Virada digital, trabalho e escravidão

Ilustração: Pixabay

No trabalho conduzido pelo senhor proprietário do algoritmo, o tempo humano se consome na produção de dados sem cessar, revelando o desespero de acessar qualquer atividade que ofereça algum crédito, necessário para suprir o débito da própria sobrevivência.

Marcio Pochmann

Publicado em parceria com DDF

A Era Digital já era uma realidade que terminou sendo acelerada pela fatalidade da pandemia da Covid-19. Em virtude disso, e parecendo lembrar certa concepção ludista do início do século 19, contrária ao avanço da mecanização capitalista no processo produtivo, parcela das reflexões e posições políticas atuais sobre o mundo do trabalho tende a se concentrar em duas questões chaves.

De um lado, a crítica consistente e correta, em grande medida, à insensibilidade de patrões e governantes diante da extensão do desemprego aberto e da generalização precarizadora das ocupações existentes. De outro, os argumentos assentados na identificação de que no passado não distante (Era Industrial) a situação aparentava ser melhor, o que poderia indicar menosprezo à intensa disputa travada em torno do sentido das mudanças em curso no interior do mundo do trabalho. 

Por força disso, há uma espécie de entendimento “negacionista” acerca da realidade transformadora do mundo do trabalho que, como se sabe, evoluiu historicamente com a necessária, intensa e fulminante ação organizada das forças de interesses da classe trabalhadora. O incrível é que sugestões inovadoras acerca do horizonte de possibilidades para a organização dos tempos de vida e trabalho estejam sendo confrontadas destacadamente no interior de think thanks, inclusive em eventos de grande porte e repercussão internacional com maior interesse patronal.

Exemplo disso se encontra no debate travado no interior do Fórum Econômico Mundial de 2019, quando Adam Grant, professor da Wharton (EUA), e Rutger Bregman, economista e historiador holandês, defenderam a passagem para uma sociedade fundada na renda básica universal com 15 horas semanais de trabalho[1]. Da mesma forma, as iniciativas governamentais a respeito da semana de 4 dias de trabalho avançam experimentalmente em vários países, como Finlândia, Espanha, Japão, Índia, Nova Zelândia, entre outros. 

No início de 2021, por exemplo, as ofertas de emprego com jornadas de quatro horas semanais atingiam a quase 62% das vagas publicadas pelo no ZipRecruiter, que atua no mercado de trabalho on line dos Estados Unidos. Há cinco anos, as ofertas de emprego publicadas pelo mesmo instituto para 4 horas semanais não cobriam 15% do total das vagas. 

Para o excepcional cenário atual, as medidas também excepcionais são crescentemente aguardadas. Se a riqueza de uma nação provém da relação quantitativa do labor por trabalhadores multiplicado pelo número de ocupados, a divisão da riqueza ampliada pelo progresso tecnológico poupador de mão de obra e gerador de alta produtividade pressupõe a diminuição das horas trabalhadas[2]. 

Após um século da invenção do final da semana remunerado, um dia a mais de descanso passou a ser adicionado recentemente aos contratos laborais por mais empresas. Os sindicatos, ao término do século 19, mobilizaram-se em torno da obtenção da jornada diária de oito horas, assim como conquistaram no século 20 o direito ao fim de semana com dois dias de descanso, acrescido de férias e feriados remunerados. 

Atualmente, o tempo de trabalho de oito horas diárias tem se tornado cada vez mais um mito, sobretudo na prática do roubo do tempo de vida ocupado pelo labor gratuito disponibilizado pelas redes sociais. Conforme pesquisa realizada por Vouchercloud.com, os trabalhadores ingleses, por exemplo, comprometiam adicionalmente à jornada laboral tradicional cerca de duas horas e 23 minutos em média ao dia durante o ano 2017. 

O salto obtido na produtividade laboral com as novas tecnologias e o aumento no trabalho gratuito precisa ser urgentemente mais disputado por trabalhadores e seus sindicatos, assim como pelos governos progressistas. Evitaria, assim, a crescente desigualdade gerada por intensa concentração da riqueza em meio ao avanço da pobreza e desemprego. 

Para isso, o “santo graal patronal” necessitaria ser enfrentado com drástica diminuição na jornada de trabalho. Além de possível, é necessária, conforme apontam experiências atuais, inclusive com a tributação de lucros extraordinários, sobretudo nas grandes corporações transnacionais, para financiar a transição ecológica e a renda básica universal de cidadania. 

Era Digital no Brasil 

A partir dos anos de 1990, o Brasil invertou a forma com que vinha transitando para a  nova Era Digital, sobretudo pela forma com que o país adentrou na globalização, fortemente apoiada no receituário neoliberal. Com isso, a economia nacional passou a sofrer importante impacto que repercutiu direta e indiretamente sobre o curso da sociedade industrial por meio da grande mobilidade descendente no interior da estrutura social brasileira. 

De uma parte, a desindustrialização acompanhada pela desarticulação do sistema produtivo nacional interrompeu o movimento geral de estruturação do mercado de trabalho, constrangendo tanto os postos intermediários de classe média como o próprio processo de proletarização urbano. O aparecimento do inédito desemprego aberto transcorreu simultaneamente a perda de funcionalidade econômica das ocupações informais, assalariadas e por conta própria. 

A flexibilização da legislação social e trabalhista adotada desde os anos de 1990 (contratos temporários, terceirizados, cooperativados, pejotização e microempreendedores individuais) contribuiu para que parcela das ocupações ocorresse em atividades vinculadas à prestação de serviços. Em geral, ocupações voltadas ao atendimento dos segmentos cada vez mais ricos da sociedade, como a segurança patrimonial e privada, limpeza e asseio, cuidadores de animais, entregadores variados, personal stylist, trainer, entre outros.

De outra parte, a forma com a qual o país escolheu para adentrar na Era Digital enquanto consumidor fez com que passasse a repetir o equivalente ingresso realizado na Era Industrial ao longo do século 19. Na condição atual de quarto maior mercado consumidor do mundo de bens e serviços digitais, o Brasil depende fundamental e crescentemente das importações financiadas pela exportação de commodities.

Concomitante à destruição dos antigos sujeitos da sociedade industrial, emergiu a nova classe trabalhadora cada vez mais desagregada da tradicional relação salarial e, por consequência, dos direitos sociais e trabalhistas. Em seu lugar, tem ganho relevância a relação débito-crédito a responder por parcela importante dos postos de trabalho assentados na Era Digital[3].

Em síntese, o financiamento do custo da vida individual ou familiar representado pelo débito financeiro, mesmo que ainda vinculado à relação do emprego assalariado, depende do rendimento (crédito) obtido pela contrapartida de trabalhos gerais intermediados por plataformas digitais, seja em serviços profissionais (psicólogos, coach, telemedicina, cursos remotos, entre outros), especializados (vendedor, entregador, youtuber, infiuencer e outros, e simplifícados (microtarefas em geral).

De forma dispersa geograficamente, o trabalho tem sido externalizado através da disponibilização da contratação a multidão da classe trabalhadora (crowdwork), podendo ser realizado em qualquer lugar, não mais em local determinado, inclusive crescentemente em casa (teletrabalho). Sem regulação, a intensificação do trabalho é brutal, pois lastreada por aplicativos decorrentes da revolução informacional, o labor tem se aproximada muitas vezes ao já muito existente não fosse a ferramenta intermediária de natureza digital.

Nessas circunstâncias, as instituições de representação de interesses de classe e frações de classe social pouco se alteraram. Estranhamente, associações, sindicatos e partidos seguem operando de forma rígida, acompanhadas da perda de filiados, do descrédito e da menor capacidades de ação política, sem soberania tecnológica nacional.

Para além disso, a percepção da mudação do regime climático no mundo, com a aceleração do Antropoceno, impõe a necessidade de reconsiderar a apartação da vida humana da natureza, de longo tempo tratada como recurso de uso ilimitado. A pandemia da Covid-19 parece inaugurar nova fase da convivência com crises virais, permitindo que o Brasil se destaque por deter um dos principais passaportes do desenvolvimento sustentável no século 21.

