Extinção do Dissídio Coletivo de Greve: a coerência necessária

Fotografia: Sindicato dos metalúrgicos de São José dos Campos e região

A greve é o direito historicamente conquistado pela classe trabalhadora, conforme consagrado em diversos instrumentos normativos internacionais, e que, na qualidade de direito fundamental, foi assegurado na Constituição Federal brasileira com impedimento de qualquer tipo de intervenção estatal no movimento.

Jorge Luiz Souto Maior

Fonte: Blog do autor
Data original da publicação: 14/06/2020

Desde a publicação da Emenda Constitucional n. 45, de 2004, discute-se a constitucionalidade do § 2º do art. 114 da Constituição Federal acrescido por referida EC, cuja redação é a seguinte:

“§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.”

​O debate girava em torno da vedação dos sindicatos de, por iniciativa própria e individualmente, deduzirem suas pretensões em juízo. A exigência de concordância da parte contrária para a propositura do dissídio coletivo, dizia-se, criava óbice injustificado ao princípio constitucional do acesso à justiça.

No entanto, no último dia 02 de junho, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão virtual, apreciou as cinco Ações Diretas de Inconstitucionalidade que tratavam sobre o tema (ADIs 3392, 3423, 3431, 3432 e 3520, tendo como relator o Min. Gilmar Mendes), e pôs fim ao debate e declarou a constitucionalidade do dispositivo em questão.

Ocorre que, a exemplo do que já vinha se consolidando em várias decisões da Seção de Dissídios Coletivos do TST (p. ex. TST-RO-0005955-19.2013.5.15.0000. Relator: Min. Maurício Godinho Delgado), o fundamento utilizado para se concluir pela constitucionalidade foi o de se conferir efetividade ao princípio da não intervenção estatal na atividade sindical, de modo a privilegiar a autonomia coletiva das partes em conflito, conforme preconiza, inclusive, a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo afirmado pelo Min. Gilmar Mendes: “No contexto brasileiro, isso significa enfraquecer o poder normativo que era dado à Justiça do Trabalho e expandir os meios alternativos de pacificação, como a mediação e a arbitragem, mesmo que estatal”. E acrescentou: “A jurisprudência do STF, inclusive, destaca a importância dos acordos coletivos na Justiça do Trabalho e da autocomposição dos conflitos trabalhistas”.

A partir da adoção desse pressuposto da não intervenção do Estado como forma de privilegiar a negociação coletiva, vários outros posicionamentos jurisprudenciais precisam ser revistos, sob pena de se fincarem na base do Direito Coletivo do Trabalho inúmeras incoerências jurídicas que teriam como ponto em comum apenas o propósito não revelado de aniquilar a atuação das entidades sindicais representantes dos trabalhadores e trabalhadoras.
Desse modo, para que não se consagre um “incomum acordo” voltado à eliminação da atuação sindical, seguindo a diretriz fixada pela recente definição do Supremo Tribunal Federal acerca do comum acordo para a propositura de dissídio coletivo, dados os fundamentos adotados na decisão, devem ser promovidas mudanças nas compreensões até hoje manifestadas com relação a vários temas jurídicos ligados às relações coletivas de trabalho, tais como: a imposição judicial de representação pelo critério legal de categorias preponderante e diferenciada (já superado pela admissão da terceirização na atividade-fim); a restrição fixada judicialmente ao alcance das normas coletivas que estabelecem contribuição assistencial e confederativa, contrariando a soberania assemblear; as fixações, por ato judicial, de procedimento para o processo eleitoral de diretoria dos sindicatos; e as inibições judiciais ao direito de greve estabelecidas por meio de interditos proibitórios.

De forma mais direta e urgente, há de se compreender que está afastada, de uma vez por todas, a possibilidade de se acolher a instauração, por via unilateral, do assim chamado “dissídio coletivo de greve”.

Ao se acolher a tese da necessidade do “comum acordo” para a propositura de dissídio coletivo, ou seja, considerando-se a aceitação das partes a condição essencial para que o Judiciário se pronuncie a respeito do conflito, estabelecido o “comum acordo”, pois, como um pressuposto necessário para impedir a intervenção estatal na atividade sindical, o ponto básico de coerência a ser fixado desde já é o de que não é cabível a propositura unilateral de dissídio coletivo mesmo em caso de greve, vez que a greve não remete a uma situação diversa, sendo, propriamente, uma forma de manifestação do mesmo conflito.

A greve é um dos modos de expressão dos trabalhadores e trabalhadoras no processo de negociação com os empregadores. A greve, que não equivale a uma ruptura institucional, dado o seu caráter de reivindicação de direitos, está, legitimamente, integrada à negociação. E se a intenção fixada no recente entendimento do STF foi o de privilegiar a negociação, não se pode intervir nos mecanismos constitucionalmente garantidos para o seu desenvolvimento.

A greve, ademais, é o direito historicamente conquistado pela classe trabalhadora, conforme consagrado em diversos instrumentos normativos internacionais, e que, na qualidade de direito fundamental, foi assegurado na Constituição Federal brasileira com impedimento de qualquer tipo de intervenção estatal no movimento.

Como dito no artigo 9º da CF, compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercer o direito de greve e sobre os interesses que por meio dela queiram defender.

A lei infraconstitucional apenas poderá definir os serviços ou atividades essenciais, dispondo sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade no caso de greve de trabalhadores em tais atividades (§1º do art. 9º) e atribuir efeitos aos responsáveis por abusos cometidos (2º. do art. 9º).

Além disso, em conformidade com expressos termos do art. 114, a única exceção feita para o permissivo da propositura de dissídio coletivo em situação de greve (e com legitimidade ativa restrita ao Ministério Público do Trabalho) diz respeito às atividades essenciais e mesmo assim apenas quando se tenha por fundamento a existência de uma “possibilidade de lesão do interesse público” (§ 3º).

Verdade que o inciso II do art. 114 prevê que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar “as ações que envolvam exercício do direito de greve”, mas isso está longe de ser entendido como dissídio coletivo, valendo lembrar que no dissídio coletivo o provimento é normativo (poder normativo), não havendo, pois, tecnicamente, um julgamento.

A previsão do inciso II, portanto, só pode ser concebida com relação a pretensões que tratem de atos que extrapolem o “regular exercício do direito de greve” e não do julgamento da greve em si, na perspectiva de seu conteúdo reivindicatório. Representa, sobretudo, uma instrumentalização contra condutas antissindicais, impeditivas da greve. O inciso II do art. 114 constitui, mais propriamente, uma garantia constitucional para o exercício do direito fundamental da greve e não de um mecanismo para imposição de repressões estatais ao seu exercício.

Insta acrescentar que a decisão do Supremo que reconheceu a constitucionalidade da exigência do comum acordo se apoiou nas orientações da OIT sobre a liberdade de negociação coletiva e, sendo assim, cumpre lembrar que a OIT rejeita a intervenção estatal com relação ao direito de greve.

O Brasil, inclusive, por diversas vezes, já foi alvo de advertências da OIT por promover, pela via judicial ou por ação governamental, intervenções em greves, como no caso n. 1839, julgado pelo Comitê de Liberdade Sindical, tratando da greve dos petroleiros de 1995. Neste caso, o governo brasileiro foi criticado pelas dispensas de 59 trabalhadores grevistas (que, posteriormente, acabaram sendo reintegrados) e pelas multas que o Tribunal Superior do Trabalho impôs ao sindicato em razão de não ter providenciado o retorno às atividades após a declaração da ilegalidade da greve. Em 2007, quando professores, dirigentes do Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES), ligados a várias universidades – Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Universidade Católica de Brasília (UCB), Faculdade do Vale do Ipojuca (FAVIP) e Faculdade de Caldas Novas (GO) – foram dispensados após participação em atividade grevista, novamente o Brasil foi advertido pela OIT.

Além disso, a Convenção n. 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, dispõe que “os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego”.

Sendo assim, ao partir do fundamento do princípio da não intervenção do Estado na atuação sindical, de modo a incentivar a negociação coletiva, a decisão do STF que declarou a constitucionalidade do § 2º do art. 114, que exige, para a instauração de dissídio, a apresentação de uma aceitação conjunta das partes em conflito para a atuação normativa da Justiça do Trabalho, traz, como decorrência lógica e por igual fundamento, o afastamento da possibilidade de propositura, por ato unilateral, de dissídio coletivo em razão de greve, até porque na Constituição Federal não se encontra qualquer dispositivo que pudesse autorizar tal medida processual, como demonstrado.

Do ponto de vista jurídico, este é o resultado obrigatório determinado por uma simples questão de coerência, a qual, nos novos arranjos sociais que precisamos construir para a correção das desigualdades que potencializaram os males da pandemia em nosso país, é o valor ético mínimo a nos guiar.

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