Vida longa ao tecnofeudalismo? Nenhum byte de feudal no capitalismo tardio

Imagem: Wikimedia Commons

O que os proponentes do tecnofeudalismo identificam como uma característica feudal — uma massa de trabalhadores expropriados — é, efetivamente, o traço central do capitalismo.

Paulo Pachá e Eduardo Daflon

Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 17/12/2025

Consideremos o seguinte cenário: poderes privados desafiam a soberania dos Estados; crescente desigualdade entre elites riquíssimas e uma massa despossuída; a maior parte dos trabalhos só pode ser desempenhada através do pagamento de taxas aos ricos e poderosos; uma sociedade sitiada em igual medida pela fome e pela peste; estagnação econômica e crise política flagelam esse mundo… Seria essa uma descrição da Idade Média europeia ou da sociedade global do século XXI? São esses superficiais paralelos que têm levado diversos intelectuais a pensar que testemunhamos o fim do capitalismo. Em seu lugar, ao invés do sonho progressista do socialismo, o retrocesso à barbárie: o capitalismo está morto! Vida longa ao tecnofeudalismo?

O conceito de tecnofeudalismo surgiu para explicar um mundo pós-capitalista, supostamente nascido com a crise de 2008. O elemento central desse novo momento seria a dominância das chamadas Big Techs, empresas gigantes de tecnologia e responsáveis pelas grandes plataformas que povoam o mundo digital (Google, Amazon, Meta etc). Segundo Yanis Varoufakis, ex-ministro de Economia da Grécia e principal defensor do conceito, o tecnofeudalismo é caracterizado pela centralidade da renda (o pagamento de taxas diversas, como assinaturas e percentuais de cada venda ou serviço realizados por meio de uma plataforma), e não do lucro, como ocorreria no capitalismo. É no feudalismo, como um sistema fundado na renda, que Varoufakis encontra um paralelo. Dessa forma, as Big Techs seriam os novos senhores feudais, as empresas menores seriam os novos vassalos, e usuários e trabalhadores seriam os novos servos, todos diretamente envolvidos na produção daquilo que Varoufakis chama de “capital-nuvem” (cloud capital).

Mais recentemente, o debate vem ganhando tração na esfera pública com uma grande quantidade de notícias jornalísticas, debates nas redes sociais, vídeos e podcasts com milhares de acessos. E não é difícil entender os motivos: trata-se de uma resposta simples e contundente para uma questão complexa e premente: como explicar a crescente precarização de nossas vidas? Assim, parte do campo progressista busca explicar o mundo atual como um retrocesso: bem-vindos às trevas tecnofeudais.

Varoufakis é apenas um dentre muitos autores marxistas que têm desenvolvido o conceito de tecnofeudalismo, ainda que com ênfases diversas. Por exemplo, a cientista política norte-americana Jodi Dean tem enfatizado pelo menos desde 2020 a noção de “neofeudalismo”, com destaque para a retração do Estado nação frente às Big Techs. Por sua vez, o livro de 2020 do economista francês Cédric Durand é o verdadeiro ponto de partida para a discussão sobre tecnofeudalismo e a crítica do capitalismo algorítmico, com um grau de sofisticação teórica muito maior do que a obra de Varoufakis. De qualquer forma, praticamente todos os defensores do conceito de tecnofeudalismo operam com uma visão da Idade Média europeia fantasiosa e já plenamente superada pelos historiadores. Os medievalistas, por sua vez, têm rejeitado o debate, já que majoritariamente ignoram a conceituação do capitalismo e do feudalismo como modos de produção. Trata-se de um debate que envolve dois grupos que não falam a mesma língua. Decorre disso que o tecnofeudalismo é apresentado como uma ideia extremamente sedutora, palatável para um público que aparentemente não entende nem o que é feudalismo, nem o que é capitalismo.

