A Justiça do Trabalho é o ambiente em que as normas fundamentais de proteção ao trabalho encontram espaço para serem exigidas, para serem respeitadas. Como bem observou Mozart Victor Russomano, em obra de 1956, a Justiça do Trabalho pressupõe o reconhecimento de que a racionalidade liberal do processo comum não serve de instrumento à realização de um direito que é ditado pela premissa de que a “fome não respeita prazos processuais”.
Note-se que, enquanto o Brasil tem Justiça do Trabalho, na Itália e na França o que temos são apenas varas especializadas dentro de uma mesma estrutura de poder, o que torna bem mais palatável a aproximação das normas de regulação da relação de trabalho com normas de direito civil, que partem de premissa inversa (de igualdade entre os “contratantes”).
É por isso que o corte orçamentário, que não disfarça o objetivo de sucatear e com isso acabar com a Justiça do Trabalho, tem especial gravidade no quadro de flexibilização do Direito do Trabalho e de retrocesso social que enfrentamos e que não é algo que decorre da nossa crise política ou econômica. É um fenômeno do mundo ocidental capitalista.
Suprimir esse espaço – é disso que se trata e é essa a consequência do corte de orçamento chancelado pelo STF – é retirar dos trabalhadores a possibilidade de exercício de sua cidadania, de exigência do respeito às normas constitucionais. Se isso importa para a manutenção da sociedade do capital, importa ainda mais para quem crê nas possibilidades de superação do sistema. Sem a garantia dos direitos sociais, dentre os quais sem dúvida o Direito do Trabalho figura como ator principal, não há como construir alternativas viáveis.
Essas alternativas dependem de pessoas que tenham tempo para ler, discutir, pensar, sonhar e agir para que as mudanças ocorram. É um equívoco pensar que fazer “terra arrasada” seja um caminho interessante para mudanças radicais. Pessoas sem trabalho, sem comida, sem casa, sem tempo e sem esperanças não constroem novos caminhos. Ao contrário, vivem para satisfazer suas necessidades fisiológicas. Reduzidos à condição de coisa durante o trabalho, tornam-se animais em luta pela sobrevivência no que resta de seu tempo de vida.
Hoje existem dois discursos que convivem nos ambientes de interpretação e aplicação do Direito do Trabalho. De um lado o discurso da fundamentalidade dos direitos sociais trabalhistas, que nada mais é do que o resgate da noção de proteção e o reconhecimento de que essa noção remete à preservação da dignidade de quem trabalha, através de garantias que devem ser sempre maiores para o trabalhador.
De outro, o discurso da flexibilização, que também é de certo modo a reedição de discursos antigos, sempre embalados pela mesma toada, de que os direitos trabalhistas atrapalham a economia, e que se reflete nessas alterações antes referidas. Ambos podem e já foram historicamente invocados como resposta possível à crise que hoje enfrentamos.
O que precisamos perceber é que o desmanche dos direitos trabalhistas e da Justiça do Trabalho não serve à estabilização da sociedade dentro dos padrões do capitalismo, nem aos trabalhadores ou aos empregadores que estão interessados em produzir e alavancar a economia brasileira. Também não serve a quem acredita na possibilidade de superação do sistema. A quem serve então? Não é uma resposta difícil. Mais do que respondê-la, porém, é indispensável que, nesse momento de franco retrocesso em relação a algumas conquistas sequer efetivadas (como a garantia contra a despedida arbitrária no Brasil), compreendamos a importância de preservar a Justiça do Trabalho, que precisa ter condições concretas de funcionamento, para continuar contribuindo para a realização do Direito do Trabalho e, com isso, para a criação de condições de mudança de uma realidade que já há algum tempo revela-se insustentável.
Valdete Souto Severo é juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Europeia de Roma – UER (Itália). Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai. Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica – PUCRS. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social.
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