Devemos pensar em como a uberização se relaciona com todas as outras formas de exploração do trabalhador – Entrevista com Ludmila Costhek Abílio

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A socióloga Ludmila Costhek Abílio, pesquisadora independente e professora e pesquisadora colaboradora da Unicamp, fala sobre plataformização e precarização nas relações de trabalho, além de alternativas para proteger os direitos de profissionais nesse contexto.

Amauri Eugenio Jr.

Fonte: Fundação Tide Setubal
Data original da publicação: 18/09/2025

“Quando se chega na discussão da plataformização, deve-se ter em mente que uma plataforma não é o que causa a informalidade. Falamos de empresas, não apenas de meios técnicos. Não é um aplicativo que faz brotar um milhão de motoboys no Brasil.” Esta fala da socióloga Ludmila Costhek Abílio, em entrevista à newsletter da Fundação Tide Setubal, ajuda na compreensão sobre as plataformas de mobilidade urbana e de entregas de alimentos serem um fator incontornável na precarização das condições trabalhistas.

O mercado de trabalho, em particular no que diz respeito aos direitos de pessoas trabalhadoras, é o tema de estudo da pesquisadora. Ludmila é pesquisadora independente, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora colaboradora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT-Unicamp).

Desse modo, esse aspecto tem conexão direta e se retroalimenta com estrutura trabalhista que possibilita esse cenário. Um ponto inquestionável nesse contexto passa pela Reforma Trabalhista, cuja aprovação ocorreu em 2017. Algumas das suas consequências abrangem, entre outros pontos, o iminente risco de perda de direitos de profissionais contratados sob regime CLT. Idem o aumento da informalidade trabalhista

Nesse sentido, o trabalho por meio de aplicativos de mobilidade urbana e de entregas destaca-se como um elemento emblemático. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), quase 600 mil pessoas trabalhavam por meio de aplicativos de entregas de alimentos. Ainda, 1,5 milhão de pessoas atuam por meio de aplicativos de mobilidade urbana. Alguns aspectos emblemáticos abrangem, então, os seguintes dados demográficos: o perfil médio é composto por homens, com idades entre 25 e 39 anos, com os ensinos médio ou superior incompletos.

Tais aspectos, assim como a queda da renda líquida e a vulnerabilidade na garantia de direitos, são pontos centrais na entrevista com Ludmila Costhek Abílio. Confira o diálogo.

O que se pode falar sobre a precarização do trabalho antes mesmo da plataformização? 

Ludmila Costhek Abílio: Precisamos partir de uma discussão muito difícil, que atravessa a nossa vida, sobre o que é falar de precarização, flexibilização, ou uberização e plataformização, à luz da realidade social. A origem da organização do nosso mundo do trabalho vem do fato de termos sido colônia. A constituição do mundo do trabalho brasileiro passa por escravidão e outras formas de trabalho que coexistiam em um mundo colonial. A formação do mercado de trabalho dá-se na transição para um mercado no qual se compra e vende a força de trabalho. Essa estruturação ocorre em uma enorme desigualdade social, e em um mundo do trabalho regulado por meio da instituição de direitos do trabalho e sociais, mas nunca contemplará e se universalizará de fato.

Há, ainda, outra complicação: mesmo o mundo do trabalho formalizado não sendo sinônimo direto de justiça social, de igualdade e proteção, mais da metade da população trabalhadora é remunerada com um salário mínimo, um salário mínimo e meio. O salário mínimo não é digno, pois é aquém do mínimo para garantir a sobrevivência da pessoa trabalhadora e de sua família. Além do rebaixamento da fonte de trabalho, mulheres negras, seguidas de homens negros, compõem a base da exploração do trabalho no Brasil e estão nas ocupações mais precárias, predominam na informalidade e terão menores salários. Mesmo quando acessam ocupações melhor remuneradas, estarão em desigualdade em relação aos brancos.

Quando se começa a falar em precarização e flexibilização do trabalho, é uma complicação para nós. O mundo nosso do trabalho, de saída, estrutura-se secularmente como precário e flexível no pior sentido da palavra – da desproteção, da ausência de garantias, da altíssima rotatividade.

Mas as relações de trabalho estão se transformando. As inovações tecnológicas possibilitam novos arranjos produtivos globalmente, mas só possibilitam a sua relação com as políticas. Isso compreende como o trabalho será regulado, a liberalização de fluxos financeiros e de investimento. São arranjos globais que estão acontecendo e reproduzem desigualdades também estruturadas em escala global. Quando se chega na discussão da plataformização, deve-se ter em mente que uma plataforma não é o que causa a informalidade. Falamos de empresas, não apenas de meios técnicos. Não é um aplicativo que faz brotar um milhão de motoboys no Brasil. Esse trabalho já acontecia e essas empresas, que operam por meio de plataformas, o subordinarão a essas novas formas.

Como a plataformização apresenta contradições entre o discurso do empreendedorismo e a prática? 

Ludmila Costhek Abílio: Precisamos olhar para alguns aspectos muito importantes. O primeiro é algo que eu, Ludmila, direi sobre a importância do emprego formal – ele protege, é uma regulação e garante acesso a direitos. Outra coisa é o que o emprego formal significa na vida do trabalhador. Mesmo garantindo uma série de acesso a direitos e estabilidade, isso não significa que o trabalhador com emprego formal não enfrentou diversas injustiças sociais ou foi altamente explorado e humilhado. Quando o trabalhador não valoriza a CLT da mesma forma como eu, aqui da academia, ou outros atores da sociedade estão teoricamente valorizando, precisamos olhar para o que é o emprego formal no Brasil e o que queremos que seja – são coisas diferentes e como lutamos para ser de outra forma.

Há outro elemento, sobre o qual escrevi um artigo [Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado], que é uma tentativa de escapar da ideia de o trabalhador se ver como um empreendedor. Quando converso com um motoboy que fala sobre não querer ser CLT, ele não fala sobre a moto ser uma empresa ou ele ser dono de uma microempresa que se chama ‘Moto’.

Houve, a partir dos anos 1990, uma série de arranjos produtivos e formas de gerenciamento e controle do trabalho que transferem ao trabalhador uma série de elementos constituintes do processo de trabalho, entre os quais a gestão do tempo. Quando se trabalha em home office, não há mais o relógio de ponto, a sua casa vira seu local de trabalho, agendam-se as coisas de acordo com a forma como organizará o seu tempo. A flexibilização do trabalho veio à tona dentro da compreensão de que somos bons gerentes de nós mesmos. Mas não haver um relógio de ponto, um gerente e um local fixo não significa que a pessoa trabalhará menos. Pelo contrário: pode significar que trabalhará cada vez mais e menos pago pelas horas de trabalho, pois não haverá essa contabilização. Mas essa gestão foi transferida para nós.

A pessoa teme ficar desempregada e há uma série de mecanismos dentro da organização do trabalho que a amarra a metas. Idem a uma série de formas de determinação que lhe garantem ser produtiva, independentemente do turno do expediente – essa é outra discussão. Essas formas de gestão se apropriaram de algo muito importante para nós: a possibilidade de gerenciarmos a nossa própria vida – isso não significa que estamos livres. Precisamos entregar o relatório e bater a meta, e o motoboy precisa fazer tantas entregas para ganhar o mínimo necessário naquele dia. Mas a decisão de trabalhar de manhã, à noite ou até à 1h está na mão dele. Mas por que ele é subordinado? É o autogerenciamento. A pessoa se gerencia sob regras que não são gerenciadas por ela e cada vez tem menos poder de negociação.

Como as redes sociais estão inseridas nesse contexto, seja por meio de marketplaces ou do seu uso para divulgar bens e serviços, no aprofundamento da amadorização  da precarização? E como a regulação pode impactar esse cenário para, por exemplo, frear a precarização? 

Ludmila Costhek Abílio: A regulação é urgente e necessária, mas precisamos também discutir o modelo, pois se cai no erro de dizer que se regular, melhora. A reforma trabalhista, por exemplo, é uma regulação – não é uma desregulação do trabalho e o Estado não se retirou. Pelo contrário: ele se fez mais presente na promoção da precarização do trabalho. Leis não são sinônimo de justiça social e isso deve estar muito claro. Elas não materializarão os interesses em disputa em um determinado momento histórico.

Podem-se ver muitos projetos de lei em torno da regulação da uberização que irão promover e legalizar essa forma de exploração. O que está no cerne da uberização do trabalho? É a transformação em trabalhador sob demanda. Ou seja, ele vira um fator de produção, pois recebe apenas enquanto estiver pelo tempo em que de fato trabalhar. Com isso, ele fica com o custo do tempo em que não “trabalha” dentro da jornada dele. Isso o transforma em um fator de produção, pois quando ele é sob demanda, não se garante mais nada, que ele ganhe tal valor pela hora de trabalho. Transfere-se para ele o tempo de não trabalho que corre dentro da jornada de trabalho.

O que é estar sob demanda? A empresa só remunera quando se é efetivamente produtivo. durante o tempo em que esperou pelo trabalho estando na praça, por exemplo, o custo é dele e não mais da empresa. Desresponsabiliza-se a empresa nesse contexto. Essa é a grande realização do capital: o sonho da luta entre capital e trabalho envolverá esse tempo inteiro, historicamente. Quem arca com o tempo no qual a força de trabalho não é produtiva de fato?

Pode-se garantir direito, licença maternidade ou acesso à previdência na regulação do trabalho, por exemplo. Mas se mantiver o que está no cerne da urbanização, legalizam-se a uberização do trabalho e uma nova concepção sobre qual é a responsabilidade do Estado e das empresas sobre o trabalhador. Se ele pode ser reduzido a um fator de produção e arcar com o tempo em que ele não é produtivo, é uma nova concepção histórica sobre o que é emprego formal e responsabilidade das empresas sobre os trabalhadores. Perdem-se as garantias. Não adianta dizer que a pessoa precisa ganhar o equivalente ao valor da hora mínima do salário mínimo. Mas ele ficou lá e produziu mais, mas ainda assim se rebaixa o valor da força de trabalho dele? Devemos, então, estar muito atentos. É muito difícil hoje e há muitas discussões sobre qual regulação protege o trabalhador nessa história toda.

Como a sociedade civil pode pressionar o poder público para atualizar a legislação para proteger direitos trabalhistas e estabelecê-los para profissionais que recorrem a plataformas?

Ludmila Costhek Abílio: Pode-se ver na academia um crescimento exponencial e uma geração de jovens pesquisadores muito engajada em compreender e desvendar o que está acontecendo. Pode-se ver os partidos e pessoas se elegendo. A uberização virou um veículo também de promoção de influências, de uma série de atores sociais que foram surgindo. Pode-se ver os projetos de lei em disputa no mundo. Trata-se de disputa em torno de quais políticas públicas podem ser desdobradas também. A questão da mobilidade urbana está muito ligada a essas questões. Idem sobre desenvolvimento tecnológico: fala-se muito em motoboys, bikeboys e nos motoristas da Uber, mas há um exército de trabalhadores invisíveis globalmente articulados e subordinados produzindo o que chamamos de inteligência artificial. É um trabalho invisível em âmbito social e muito difícil de localizar. Mas também há formas de organização coletiva que se estruturam. 

Está tudo em movimento, mas estamos vendo também formas de organização política que se desdobram dessa nova forma de organização do trabalho. Por exemplo, desde o primeiro breque dos apps, em plena pandemia, em 2020, houve no país uma série de paralisações e de organizações dos entregadores. Vemos também esses trabalhadores se organizarem. É uma batalha muito dura, pois um trabalhador sob demanda não tem ganho quando não trabalha – ele não tem nada garantido. Há um exército de trabalhadores disponíveis. Já para o cara que trabalhou naquele dia, a empresa faz uma série de incentivos e ele está ganhando o dobro. Essa mobilização é muito difícil. Ainda não temos dados sobre o último breque, mas há vários indícios de que foi muito grande e paralisou uma série de entregas de restaurantes que não funcionaram. Houve consumidores que aderiram. Essas coisas estão em movimento.

Mas é necessário entender que a uberização é uma apropriação de características estruturantes. Devemos pensar na uberização na sua relação com todas as outras formas de exploração do trabalhador, em como tudo isso está articulado, e enfrentar e pensar nos elementos que estruturam as nossas desigualdades e as várias formas de exploração do trabalho que se articulam. Mas tudo está em movimento.

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