A eterna Macondo dos trabalhadores

Pedro Henrique Koeche Cunha

Fonte: Sul21
Data original da publicação: 05/02/2019

Referência maior da literatura latino-americana, Gabriel García Márquez entrou para a história da literatura mundial em 1967, ao lançar a sua obra prima Cem Anos de Solidão. A notoriedade da obra não decorreu somente da beleza e da poesia da literatura de García Márquez, mas, sobretudo, do fato de Cem Anos de Solidão ter se consolidado como o livro mais reconhecido da escola literária que ganhou o mundo sob a denominação de realismo mágico.

Em que pese o extremo sucesso da escola literária, é por vezes ignorado o fato de que o realismo mágico de Cem Anos de Solidão tem em sua essência uma forte crítica social e política. O livro se presta a denunciar a força dominante e opressora do colonialismo sobre os países latino-americanos, bem como as incontáveis guerras que separaram o continente por décadas.

Justamente em função da crítica social presente na obra e da capacidade ímpar de retratar, através da literatura, a história e os sofrimentos da América Latina, é que Cem Anos de Solidão se consolidou como uma espécie de grande metáfora da condição latino-americana. O que chama a atenção é que, passados mais de 50 anos do lançamento do livro, as metáforas de Gabriel García Márquez ainda são extremamente atuais.

Assim como ocorria em 1967, em 2019 as forças externas que atuam sobre a América Latina seguem homogêneas em vender receitas de desenvolvimento prontamente capazes de levar os países latino-americanos à superação dos seus incontáveis problemas sociais. O fato de que tais receitas são vendidas e aplicadas indistintamente a todos os países da América Latina reforçam a percepção de que somos, na verdade, parte de uma Pátria Grande – ou URSAL, como vêm denunciando os novos arautos da política brasileira.

Um dos pontos altos e assustadoramente atuais de Cem Anos de Solidão envolve a narrativa – baseada em um acontecimento real da história colombiana – de uma greve de trabalhadores da companhia bananeira estabelecida por empresários dos Estados Unidos na cidade-cenário de Cem Anos de Solidão – a fascinante Macondo. O trecho da obra retrata os acontecimentos decorrentes da instalação da companhia bananeira e as posteriores reivindicações de trabalhadores da empresa, que buscavam direitos básicos, como um ambiente de trabalho e moradias mais salubres, a liberdade de não trabalhar aos domingos e melhores condições de trabalho.

As intermináveis tensões entre capital e trabalho são exploradas com a maestria característica de Gabriel García Márquez. A reunião e a reivindicação de trabalhadores por direitos básicos nas relações de trabalho são até hoje vistas como uma ameaça e um entrave ao “desenvolvimento” nacional por certos setores do capital. Não é à toa que sindicatos são vistos como inimigos por quaisquer governos que desejem impor restrições a direitos arduamente conquistados pela classe trabalhadora – e isso pode ser visto em diversos países que compõem a gigante Macondo que é a América Latina, como demonstram as recentes reformas trabalhistas implementadas ou discutidas no Brasil, na Argentina, no Chile, no México, no Peru, no Paraguai e em Porto Rico, apenas para citar alguns exemplos.

As reformas laborais impostas aos países latino-americanos como condição para o seu desenvolvimento possuem pontos bastante homogêneos: a retirada de poderes dos sindicatos de trabalhadores, a redução – ou até a extinção – de direitos trabalhistas previstos nas legislações nacionais e, é claro, uma redução drástica da seguridade social garantida pelo Estado. As promessas de criação de empregos e desenvolvimento que sustentam a argumentação a favor da retirada de direitos não se concretizam na prática, mas bastam para garantir a narrativa suficiente para a aprovação das reformas.

O curioso é que as reformas vendidas como receitas-prontas para alcançar a “modernização” dos países latino-americanos buscam sempre aproximar as condições de trabalho e de seguridade existentes na América Latina daquelas existentes em países pouco desenvolvidos, como os do Sudeste Asiático – ou seja, direitos quase inexistentes e proteção do trabalho extremamente precária. Os países que deveriam servir como modelo em questões de proteção ao trabalho e seguridade social – como os países europeus -, por outro lado, ficam cada vez mais distantes da realidade latino-americana.

Na Macondo de García Márquez, os trabalhadores da companhia bananeira buscaram ter seus direitos garantidos através de queixas dirigidas aos tribunais supremos. Nesse momento da obra o leitor é deparado com um trecho que guarda uma semelhança aterradora com o momento do Direito do Trabalho latino-americano, que propõe novas relações de trabalho precárias e sem o mínimo de garantias legais – como é o caso do trabalho intermitente no Brasil. Nos tribunais da tão distante e tão presente Macondo, “os ilusionistas do direito demonstraram que as reclamações [dos trabalhadores] careciam de qualquer valor, simplesmente porque a companhia bananeira não tinha, nem tivera jamais, trabalhadores a seu serviço, mas os recrutava ocasionalmente e em caráter temporário”, de modo que “estabeleceu-se por decisão do tribunal, e se proclamou em decretos solenes, a inexistência dos trabalhadores”.[1]

O atual cenário político latino-americano demonstra que há forças que desejam que, para os trabalhadores, a América Latina continue tendo como referência a Macondo de Gabriel García Márquez, em que, para afastar os direitos da classe trabalhadora, basta proclamar solenemente “a inexistência dos trabalhadores”. Espera-se, por outro lado, que os tribunais supremos latino-americanos de hoje não sirvam para a mesma finalidade daquele existente em Macondo, uma vez que cabe, também à Justiça, a defesa dos direitos fundamentais e sociais da classe trabalhadora.

Em 1982 Gabriel García Márquez foi merecidamente agraciado com o Prêmio Nobel da Literatura. Em seu discurso quando do recebimento do prêmio, o autor sentenciou que “A interpretação da nossa realidade a partir de esquemas alheios só contribuiu para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários”. E, por fim, formulou um questionamento que continua atual em 2019: “Por que pensar que a justiça social que os europeus desenvolvidos tratam de impor em seus países não pode ser também um objetivo latino-americano, com métodos distintos e em condições diferentes?”[2]. A pergunta segue sem respostas, mas são cada vez mais numerosos os que buscam esquivar-se dela.

Notas:

[1] MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem Anos de Solidão. Rio de Janeiro: Record, 2016. 94. ed, p. 336.

[2] Disponível em: <https://homoliteratus.com/solidao-da-america-latina-discurso-de-garcia-marquez-no-nobel-de-literatura/>. Acesso em: 04 de fev. de 2019.

Pedro Henrique Koeche Cunha é advogado, formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) em 2015 e especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela mesma instituição.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *