A convenção nº 158 da OIT e a pauta trabalhista do STF em 2023

105ª Conferência Internacional do Trabalho começa na segunda-feira (30/05), na sede da OIT, em Genebra. Fotografia: Divulgação

O gérmen da polêmica e do medo disseminado é bastante simples: terminológico.

Daniel Ybarra de Oliveira Ribeiro

Fonte: Conjur
Data original da publicação: 09/01/2022

Todo começo de ano, especialmente quando equivale a um começo de novos rumos governamentais no país, vem acompanhado de fortes especulações em diversas áreas jurídicas. Afinal, é natural que determinados pontos de vista sobre o mundo orientem as políticas públicas e normas de cada ciclo de gestão do país, sendo igualmente natural a ansiedade que se espalha.

Tais especulações, em 2023, vêm sendo fortemente ancoradas no Direito do Trabalho, e talvez a mais alardeada de todas — e que tem gerado muita preocupação no mundo empresarial — diz respeito à retomada e conclusão do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1.625 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o que deve ocorrer neste ano e que, supostamente, poderia redundar na proibição da efetivação de dispensas sem justa causa.

As razões da preocupação, no entanto, não se sustentam, pois se vê muita atecnia e certa afobação nas afirmações que se disseminam nas redes. Um grande mal de nosso tempo, talvez, seja a falta de aprofundamento real nos assuntos: basta a leitura de uma matéria ou, pior, do título dela conscrito no link, que já estamos prontos para formar opinião e — ainda mais grave — disseminá-la.

Um brevíssimo histórico
A ADI 1.625, que provavelmente será de fato concluída em 2023 (especialmente em razão das alterações aprovadas pelo STF no seu Regimento Interno, que dentre outras previsões limita o período de retorno de vista dos autos por ministro a 90 dias), é um processo que foi movido perante o STF em 1997 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), que busca a invalidação do Decreto nº 2.100/1996, por meio do qual o então presidente Fernando Henrique Cardoso publicizou a denúncia à Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Em Direito Internacional do Trabalho, exerce função central a OIT, uma centenária agência da ONU que funciona em organização tripartite (governos, empregadores e trabalhadores são nela representados) e busca a criação de standards internacionais de princípios e regras trabalhistas, visando à proteção dos direitos dos trabalhadores, ao fomento da produção e à racionalização e pacificação da relação empregatícia. A mais relevante das formas de sua atuação é a edição de tratados internacionais denominados convenções, que podem ou não ser ratificadas internamente por cada um dos Estados-membros da organização. A ratificação, pelo Estado-membro, implica em incorporação ao seu sistema jurídico interno e aplicabilidade impositiva.

Uma dessas convenções aprovadas na OIT é a de número 158, que no ano recém-findado completou 40 anos de existência, tendo sido aprovada em 1982 na 68ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra (Suíça). O objeto dessa convenção internacional é o tratamento do término da relação de trabalho por iniciativa do empregador. Ela foi ratificada no Brasil e promulgada em abril de 1996, mas, pouco mais de oito meses depois de sua ratificação, foi denunciada pelo decreto acima mencionado, um ato praticado pelo chefe do Executivo. Em 1997, veio a ação que discute a constitucionalidade dessa denúncia, pois nos termos do artigo 49, I, da Constituição Federal, a denúncia de um tratado internacional (que culmina com sua exclusão do ordenamento interno) após determinado prazo está subordinada à participação do Congresso Nacional, o que realmente não aconteceu no Decreto nº 2.100/1996. A tendência que se percebe pelos votos já proferidos ao longo dos 25 anos de tramitação da ação é, de fato, a da procedência da ação, com declaração da inconstitucionalidade da denúncia, com o resultado da reincorporação da Convenção nº 158 ao ordenamento brasileiro.

Mas quais são as consequências de eventual procedência da ação? E é aqui que surge o copo com açúcar: a reincorporação da Convenção nº 158 ao ordenamento brasileiro não significa, em absoluto, que os empregadores do país não poderão promover dispensas sem justa causa. E as razões são várias, mas nos concentraremos em duas: questões do conteúdo da convenção e da atual sistemática brasileira pertinente ao assunto e questões procedimentais, relativas à sua aplicabilidade e eficácia.

Do ponto de vista material, vale checar qual é a previsão que causa tanto receio. Ela está no quarto dos 22 artigos da Convenção nº 158 da OIT:

Art. 4 — Não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço.

O apressado alarde que decorreu da leitura simplória (e simplesmente equivocada) desse dispositivo estava feito: empregadores, em razão desta regra, só poderiam promover dispensas por justa causa.

É evidente que uma regra desse padrão teria consequências catastróficas ao setor produtivo. Afinal, a liberdade de iniciar e terminar relações jurídicas é a base de qualquer contrato, não sendo racional em um Estado de Direito a imposição da perenização de contratos privados. É de se imaginar que ao saber que não poderia rescindir um contrato, determinado sujeito preferisse sequer firmá-lo o que, na questão em comento, significaria o exato direcionamento contrário aos objetivos constitucionais de fomento ao emprego e combate à informalidade. Por outro lado, a desinformação é igualmente perigosa, pois não é exagerado imaginar que empregadores, temerosos com o futuro catastrófico indevidamente alardeado, optem por se antecipar ao fim do julgamento no STF e já romper — enquanto “podem” — vínculos de emprego, rumando o país à informalidade e desestabilização da rede empregatícia e da própria produção econômica nacional.

Mas o gérmen da polêmica e do medo disseminado é bastante simples: terminológico. Uma das questões mais prementes em Direito Internacional é a cautela na interpretação literal, na medida em que se é muito difícil encontrar um direito dito “uniforme”, certamente é ainda mais difícil encontrar terminologias uniformes. Afinal, as especificidades linguísticas e culturais de cada país invariavelmente conduzem o olhar do leitor nas palavras, e ele as internaliza consoante sua realidade.

No Brasil, vigora a sistemática que tem como viável a rescisão de contratos de trabalho “sem justa causa” e “com justa causa“, com algumas exceções relacionadas às garantias provisórias de emprego. É muito difícil conceituar o que é “justo”, esse termo tão frequente na Consolidação das Leis do Trabalho. Afinal, a própria “justiça” é um conceito jurídico-filosófico que há séculos suscita amplo debate e estudo.

Ocorre que a Convenção nº 158 da OIT, em momento algum, discute a rescisão por causa “justa” ou “injusta“. A previsão da norma internacional, como se depreende do seu artigo 4º acima reproduzido, é a exigência de uma causa justificada para a rescisão de um contrato de trabalho por iniciativa do empregador. Ora, “justificado” certamente não é sinônimo de “justo”, de maneira que a norma impõe apenas que exista uma justificativa para rescisão, e ela não precisa ser “justa” (afinal, é muito difícil conceituar objetivamente uma situação como “justa” ou “injusta”).

Assim, tem-se claro que a confusão nasce da indevida aplicação de equivalência entre “causa justa” e “causa justificada”, evidenciando a raiz terminológico-linguística do problema. Os mais atentos podem lembrar que há outros termos corriqueiramente aplicados no país (“dispensa imotivada” ou “dispensa motivada”), mas são igualmente incompletos e inapropriados, pois toda rescisão de um contrato de trabalho possui um “motivo” a ela subjacente.

Como a própria convenção descreve, ela admite a dispensa de um empregado “…relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço”. Ora, é claríssimo que dispensas por performance (capacidade), aderência a regulamentos internos (comportamento) ou por conjuntura econômica, queda de produção e headcount (necessidades de funcionamento) estão amparadas na norma, de modo que estas (que são as mais comuns razões para que um empregador decida romper um vínculo de emprego) permanecerão absolutamente hígidas e aceitas.

