
Economista alerta para o “capital nuvem”, no qual big techs controlam dados, algoritmos e finanças, transformando trabalhadores e países periféricos em servos digitais.
Abraham B. Sicsú
Fonte: Vermelho
Data original da publicação: 16/09/2025
Marx, em discurso de 1856, ao definir as mudanças advindas do novo sistema, o Capitalismo, afirmava: “Em nossos dias, tudo parece repleto de seu contrário: o maquinário dotado do maravilhoso poder de diminuir e frutificar o trabalho humano, contemplamos esfomeados e estafados; as fontes modernas de riqueza, por algum estranho feitiço, são transformadas em fontes de necessidade; as vitórias da arte parecem compradas pela perda de caráter.”
No Tecnofeudalismo isso se potencializa, mundo em que há uma classe dominadora das nuvens, muito pequena, a qual obtém sua renda, mais que extraordinária, advinda dos feudos nas nuvens. Estes têm que ser arrendados pelos capitalistas que para vender suas mercadorias são forçados a deles se utilizar.
Nesse mundo, os feudos são plataformas de comércio cujos algoritmos são propriedade daqueles que se apropriam dos que os constroem e submetem a todos nós à sua lógica.
Os capitalistas comuns submetem os servos do sistema. Somos dependentes e retroalimentamos os algoritmos. Nós servos, constantemente geramos dados e informações que alimentam e direcionam o sistema fazendo com que se aperfeiçoem os modelos de expropriação fazendo com que a renda das nuvens vá se avolumando.
Como diz Yanis Varoufakis “sob o tecnofeudalismo, já não temos propriedade sobre nossas mentes. Cada proletário está se tornando um proletário das nuvens durante o horário comercial e um servo no resto do tempo. Cada trabalhador autônomo empreendedor vira um vassalo das nuvens, e cada trabalhador autônomo precarizado se torna um servo das nuvens.”
A internet nos tornou servos no sentido de sua dependência fazer com que o tempo todo estejamos dando informações, ou seja, trabalhando para aqueles que se apropriam. As nuvens têm donos poderosos que sabem tirar proveito de tudo que fornecemos, o tempo todo.
Nesse mundo confuso, nós que vivemos no Hemisfério Sul e não temos o controle da tecnologia, nem tampouco da financeirização que se baseia no padrão dólar, passamos por dificuldades adicionais.
O mundo está sendo direcionado pelo padrão dólar, ainda não pelo iuane. Pouco a pouco, para garantir nossa inserção, mesmo que de países periféricos, para garantir um mínimo de padrão de vida para nossas populações, estamos sendo forçados a aderir a um dos dois mega Blocos que vão se consolidando. A esfera de influência estadunidense, a esfera de influência chinesa.
O domínio do capital nuvem está nessas mãos, é quase impossível fugir dessa escolha sempre problemática. O espaço para se ter uma posição independente inexiste, a formação de um bloco alternativo se torna ficção, o papel de ponte entre os dois blocos vai se fechando.
O padrão dólar, alicerçado pelas políticas anticíclicas dos Bancos Centrais dos países mais desenvolvidos, levou a um derrame de moeda que assegura o crescimento exponencial da capacidade financeira do capital nuvem e faz com que ele não seja facilmente substituível.
Mesmo a China que poderia ter interesse na substituição do padrão monetário, permitindo espaços menos draconianos no comércio internacional, tem reservas imensas daquela moeda e sua desvalorização não é interesse prioritário nas novas alianças que vem construindo. O uso das nuvens, com novas ferramentas na área financeira, para um reposicionamento na geopolítica internacional, tem reservas imensas.
Com o derrame de moeda dos bancos Centrais para resolver crises e o crescimento do capital nuvem, a própria dinâmica de inovações passa a ser influenciada.
Energia renovável, veículos autônomos, educação a distância, nova bioeconomia e todos os outros segmentos da nova matriz tecnológica que se afigura, passam pelo capital nuvem que se expande de maneira exponencial.
A química, a física, a biologia moderna não se assenta em experimentos terrenos, palpáveis, mas no capital nuvem. Com isso, o domínio dos caminhos que se apresentarão na ciência passa necessariamente pelos interesses desses capitais, um mundo orientado pelas grandes corporações de tecnologia, as chamadas big techs.
As ações hiper valorizadas dos capitalistas nuvem fazem com que dominem, também, o capital financeiro. A riqueza de Bezos e Musk, por exemplo, passou de 10 bilhões de dólares em 2010 para 200 bilhões cada em 2021.
A inteligência artificial, os datacenters sofisticadíssimos, as startups revolucionárias, são adquiridos e comandados pelo novo capital. Os empréstimos baratos conseguidos nas crises não foram direcionados para o aumento do capital produtivo propriamente dito, em grande parte, mas sim, para o crescimento astronômico do capital financeiro dos proprietários do capital nuvem.
As crises com as saídas engendradas pelos Bancos Centrais, sempre com um crescimento exponencial do crédito subsidiado, fizeram com que a lógica do novo mundo fosse comandada por esse capital, restrito, exclusivo de poucos, fazendo com que a grande maioria das firmas e da população em geral, não só trabalhasse para eles, mas se submetesse às suas regras que nos tornam reféns de suas vontades.
Novos ativos digitais como os Bitcoins, os derivativos e as NFT vão criando espaços que podem consolidar o novo feudalismo, mesmo sem o estado como regulador.
Isso é assustador. Será que estamos chegando ao mundo dos impérios empresariais?
Ser servo em um Estado que tem regras mínimas é uma coisa, ser servo num mundo em que as regras serão definidas pelas rendas das Big empresas, um inimaginável pesadelo.
Abraham B. Sicsú é professor aposentado do Departamento de Engenharia de Produção da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e pesquisador aposentado da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco)