Por onde “andam” as plataformas digitais de trabalho?

Fotografia: Pixabay

A adoção de uma legislação favorável às empresas-plataforma pode significar o reconhecimento legal da existência de “trabalhadores/as de segunda classe” e consagrar a figura do/a “empreendedor/a de si mesmo”, induzindo ao aumento considerável dessa forma de contratação.

Ana Claudia Moreira Cardoso e Lúcia Garcia

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 17/09/2021

As empresas-plataforma de trabalho não criam novos setores na economia, mas adentram aqueles já existentes. No Brasil, de acordo com estudo realizado com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-C), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) por Garcia (2021)[1], os/as trabalhadores/as potencialmente ocupados/as em plataformas de trabalho somavam, em 2019, em torno de 4,2 milhões, ou seja, 4,5% do total de ocupados – considerando-se apenas a atividade principal.

Há algum tempo as empresas-plataforma estão se expandindo para além daqueles setores mais visíveis, como os de entrega e de transporte individual, sendo que este espraiamento vem se acentuando com o boom da “sociedade digital”, em função da redução das interações presenciais, decorrente da pandemia de Covid-19. O contexto pandêmico – em consonância com reformas trabalhistas e forte processo de inovação – cria condições favoráveis para o aprofundamento do “Capitalismo de Plataforma”[2], que depende de uma multidão de usuários/as e de trabalhadores/as.

Por um lado, mais pessoas passaram a utilizar diversos tipos de plataformas em suas interações sociais cotidianas – de lazer, de amizade, de compra, de venda, de saúde -, levando à sua naturalização. Por outro, com a prolongada crise econômica decorrente da pandemia (sobretudo em países governados por “negacionistas”, como no Brasil), muitos/as perderam seus empregos e as perspectivas de reinserção no mercado laboral formal se tornaram escassas, levando à ampliação do “exército de reserva”. Ou, na linguagem das plataformas, de uma multidão de “disponíveis”.

Esse movimento de expansão, sobretudo desde 2016, evidencia que as plataformas de trabalho não são apenas uma forma high-tech de reproduzir o trabalho precário em setores onde essa realidade já se fazia presente (serviço doméstico, construção civil, serviços gerais, beleza, cuidado e entrega), nos quais os/as trabalhadores/as tinham um perfil muito semelhante – com ampla presença de pessoas com menor escolaridade, menor renda, negros/as, jovens, migrantes e mulheres.

As plataformas também estão presentes em setores que apresentam alta taxa de formalidade e melhores condições laborais (bancário, eduçação, saúde e jurídico), gerando novas formas de desigualdade laboral e um contingente de trabalhadores/as cujo perfil é cada vez mais heterogêneo: há pessoas que sempre estiveram no mercado informal e aquelas que têm, no trabalho em plataforma, sua primeira experiência de informalidade; algumas com baixa escolaridade (45,9% dos/as trabalhadores/as potencialmente ocupados/as em plataformas de trabalho têm até o ensino fundamental completo)  e outras com curso universitário (quase 13% têm o ensino superior completo); pessoas brancas e negras (em torno de 58%); homens e mulheres (33,0%); mais jovens e mais velhos/as (enquanto 23,0% têm até 29 anos, 25,5% têm entre 50 e 65 anos).

Há uma enorme variedade de tipos de plataformas de trabalho – mesmo dentro de um mesmo setor – com distintos modelos de negócio, formas de organização, relação com clientes e com os/as trabalhadores/as. Apesar dessa diversidade, quase todas atuam com base em alguns fundamentos: infraestrutura e mediação digital – que possibilitam dispersar a produção e manter o controle do processo e dos/as trabalhadores/as; dataficação – que significa a produção de valor a partir da apropriação e uso dos dados de usuários/os e trabalhadores/as; desconsideração das legislações, entre elas a trabalhista e trabalho por demanda (que depende diretamente da demanda dos clientes).

Tais fundamentos resultam em uma “nova” forma de precarização laboral – a “precarização uberizada” -, possibilitando ao capital manter a relação de subordinação[3] dos/as trabalhadores/as, apesar de travestida de empreendedorismo, flexibilidade e autonomia. As plataformas de trabalho se recusam a reconhecer a relação de emprego que estabelecem com os/as trabalhadores/as. Logo, estes não têm acesso a direitos laborais como salário mínimo, limitação do tempo de trabalho, hora-extra, licenças saúde e parental, férias, entre tantos outros. Além disso, são os/as trabalhadores/as que assumem todos os riscos e custos vinculados ao trabalho – o que inclui gastos decorrentes de acidentes e adoecimentos que, ao final, são pagos por eles/as e suas famílias, assim como pela sociedade.

Apenas para se ter um quadro geral – e adotando uma divisão simples – as empresas-plataforma de trabalho podem ser divididas em três grandes grupos.

As mais conhecidas são aquelas onde o trabalho é realizado em tempo real e o produto do trabalho é entregue localmente. Alguns exemplos de setores e respectivas empresas são: transporte (Uber, Lift, 99); entregas (Deliveroo, iFood, UberEats etc.); correios (Bring4you etc.); transporte de cargas (Freto; Polifrete; Quero Frete etc.); hotelaria (Brigad, Uber Works etc.); medicina (Voxline Healtcare, KDcore, Brigad, etc.); serviço geral e limpeza (Miss Limpeza; Diaríssima; Parafuzo etc.); beleza/estética (Make You; Singu; Easylook etc.); eventos e garçons (MyStaff etc.); agência imobiliária (OMMi, Ikimo9, Somhome etc.); cuidado com pessoas (Home Angels, Zelo, Helping, Hugs etc.); consertos (SuperMano, Instacard, LaborMe.app etc.); educação (Corujito, Colmeia, AulaUP, etc.); assistência/suporte em TI (Find up, Satartupi, Netsupport, etc.),  serviços de construção (Mão a Obra, Triider, Fix etc.); goleiros (goleiro de aluguel etc.) e fitness/ginástica (freeletics, nike training club e gym pass etc.).

Há, ainda, as plataformas de trabalho nas quais o resultado do trabalho é entregue on line – também chamado de trabalho na nuvem. Alguns exemplos estão nos setores de advocacia (Jurídico Certo; JusBrasil; Migalhas etc); bancário (Xp., Franc Open Banq etc.); e de freelance (Malt, Codeur.comLesBonsFreelances, Upwork, Fiverr etc.). [4]

Há, ainda, as “terceirizadas online”, que são divididas em dois subgrupos: as plataformas de “negócios de tecnologia” (Yet2.com e a Innocentive) [5], e o chamado crowdsourcing ou microtrabalho (Amazon Mechanical Turk, Crowdflower, Clickworker, Foule Factory etc.). Neste caso, os trabalhadores realizam microtarefas fragmentadas – como busca de metadados específicos, classificação de informações, moderação de conteúdo, verificação de dados –, alimentando sistemas de inteligência artificial de empresas tradicionais. Sem contar as chamadas Fazendas de Click [6].

Muitas plataformas de trabalho, ao sentirem o esgotamento de um setor ou vislumbrarem o crescimento de um outro, começam a se movimentar. A plataforma Brigad, por exemplo, que inicialmente estava no setor de turismo, no contexto da pandemia, passou a atuar no de saúde. Ou a Uber, que além dos setores de entregas e transporte, está entrando no de turismo, com a Uber Work.

Os impactos no mercado de trabalho, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo, são muito grandes e precisam ser analisados setorialmente. Tome-se, como exemplo, o setor de turismo.  As pesquisadoras Ana Cardoso e Marcela Bifano (CARDOSO & BIFANO, 2019)[7], em pesquisa realizada em 2019, tinham como hipótese inicial que o mercado laboral neste setor estaria sofrendo impactos danosos, em função da entrada de plataformas de trabalho especificas do setor (como a Brigad). Entretanto, os resultados mostraram que plataformas de outros setores também estavam destruindo e precarizando empregos: as plataformas no setor de entregas estavam afetando os/as trabalhadores/as dos pequenos e médios restaurantes e das cozinhas dos hotéis; as plataformas de compartilhamento, como Airbnb, estavam levando à falência pequenos hotéis e hospedagens e, por fim, as plataformas de intermediação, por onde os/as próprios/as usuários/as organizam toda a viagem, estavam levando ao fechamento de diversas agências de turismo.

Por fim, considerando-se o espraiamento das plataformas de trabalho, bem como a diversidade de formas de organização e gestão, fica evidente que não faz sentido a criação de legislações específicas para o trabalho em cada uma dessas plataformas.

A própria Constituição Federal (BRASIL, 1988)[8], em seu Art. 7º (dos direitos dos trabalhadores), já deixa claro que a proteção trabalhista não é exclusiva da forma jurídica da relação de emprego: “Art. 7º, Inciso XXXIV – igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso. Além disso, o Art.6º, parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)[9] já prevê que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

Por fim, levando-se em conta o momento atual, marcado por uma correlação de forças muito desfavorável à classe trabalhadora, é elevado o risco de que a legislação específica que vier a ser aprovada garanta menos direitos do que os já previstos. Por sua vez, a adoção de uma legislação favorável às empresas-plataforma pode significar o reconhecimento legal da existência de “trabalhadores/as de segunda classe” e consagrar a figura do/a “empreendedor/a de si mesmo”, induzindo ao aumento considerável dessa forma de contratação, fora da relação tradicional de emprego.

Notas

[1] GARCIA, Lucia. O mercado de trabalho brasileiro em tempos de plataformização: contexto e dimensionamento do trabalho cyber-coordenado por plataformas digitais. Porto Alegre:  Dissertação no Mestrado de Economia da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2021.

[2] Conceito criado por SRNICEK, Nick. Paths Forward for the Study of the Digital Economy. In: Platforming Equality: Policy Challenges for the Digital Economy. Autonomy, 2020.

[3] CARDOSO, A. C. M.; ARTUR K. e OLIVEIRA, M.C. S. O trabalho nas plataformas digitais: narrativas contrapostas de autonomia, subordinação, liberdade e dependência. Revista Valore. n. 5, 2020.

[4] Algumas plataformas de trabalho oferecem o serviço localmente e on line como as de educação, saúde ou TI.

[5] Empresas tradicionais buscam soluções tecnológicas via as plataformas no lugar de contratarem seus.as próprios.as trabalhadores/as. Os/as trabalhadores(as) se inscrevem e ficam à espera de uma demanda e, ao final, apenas o “premiado” é remunerado; a solução escolhida é patenteada pela empresa demandante e tanto esta, como a plataforma, se apropriam de todas as soluções concorrentes.

[6] Nessas plataformas, clientes (políticos/as, artistas, empresários/as) buscam trabalhadores/as para realizarem visualizações e curtidas em suas mídias sociais. 

[7] CARDOSO, A.C.; OLIVEIRA, M.C.B., E-economia e suas empresas-plataforma: modus operandi e precarização do mercado de trabalho no setor de turismo. Rev. Anais Bras. de Est. Tur./ ABET, Juiz de Fora (Brasil), e-ISSN 2238-2925, v.10, pp.1 – 17, Jan./ Dez., 2020

[8] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 09/09/2021.

[9] BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Decreto-lei 5.452/1943. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 09/09/2021.

Ana Cláudia Moreira Cardoso é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade de Paris 8; pós-doutora pelo Centre de Recherche Sociologique et Politique de Paris – CRESPPA; Pesquisadora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e do GT Trabalho Digital, da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR).

Lúcia Garcia é mestre em Economia pela UFRGS e Coordenadora da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE).

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