O despertar para a necessidade de políticas voltadas para o desenvolvimento dos biomas oferece a oportunidade de repensar as frentes de geração de riqueza. Em paralelo, contudo, o sistema político brasileiro demonstra a força da supremacia rentista e do neoextrativismo consubstanciado pelo domínio das bancadas parlamentares.

Com o esvaziamento da sociedade industrial, volta a ter importância novamente a tradicional divisão geográfica nacional entre produção em alta para a exportação, dominada pelos interesses dos mercados externos, e para o asfixiado mercado interno, dependente de importações. Suas consequências para o mundo laboral têm sido intensas e aceleradas.

A geração de extensa população sobrante encontra oportunidade pela qual o novo sistema jagunço começou a se estruturar, inicialmente nas periferias dos grandes centro urbanos e, posteriormente, em todo o país, contaminando, em parte crescente, os aparelhos de Estado e as diversas formas de representação política, econômica, cultural e social. Tal como na República Velha (1889-1930), quando capitalismo nascente excluía a população sobrante do sistema econômico, atualmente a subutilização do trabalho impõe a relação débito-crédito concernente com o surgimento de um novo sistema jagunço mobilizado pelo fanatismo religioso e o banditismo social.

Escravidão desracializada 

O Brasil experimenta atualmente a sua terceira fase da escravidão denominada moderna. Ressalta-se, contudo, que não se trata de um acontecimento exclusivamente nacional, pois difundido pelo capitalismo informacional que reconfigura o mundo em dois grandes blocos de países e regiões.

De um lado, os países produtores e exportadores de bens e serviços digitais e, de outro, os demais países passivamente importadores dos mesmos bens e serviços digitais. Pela nova Era Digital, a organização da produção e distribuição da economia tem sido operada pela expansão dos algoritmos geridos por grandes corporações transnacionais, sejam do Ocidente, sejam do Oriente. 

O resultado disso tem sido acompanhado por relatórios de diversas instituições de pesquisa e consultorias que explicitam o avanço da desigualdade no mundo e, sobretudo, o explosivo fluxo migratório internacional. Movida pela dinâmica da financeirização do capital, proliferam-se múltiplas formas de combinação profundamente desigual do expansionismo de grandes corporações transnacionais no Ocidente. No Oriente, por outro lado, a resposta de grande parte das corporações transnacionais se encontra conduzida pela presença da intervenção coordenada do Estado.

Assim, os países produtores e exportadores de bens e serviços digitais combinam lucros internos extraordinários com resultados favoráveis do comércio externo que, por ser desregulado, produz mais desigualdade no mundo. As margens de lucros das grandes corporações transnacionais, livres da tributação, têm sido estimuladas por investimentos tecnológicos gigantescos e, em grande medida, subsidiadas pelo próprio Estado. 

Além disso, a lucratividade é acrescida da queda na taxa de salários proporcionada pela oferta abundante de mão de obra gerada no neoliberalismo, que reduziu direitos sociais e trabalhistas. Ao mesmo tempo, a competição no interior do mundo do trabalho se acirra com o movimento imigratório internacional, conformado, inclusive, pela fuga de cérebros das economias subdesenvolvidas.

Assim, os países predominantemente consumidores de bens e serviços digitais dependem, em geral, da produção e exportação neoextrativa dos seus recursos minerais e vegetais. Ademais de comprometerem aceleradamente os seus próprios biomas, com a devastação ambiental promotora de crises virais sucessivas, esvaziam a soberania, dependendo da tecnologia comprada do exterior e comandada pelo poder privado dos algoritmos controlados pelas grandes corporações transnacionais. 

Para a classe trabalhadora, o que tem restado diante do neoexpansionismo agropecuário e mineral exportador a concentrar renda e a restringir empregos no campo são as precárias ofertas de trabalho comandado por algorítimos próprios do capitalismo de plataformas. Nesse sentido, a expressão da escravidão sobre novas bases técnicas e ideológicas ganha expressão, tendo o trabalho comandado pelo senhor proprietário do algorítimo a exclusiva resposta ao desemprego. 

A obediência a esse senhor da Era Digital tem sido plena, sem limites de tempo de trabalho, garantia de renda e direitos sociais e trabalhistas, plugado permanente nas redes de produção de dados convertidos em riqueza apropriada por cada vez menos proprietários da datificação da sociedade. Sob a grife do empreendedorismo, o trabalho é explorado até a sua última gota física e, sobretudo, a exploração subjetiva da condição humana. 

No passado, a escravidão moderna convergia na apropriação física sem limites, porém desapegada da exploração subjetiva da condição humana. Em função disso, havia possibilidade de resistências diversas, movidas pela cultura e valores próprios que alimentavam continuadamente a esperança da liberdade através das mobilizações em torno da abolição escravista. Nos dias de hoje, a conexão digital contribui para esvaziar valores e cultura concernentes com a possibilidade de obtenção da liberdade plena. 

Em síntese, a oferta crescente do tempo de vida para trabalho de conexão digital contínua subordina-se a ideologia consumista que esvazia o sentido da existência humana, crescentemente dependente do uso de drogas legais ou ilegais a conviver com a depressão, o mal do século 21. 

No caso do Brasil, a sua histórica trajetória foi constituída por duas diferentes fases da escravidão moderna. A primeira, que durou praticamente três séculos, esteve relacionada ao sistema colonial europeu. 

A montagem portuguesa da primeira cadeia global de produção de produtos primários integrou três diferentes continentes. A África, através do tráfico negreiro a ofertar escravos ao sistema de plantation de monocultura em grandes escalas no Brasil colonial, esteve articulada ao comércio de produtos primários endereçado ao mercado europeu. 

Com a independência nacional, em plena decadência do sistema colonial europeu, o Brasil decidiu autonomamente assumir a segunda fase da escravidão, conectada a ordem capitalista liderada aos interesses ingleses. Enquanto grande parte dos países ancorados no uso do trabalho escravo foram abandonando-o pela inserção no capitalismo no início do século 19, os Estados Unidos e o Brasil optaram por levar mais adiante uma segunda fase escravista concentrada exclusivamente na população negra africana.

Nos dias de hoje, a divisão de mundo imposta pelo capitalismo informacional oferta aos países dependentes da tecnologia externa e fundamentalmente importadores de bens e serviços digitais a plataformização do trabalho. Um labor emburrecido e robotizado a consolidar a terceira fase da escravidão que não mais diferenciando raça e cor, muito menos sexo e diferentes faixas etárias e de escolaridade.

A difusão dos trabalhos gerais, despossuídos de identidade e pertencimento coletivo, transcorre pelo neologismo do empreendedorismo que dissolve relações salariais, substituídas pela relação débito-crédito como se fosse um negócio qualquer. Dessa forma, o trabalho regredido a mercadoria descolada da justiça do Trabalho, pois concebido como negócio entre partes iguais, submetido ao direito comercial, sem representação coletiva como associação, sindicato e até mesmo partido político. 

Ao ser concebido por relação individual, o empreendedorismo de si próprio configura na Era Digital como a terceira fase da escravidão. No trabalho conduzido pelo senhor proprietário do algoritmo, o tempo humano se consome na produção de dados sem cessar, revelando o desespero de acessar – legal ou ilegalmente – qualquer atividade que ofereça algum crédito, necessário para suprir o débito da própria sobrevivência.

Notas

[1] Para mais detalhes ver: GRANT, A. Power Moves: Lessons from Davos. 2018; BREGMAN, R. Utopia for Realists. 2017.

[2] Ver mais em: ILO Adapting Working Hours to Modern Needs. 1977; BELL, K. A four-day week with decent pay for all? It’s the future. 2019; BARNES, A. ; JONES, S. The 4 Day Week. 2020; FERRISS, T. The 4-Hour Workweek, 2009; AZNAR, G. Trabalhar menos para trabalharem todos. 1995; GORZ, A. Metamorfoses del trabajo. 1997.

[3] Ver mais em: POCHMANN, M. A grande desistência histórica e o fim da soceidade industrial. 2021.

Marcio Pochmann é  professor e pesquisador do Cesit/Unicamp e da Ufabc.

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