O que a Convenção nº 158 da OIT parece pretender coibir é a dispensa de um determinado empregado pela simples vontade do empregador, desacompanhada de qualquer razão relacionada à execução daquele contrato de trabalho.

Aliás, a Convenção nº 158 da OIT expressamente admite, em seu artigo 10º, que cada Estado-membro delibere em sua legislação interna — notadamente a sua Constituição — de que modo se erija a fórmula de solução para as dispensas “sem causa justificada”: a reintegração e/ou uma indenização compensatória.

No Brasil, a Constituição já traz o caminho, no inciso I do artigo 7º, que consagra o direito constitucional dos trabalhadores brasileiros de uma “I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos””

A regulamentação por lei complementar do Artigo 7, I, da CF não foi feita até hoje, mais de 30 anos após a égide da ordem constitucional. Em razão disso, a regulamentação transitória se deu na forma do artigo 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que prevê a indenização rescisória correspondente a 40% do saldo do FGTS [1]. Essa é a “indenização compensatória” prevista na Constituição e que, atualmente, vigora no país. Ou seja, uma escolha já foi (ainda que provisoriamente) feita no país, de modo que há uma indenização prevista para casos em que uma dispensa se dá por performance (capacidade), aderência a regulamentos internos (comportamento) ou por conjuntura econômica, queda de produção e headcount (necessidades de funcionamento). A única hipótese tolhida ao empregador, caso a previsão do artigo 4º da Convenção 158 da OIT fosse plenamente aplicável no país, seria a rescisão de um contrato de trabalho por sua simples vontade de assim proceder, sem que existam quaisquer problemas de capacidade e comportamento do empregado ou necessidades da empresa.

Por outro lado, vale dizer que mesmo que o STF julgue procedente a ação, reintroduzindo a Convenção nº 158 da OIT ao ordenamento brasileiro, isso não significaria sua automática aplicação.

Afinal, ela prevê em seu artigo 10º a regulamentação da proteção contra a dispensa arbitrária a ser realizada por cada país signatário, o que é incompatível com a natureza autoaplicável de convenções. A norma internacional não traz a consequência que seria uniformemente aplicada por qualquer Estado-membro que verificasse uma “dispensa sem causa justificada“. Não há uma linha na Convenção nº 158/OIT, por exemplo, que preveja que nesta hipótese as dispensas teriam de ser anuladas ou declaradas nulas. De todo o modo, ainda que tal previsão houvesse, ela seria inconstitucional, eis que a Convenção nº 158/OIT seria incorporada ao direito interno com status supralegal (o que equivale a dizer que seria superior à lei, mas infraconstitucional) e a nossa Carta Magna (CF e ADCT) já traz a consequência meramente indenizatória para a dispensa arbitrária ou sem justa causa.

Assim, ainda que de fato sejam verdadeiros os prognósticos de que o Supremo Tribunal Federal irá finalizar, em 2023, o julgamento da ADI 1.625, não se justifica qualquer receio no meio empresarial, uma vez que mesmo se julgada procedente a ação, com reincorporação da Convenção nº 158 da OIT ao ordenamento interno, isso não significaria a proibição de rescisões de contratos de trabalho “sem justa causa“, seja pela ausência de autoaplicabilidade, seja pela submissão da convenção ao primado constitucional, que já autoriza tais dispensas, prevendo a indenização do artigo 10 do ADCT para casos de dispensa “arbitrária ou sem justa causa”.

Notas

[1] Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição:

I – fica limitada a proteção nele referida ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, caput e § 1º, da Lei n.º 5.107, de 13 de setembro de 1966;

Daniel Ybarra de Oliveira Ribeiro é graduado em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pós-graduado em Direito Civil e mestre em Direito Privado, ambos pela Université Paris 2 – Panthéon-Assas (Sorbonne Universités) e sócio do Rocha e Barcellos Advogados.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *