A pandemia do coronavírus deixou uma fratura exposta no direito coletivo do trabalho, escancarando ideias negativas pré-concebidas em relação ao funcionamento dos sindicatos e ao processo de negociação coletiva.
Leomar Daroncho e Ednaldo Brito
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 25/05/2020
Em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Uma norma comum, a ser alcançada por todos os povos e nações, que em seu 23º artigo cuida do trabalho, do salário, da proteção social e do direito de fundar e de se filiar em sindicatos para a defesa dos interesses dos trabalhadores.
Dispositivos com essa orientação, também presentes em outras normas internacionais, foram incorporados à nossa Constituição de 1988, no capítulo dos direitos sociais, com referência expressa à liberdade sindical, ao direito de greve, às condições mínimas de trabalho, inclusive à irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo.
O reconhecimento oficial do estado de calamidade pública no Brasil, em março de 2020, representou um dos maiores desafios para o direito coletivo do trabalho e para os dispositivos constitucionais referidos. A velocidade da evolução das curvas de mortos e de infectados, além do pânico com as perspectivas dos dados econômicos e do emprego, testou os limites da Constituição Federal, pondo em xeque o papel dos sindicatos, afastados subitamente do processo de redução de salários pela Medida Provisória 936.
Provocado, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, que em tempos de pandemia os trabalhadores podem celebrar acordos de redução de salários com seus empregadores sem a participação dos sindicatos, validando a Medida Provisória, apesar da clareza do texto constitucional indo na direção oposta. O resultado desse julgamento foi um duro golpe do direito individual do trabalho, e das alegadas urgências da vida, contra o direito coletivo.
Guiada por argumentos fáticos e pela generalização de pontuais experiências sindicais negativas, a decisão do Supremo revelou certa dose de preconceito contra os sindicatos brasileiros e conduziu, ainda que involuntariamente, a mais uma investida no processo de enfraquecimento dessas entidades e das negociações coletivas de trabalho.
No julgamento, por videoconferência, os sindicatos brasileiros foram tidos como ineficientes no contexto da pandemia. Não encontrou eco no plenário virtual o questionamento da ministra Rosa: “os sindicatos podem ser excluídos desse debate?”. Tampouco a coerente observação de que justamente a vulnerabilidade diante da crise impõe a negociação coletiva para a proteção mínima aos trabalhadores.
Prevaleceram argumentos da festejada oratória professoral do ministro Barroso, com considerações práticas que destacam aspectos negativos do processo coletivo do trabalho e dos sindicatos, tidos como incapazes de realizar, de forma célere, “com eficiência e probidade a chancela de milhões de acordos de suspensão e redução de jornada”.
Sem ignorar a necessidade de aperfeiçoamentos dos nossos sindicatos, que estão por natureza em permanente construção, seria totalmente injusto e desleal considerá-los o Patinho Feio das nossas organizações e instituições.
Se era para adentrar em questões fáticas, como a realização de assembleias sindicais para a celebração dos acordos coletivos, poderiam os ministros do Supremo terem cogitado a possibilidade de essas discussões ocorrerem por videoconferência ou outros dispositivos da moderna tecnologia, como o Skype ou o Google Hangouts. As tratativas sindicais poderiam se dar em ambientes como aqueles dos quais o Legislativo e o próprio STF se utilizaram, ou mesmo por meio de “lives”.
De todo modo, não se veem na realidade brasileira outras instituições sendo despojadas de suas atribuições constitucionais sob o argumento de serem ineficientes.
No plano da teoria constitucional, a decisão do Supremo representou uma mutação constitucional pela via da interpretação judicial, no caso, em prejuízo de um direito fundamental social, por razões de conveniência, calamidade pública, instabilidade política, social, econômica e sanitária vividas pelo País.
A Constituição e os direitos fundamentais deveriam, pelo contrário, ser mais importantes justamente nos momentos extremados, em situações limite como a vivida pelo Brasil. Seria paradoxal, além de supérfluo, que dispositivos com essa carga de importância, como o que condiciona a redução dos salários à negociação coletiva, fossem considerados apenas em momentos de fartura e de prosperidade das empresas e da nação.
A pandemia do coronavírus deixou uma fratura exposta no direito coletivo do trabalho, escancarando ideias negativas pré-concebidas em relação ao funcionamento dos sindicatos e ao processo de negociação coletiva. Acentuou-se a fragilidade e a percepção da dispensabilidade da organização e da atuação tradicional dos sindicatos, com o claro recado do STF de que é necessário mudar!
A sociedade e as suas instituições também deverão reavaliar, em algum momento, o preconceito em relação aos sindicatos e à organização dos trabalhadores. O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao alertar para a memória dos atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade, anuncia o advento de um mundo em que os seres humanos estariam livres para falar e crer, libertos do terror e da miséria, sendo proclamado como a mais alta inspiração do Homem.
Essa é uma das reflexões geradas pela pandemia na seara das relações trabalhistas. A organização coletiva dos trabalhadores terá que se reinventar para recuperar seu protagonismo e a relevância perante a sociedade e os poderes da República, mostrando que sua razão de ser e existir não está ligada, apenas, aos momentos de fartura.
Leomar Daroncho e Ednaldo Brito são Procuradores do Trabalho.