A histórica condenação do Estado Brasileiro na Corte Interamericana.
Raphaela Lopes
Fonte: Jota
Data original da publicação: 11/12/2020
Aquele 11 de Dezembro de 1998 começou como um dia normal de trabalho na fábrica de “Vardo dos Fogos”, na cidade de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, para as mulheres que lá trabalhavam. Por volta do meio-dia, durante o intervalo do almoço, a fábrica explodiu.
Apesar de a região ser já naquela época um polo fogueteiro, não havia hospital para queimados. Sequer havia uma estrutura mínima para socorro. As sobreviventes tiveram que ser socorridas por pessoas que passavam pelo local, em carros de passeio, e levadas a Salvador, que fica a quase 200km de distância. Em decorrência da explosão, 64 pessoas morreram e 6 ficaram gravemente feridas. Algumas mulheres estavam grávidas e um dos bebês nasceu prematuramente, apesar de a mãe não ter resistido.
O trágico incidente foi o maior em número de vítimas na década de 1990 e marcou de modo profundo a região. A explosão, no entanto, era uma tragédia anunciada, pois explosões em tendas de fogos já haviam ocorrido antes na região.
A fábrica funcionava no pasto da fazenda Joeirana e possuía autorização de funcionamento, concedida pelo Ministério do Exército, em 1995. Sem embargo, nunca houve nenhuma ação de fiscalização na fábrica ao longo desses três anos, nem mesmo sobre as condições de trabalho, em que pese a situação de insalubridade e risco a que eram expostas as trabalhadoras, fato amplamente conhecido pelas autoridades locais.
Mulheres, crianças e adolescentes recebiam R$ 0,50 pela produção de mil traques de massa (conhecidos também como “estalos” ou “estalinhos”) e, diariamente, produziam entre três e seis mil fogos de artifício. Não havia qualquer equipamento de proteção, ou treinamento prévio; as novas trabalhadoras eram ensinadas pelas antigas.
A mão-de-obra eminentemente feminina e jovem[1] da fábrica de “Vardo dos Fogos” era oriunda de bairros empobrecidos e majoritariamente negros de Santo Antônio de Jesus, com pouca infraestrutura, como saneamento básico. Predominavam nesses bairros, ademais, pessoas com pouca formação escolar e baixa renda.
Apesar da responsabilidade dos donos da fábrica, uma rica e influente família da cidade e da clara ação omissiva de órgãos do Estado, familiares e sobreviventes da explosão lutam até o presente momento por justiça e efetiva reparação.
As ações cíveis interpostas contra a União e o Estado da Bahia seguem pendentes. As ações trabalhistas foram concluídas em favor das vítimas, porém impossibilitadas de serem executadas em virtude da suposta ausência de bens. E a ação criminal, já transitada em julgado, tendo chegado até o STF, não foi executada em virtude de um Habeas Corpus que anulou o julgamento em segunda instância.
No ano em que o caso completa 22 anos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pelas violações de direitos humanos cometidas contra as vítimas da explosão e seus familiares.
A nona condenação do Brasil na Corte Interamericana representa um desfecho em uma situação de profunda injustiça, em detrimento de uma comunidade tão sofrida e para quem a explosão da fábrica consiste efetivamente em um trauma. Foram anos de um tratamento desrespeitoso, por parte de autoridades do Estado e dos donos da fábrica de fogos, os quais em diversas oportunidades zombaram do sofrimento das vítimas e desacreditaram de sua convicção de obter justiça no caso.
Mas a importância dessa sentença transcende o caso da explosão da fábrica de fogos, demonstrando como o artigo 24 da Convenção Americana pode desempenhar uma função muito relevante na argumentação sobre a desigualdade racial.
A obrigação de Estados conferirem tratamento igualitário a todas as pessoas é amplamente reconhecida no sistema internacional de direitos humanos, a ponto de ter se tornado uma norma integradora do jus cogens, ou seja, forma parte do direito internacional geral, vinculando a ação de todos os Estados, independentemente de tratados e convenções internacionais.
A Corte Interamericana tem se preocupado com o tema da igualdade material, na interpretação do artigo 24, da Convenção Americana. Isto é, de acordo com a Corte, para além de abster-se de aprovar leis que criem tratamento arbitrário entre seus destinatários e certificar-se de que seus órgãos e funcionários realizem uma aplicação igualitária das leis existentes, os Estados precisam, ademais, implementar medidas que permitam a superação de situações estruturais de desigualdade.
O que há de novo na presente sentença é a declaração, por parte, da Corte Interamericana de que os Estados têm a obrigação de adotar medidas com vistas à mitigação de situações estruturais de desigualdade.
Outro aspecto digno de nota diz respeito ao enfoque interseccional sobre a desigualdade. Como dito no início deste texto, as trabalhadoras na fábrica de fogos eram majoritariamente mulheres negras, oriundas de bairros muito pobres da cidade de Santo Antônio de Jesus, as quais levavam seus filhos para complementar a renda auferida na fabricação de fogos de artifício.
Por se tratar de mulheres, crianças e adolescentes, negras, inseridas em um contexto de pobreza e fora do alcance de políticas públicas e serviços do Estado, a Corte entendeu que sobre elas pesavam uma série de preconceitos (como o de não serem pessoas confiáveis para trabalhar como empregadas domésticas), bem como a situação de exclusão social, em decorrência do seu gênero e raça, que lhes impediam de obter outras oportunidades de trabalho.
Na verdade, as trabalhadoras da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus eram elas mesmas as rodovias e os entroncamentos da teoria da interseccionalidade de Kimberle Crenshaw[2] utilizada pela Corte como subsídio para a condenação do Estado Brasileiro. Com efeito, seus corpos eram atravessados por essas várias avenidas de discriminação, consubstanciando uma articulação entre essas situações, em vez de uma simples soma quantitativa de discriminações.
Adicionalmente, para o caso brasileiro, esta sentença também representa um histórico precedente, na medida em que reconhece o racismo estrutural existente no país. Ou seja, declara que a coletividade formada por negros sofre uma discriminação histórica, na sociedade brasileira, que tem raízes na escravidão. Esta afirmação pode, a princípio, parecer mero truísmo, porém ela abre caminho para que esta realidade seja reconhecida em outros casos, ensejando novas condenações do Brasil e, principalmente, a adoção de medidas de compensação especialmente desenhadas para as necessidades de negras e negros.
Na verdade, a sentença suscita a importância da interseccionalidade para o avanço das lutas por direitos humanos. A racialização de violações de direitos humanos permite que se possa pensar em soluções específicas, que não inviabilizam questões aparentemente particulares em grupos vulnerabilizados de modo mais amplo. Assim, por exemplo, as violações contra mulheres negras trazem uma particularidade que não pode ser alcançada pela ótica segregada do gênero e da raça, mas justamente da junção entre as duas perspectivas é que será possível chegar a soluções que, de fato, resolvem as questões geradas pela discriminação estrutural de que são vítimas.
Neste 11 de Dezembro, em que se rememora a luta de familiares e sobreviventes da tragédia de Santo Antônio de Jesus, é imprescindível pensarmos formas de evitar que ela se repita. Transformar em argumento jurídico a alegação política sobre o racismo é o grande desafio que nos toca enquanto operadoras e operadores do Direito comprometidos com os direitos humanos.
Notas
[1] Em sua tese de doutorado, a professora Sônia Tomasoni explica a distribuição de tarefas, com base no gênero, na produção fogueteira. Ver: TOMASONI, Sônia Marise Rodrigues Pereira. Dinâmica Socioespacial da Produção de Fogos de Artifício em Santo Antônio de Jesus-BA: território fogueteiro. Tese (Doutorado em Geografia). Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2015. [2] CRENSHAW, Kimberle. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum, vol. 1989, p. 139-167.Raphaela Lopes é advogada na organização de direitos humanos Justiça Global, tendo sido uma das responsáveis pelo litígio do caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus V. Brasil, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. É graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia e mestre em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.