A crítica da hipótese tecnofeudal depende do reconhecimento de que feudalismo não é um sinônimo para a Idade Média. Ao contrário, é um conceito bastante polissêmico e utilizado de formas muito diferentes por historiadores de diversas tradições teóricas. Enquanto alguns historiadores entendem feudalismo como o conjunto das relações de fidelidade e vassalagem, outros buscam negar o próprio conceito. Para esses últimos, trata-se de argumentar que feudalismo se tornou um termo tão impreciso a ponto de ser impróprio para a análise histórica. No entanto, o debate sobre o tecnofeudalismo, empreendido por autores marxistas, depende de uma caracterização do feudalismo como um modo de produção. Seu elemento central é a ideia de apropriação extraeconômica da renda. Ao contrário do capitalismo, onde os capitalistas se apropriam da riqueza produzida pelos trabalhadores de forma velada, no feudalismo os senhores exploravam os camponeses de forma direta, através de uma relação marcada pela violência (ainda que muitas vezes implícita).

Contudo, os proponentes do conceito de tecnofeudalismo, que não são historiadores, operam com uma definição de feudalismo marcada por diferentes graus de ignorância em relação ao próprio conceito. Lançam mão, portanto, de uma definição de feudalismo que simplifica relações sociais como a servidão e o pagamento de rendas, operando com a ideia de que os servos eram inquilinos nas terras dos senhores feudais. Nada mais distante da realidade do período, marcado por formas de exploração extraeconômica. Naturaliza-se com isso a propriedade absoluta do capitalismo e não se reconhece o conjunto de direitos que as famílias camponesas efetivamente tinham sobre os solos em que viviam e cultivavam. Outra consequência dessa simplificação é o apagamento da resistência multissecular dos camponeses na preservação desses direitos de propriedade e de sua autonomia frente aos ataques violentos dos senhores. Mesmo com todas as inúmeras discordâncias entre os medievalistas acerca do conceito de feudalismo, é razoável dizer que nenhum deles encontraria um único byte de feudal no tecnofeudalismo.

Como explicar então a popularidade imediata do conceito de tecnofeudalismo? Não se pretende negar aqui as profundas transformações pelas quais o mundo passou nos últimos 150 anos, em especial aquelas produzidas pelo surgimento de novas tecnologias. Nesse sentido, é compreensível que exista uma demanda popular por reconhecer o momento atual como um período específico da história. O que Varoufakis e seus congêneres fazem então é indicar a vigência de um novo modo de produção, e não de uma mera fase do capitalismo. Ironicamente, optam por adjetivar do feudalismo — no lugar de um “capitalismo feudal”, falam em “tecnofeudalismo” ou “neofeudalismo”. Ou seja, rejeitam um capitalismo adjetivado em prol de um feudalismo preposicionado. Ao apresentar o núcleo do argumento, o próprio conceito coloca em palavras uma sensação compartilhada por muitas pessoas: não estamos mais vivendo em um mundo regido pela ideia capitalista de progresso, mas em um mundo que parece andar para trás no tempo e no desenvolvimento social, que conjuga o ápice do avanço tecnológico, que marcaria o capitalismo, com as profundezas da barbárie humana tipicamente associadas ao feudalismo.

O que se faz, portanto, é “exportar” os elementos mais agressivos e mais contemporâneos do modo de produção capitalista para algo que aparece como seu antagonista e antecedente histórico: o feudalismo. É fundamental reconhecer então que na origem do conceito de tecnofeudalismo reside uma profunda romantização do capitalismo liberal. Desta forma, a barbárie contemporânea não poderia ser identificada com o capitalismo, necessariamente sendo o resultado da vigência de um outro sistema: medieval, violento e primitivo. O resultado é a manutenção das ilusões prometidas pelos apologistas do capitalismo liberal, o qual recebe um salvo-conduto em relação à sua responsabilidade na construção da catástrofe social que vivenciamos.

A romantização e idealização saudosista do capitalismo na Europa, marcado pela construção do Estado de bem-estar social, são explícitas no livro de Varoufakis. O autor recorre às memórias infantis da dignidade da vida de seu pai, um químico grego que encarnava uma classe trabalhadora europeia, especializada, com bons salários que lhe permitiam sustentar a família e desfrutar de belos momentos de lazer à beira da lareira com os filhos.

É justamente nesse ponto que o conceito de feudalismo se torna relevante para explicar o mundo contemporâneo, não como um pastiche, mas como uma forma de iluminar o processo de emergência do próprio capitalismo. O principal processo que explica o surgimento do capitalismo e o fim do feudalismo é justamente a derrota dos camponeses e demais trabalhadores na tentativa de preservação de seus direitos como proprietários dos meios de produção, a terra sendo o principal entre eles. Ou seja, só é possível falar em plena vigência do capitalismo quando os trabalhadores perderam a sua condição de proprietários (dos meios de produção) e foram transformados, nas palavras de Karl Marx, em “simples possuidores de suas próprias forças de trabalho”. O que os proponentes do tecnofeudalismo identificam como uma característica feudal — uma massa de trabalhadores expropriados — é, efetivamente, o traço central do capitalismo.

Assim, os defensores do conceito de tecnofeudalismo projetam para o mundo medieval o que é uma característica da sociedade contemporânea. É no capitalismo que os trabalhadores, separados dos meios de produção, são deixados sem escolha e precisam, por meio da coerção econômica (e não extraeconômica, como no feudalismo) alugar seus meios de trabalho daqueles que de fato são proprietários. Trata-se de uma situação que está historicamente circunscrita aos últimos 400 anos da história humana, resultado do processo histórico de expropriação dos camponeses, o que criou uma massa de trabalhadores despossuídos e, portanto, adequados para a nascente produção industrial em larga escala.

Aquilo que o conceito de tecnofeudalismo falsamente apresenta como uma irrupção da barbárie feudal no presente nada mais é do que o aprofundamento da expropriação, uma dinâmica tipicamente capitalista desde seu surgimento. Assim, o tecnofeudalismo tenta preservar as promessas ilusórias do capitalismo liberal — um mundo no qual os trabalhadores seriam proprietários. Não surpreende que tal prestidigitação possa prosperar entre esquerdistas europeus e norte-americanos, mas causa estranhamento que a mesma premissa possa enfeitiçar analistas no Sul global, há séculos confrontados com a realidade profunda e cotidiana da expropriação.

Não é preciso ser nenhum suprassumo da medievalística para perceber que esse tipo de uso do passado medieval não é novo. A ideia de Idade Média surgiu e foi utilizada até o século XVIII justamente para contrastar com os contextos iluministas, renascentistas e antigos, sendo um período intermediário entre épocas historicamente mais valorizadas. Posteriormente, durante o século XIX, foi utilizada como horizonte idealizado para o pessimismo e nostalgia do Romantismo nacionalista. A principal função da Idade Média, portanto, é aparecer como um espelho deformado com o qual as sociedades do presente se confrontam. A criação e popularização do conceito de tecnofeudalismo é uma evidência não só do fracasso dos projetos revolucionários da esquerda, mas do abandono de ferramentas conceituais rigorosas que permitam analisar o capitalismo e vislumbrar possibilidades progressistas para a sua superação. Um elemento adicional da tragédia contemporânea que vivemos é que são marxistas a pensar que o nosso tempo aponta não mais para a superação do capitalismo através da proposição de futuros melhores, mas para a regressão histórica em direção ao feudalismo. No lugar do urgente lema “socialismo ou barbárie”, restaria apenas resignar-se à barbárie tecnofeudal.

Paulo Pachá é professor de História Medieval na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seus principais interesses de pesquisa concentram-se no Reino Visigodo de Toledo e nos usos e abusos da Idade Média europeia. É autor de diversos artigos acadêmicos e textos de opinião publicados em veículos como Folha de S. Paulo, revista ÉpocaThe Washington Post Pacific Standard

Eduardo Daflon é professor de História Antiga e Medieval da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Seu principal interesse de pesquisa é o estudo do campesinato durante a Idade Média. É autor do livro Foice livre: campesinato ibérico e transformação social entre fins do mundo romano e a Idade Média (c. 300 – c. 500)


Leia também

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *