Subordinação algorítmica e STF: por que reconhecer o vínculo em plataformas

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Foto: José Cícero/Agência Pública

A dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho, a justiça social e o catálogo de direitos trabalhistas são fundamentos e garantias centrais da ordem jurídica. Negar a condição de subordinados a motoristas e entregadores esvaziaria esse pacto constituinte.

Sidnei Machado

Fonte: Clínica Direito do Trabalho/UFPR
Data original da publicação: 01/10/2025

Em 1º de outubro de 2025 o Supremo Tribunal Federal julgará o Tema 1291, que trata do reconhecimento do vínculo de emprego no trabalho em plataformas digitais. A decisão terá alcance histórico, pois envolve milhões de motoristas e entregadores que hoje atuam sem proteção trabalhista e definirá se o Direito do Trabalho brasileiro será capaz de incorporar o controle algorítmico como forma contemporânea de subordinação.

O modelo clássico de subordinação, pensado para a fábrica do século XX, já não descreve o trabalho mediado por aplicativos. As plataformas organizam e controlam a atividade por meio de algoritmos que operam em tempo real, definem preços, monitoram trajetos, avaliam desempenho e podem excluir o trabalhador. Não há ordens explícitas de chefes, mas persiste a sujeição permanente às regras inscritas no código. Essa dinâmica não elimina a subordinação, ao contrário, a intensifica. Motoristas e entregadores são avaliados a cada tarefa, submetidos a critérios invisíveis e sem margem de negociação. O discurso de autonomia funciona apenas como fachada, pois quem controla a demanda, a remuneração e o acesso ao trabalho é a própria plataforma.

O Tribunal Superior do Trabalho foi o primeiro espaço institucional a enfrentar essa disputa. Até 2021 prevalecia a leitura de autonomia, baseada na ausência de ordens humanas diretas. A partir de 2022, contudo, várias Turmas passaram a reconhecer que a gestão algorítmica reproduz e até amplia mecanismos clássicos de supervisão. A 3ª Turma, no processo RR-100353-02.2017.5.01.0066, julgado em abril de 2022, afirmou que o controle digital é suficiente para configurar a relação de emprego. A 8ª Turma, no processo RRAg-100853-94.2019.5.01.0067, julgado em fevereiro de 2023, reforçou que o algoritmo exerce poder de direção e fiscalização. A 6ª Turma, no processo RR-10502-34.2021.5.03.0137, julgado em maio de 2023, reconheceu que a gestão algorítmica caracteriza subordinação. A 2ª Turma, no processo RR-0000536-45.2021.5.09.0892, julgado em julho de 2023, também concluiu pelo vínculo de emprego. Embora ainda dividida, a Corte abriu caminho para consolidar a noção de subordinação algorítmica.

O Supremo já havia reafirmado, no Tema 725 (ADPF 324 e RE 958.252, 2018), que a terceirização não elimina a subordinação como critério central do vínculo. Agora, ao julgar o Tema 1291, terá a oportunidade de atualizar essa compreensão, incorporando a dimensão algorítmica da subordinação e dando coerência ao percurso iniciado no TST. Negar essa evolução significaria abrir fratura institucional e gerar insegurança jurídica. Reconhecê-la, ao contrário, permitirá consolidar interpretação apta a proteger milhões de trabalhadores e alinhar o Brasil às melhores práticas internacionais.

O direito comparado mostra que tribunais estrangeiros caminham na mesma direção. O Supremo Tribunal do Reino Unido, no caso Uber BV v. Aslam de 2021, reconheceu que motoristas eram workers diante do controle digital. A Cour de Cassation da França decidiu em 2020 que a geolocalização e a possibilidade de desconexão configuram subordinação. A Cassazione da Itália, na decisão n. 1663 de 2020 envolvendo entregadores da Foodora, enquadrou-os como “lavoro etero-organizzato”. O Tribunal Supremo da Espanha reconheceu falsos autônomos no caso Glovo de 2020, antecedendo a Ley Rider. O Bundesarbeitsgericht da Alemanha, no processo 1 ABR 27/19 de 2020, reconheceu vínculo em plataformas de microtarefas. O Tribunal de Justiça da União Europeia, no caso C-692/19 (Yodel, 2020), reforçou que a análise deve considerar a realidade da relação e não apenas a forma contratual. O padrão que emerge é claro, a inovação tecnológica não autoriza negar a subordinação, mas exige sua atualização conceitual.

A experiência legislativa confirma a mesma tendência. A Espanha editou o Real Decreto-ley 9/2021, conhecido como Ley Rider, estabelecendo presunção de laboralidade. Portugal aprovou a Lei nº 13/2023, criando critérios objetivos de subordinação algorítmica. O Chile promulgou a Lei nº 21.431/2022, que reconhece vínculo sempre que houver subordinação ou dependência. Em 2025, o México reformou a Ley Federal del Trabajo e a Colômbia aprovou a Lei nº 2466/2025, ambas admitindo vínculo quando presentes dependência econômica e sujeição organizacional. No mesmo ano, o Uruguai promulgou a Lei nº 20.396/2025, que, embora não presuma o vínculo, ampliou direitos típicos do emprego e reconheceu a assimetria estrutural da atividade. Assim, a subordinação não desaparece, apenas se adapta ao contexto digital.

Os argumentos das plataformas, que insistem em categorias ultrapassadas de autonomia, funcionam como estratégia retórica para blindar modelos de negócios contra a incidência da legislação trabalhista. A Constituição, no entanto, não permite tal manobra. A dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho, a justiça social e o catálogo de direitos trabalhistas são fundamentos e garantias centrais da ordem jurídica. Negar a condição de subordinados a motoristas e entregadores esvaziaria esse pacto constituinte.

O STF deve fixar uma tese vinculante que reconheça que a subordinação jurídica inclui o controle algorítmico quando a plataforma exerce, por meio do sistema, poderes típicos de direção, fiscalização e sanção. Critérios como tarifação unilateral e dinâmica, poder de desconexão, metas e ranqueamento opacos, roteirização e geolocalização, avaliação contínua, integração à atividade-fim, dependência econômica e ausência de liberdade real para fixar preço ou substituir trabalhador constituem indicadores suficientes para caracterizar o vínculo. A Justiça do Trabalho, com respaldo nessa diretriz, poderá aplicar a primazia da realidade, em consonância com a Recomendação nº 198 da OIT.

O julgamento do Tema 1291 é a oportunidade de alinhar o Direito do Trabalho brasileiro à era digital. Reconhecer a subordinação algorítmica não significa rejeitar a tecnologia, mas garantir que sua adoção não se converta em instrumento de precarização e sim em inclusão plena na ordem constitucional de proteção e dignidade.

 

Sidnei Machado é professor de Direito do Trabalho na UFPR

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