Uma releitura do esgotamento e do sofrimento psíquico no neoliberalismo

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O que Foucault faz ver em seus escritos sobre o neoliberalismo é, precisamente, que a lógica do capital humano não é mais a das antigas relações entre empregador e empregado, mas de empresas negociando entre si.

Flávia Andrade Almeida

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 26/08/2025

É importante dizer, logo de início, que muito do que discutirei não é inédito, mas a perspectiva talvez traga aspectos diferentes do que em geral se aborda a respeito dos modos de subjetivação e sofrimento psíquico da racionalidade neoliberal (que é nossa racionalidade, nosso ethos político). Trata-se de uma proposta de debate que, em razão dos objetivos, aproxima dois pensadores que em geral aparecem separados: Foucault (filósofo francês contemporâneo) e Winnicott (psicanalista da tradição inglesa). Falo nesse texto como alguém que se interessa por remexer o que parece óbvio. E como alguém que se interessa por esses dois pensadores. Especificamente nessa reflexão, trarei um pensador para intermediar a passagem, a transição desse debate será possibilitada pelas ideias do sul coreano Byung-Chul Han.

Começo por definir que trato aqui da racionalidade neoliberal que seria, para Michel Foucault, uma forma de organização social, um modo específico de funcionamento sociopolítico (próprio do capitalismo, mas com especificidades). O neoliberalismo funciona de modo a gerir corpos e mentes com dispositivos que incidem sobre a subjetividade e sobre os modos de vida e de relações. Direciona o ethos social de modo a constituir não mais indivíduos, mas capital humano e faz com que a lógica mercadológica da livre-concorrência norteie todas as relações, incluindo as do sujeito consigo mesmo. O ‘empresário de si’ é o sujeito que negocia não apenas sua força de trabalho, mas que direciona esforços para o aprimoramento pessoal, profissional e o das aptidões em geral. Investe e negocia seus próprios predicados, em todas as esferas de sua existência.

Em linhas gerais, o que Foucault faz ver em seus escritos sobre o neoliberalismo é, precisamente, que a lógica do capital humano não é mais a das antigas relações entre empregador e empregado, mas de empresas negociando entre si. O homo oeconomicus de que fala Foucault, é o empresário de si, dentro e fora de seu trabalho. Esse cenário implica na generalização da busca pela alta performance, alto desempenho e constante competitividade. Consiste, portanto, em modificação constante de comportamentos e condutas, o que consiste na regulamentação mercadológica das subjetividades. Trata-se de uma realidade na qual se produz um modo particular de ser sujeito.

O sujeito moderno (que somos nós) é um sujeito que se vê reagindo às demandas de mercado, com a dinâmica das adaptações necessárias à realidade na qual vive, indiscriminadamente. São escassos, em um contexto como esse, os espaços de valorização da espontaneidade ou da construção do coletivo. E em termos de relações sociais, são escassas as construções de espaços para a escuta, especialmente para a escuta dos sofrimentos que não tem estatuto de legitimidade numa realidade na qual só os considerados melhores se destacam.

A racionalidade neoliberal produz sujeitos que estão e precisam estar globalmente disponíveis. Há aqui uma transformação radical na relação e na percepção acerca do tempo. Estar disponível integralmente é uma conduta que parece, cada vez mais, se naturalizar. Talvez seja possível afirmar que a racionalidade neoliberal generaliza, além da competitividade, o ethos das invasões ambientais, cada vez mais precocemente. Então as invasões ambientais (como diria Winnicott), se prolongam para além da infância e permanecem ao longo da história dos sujeitos se aplicando, inclusive, em sua relação com o tempo que cada vez menos é subjetivo e cada vez mais cedo se torna coletivo.

Subjetividade de rendimento, performance, desempenho

Um dos filósofos contemporâneos mais populares que trata do tema do sofrimento psíquico nesse contexto é Byung-Chul Han. Han utiliza termos como subjetividade de performance, sujeito do rendimento, subjetividade do desempenho e outros dessa ordem, alguns dos quais tomo emprestado. É dele a afirmação “o sujeito moderno explora a si mesmo e acredita que isso é sinônimo de sucesso”.

Han defende que o neoliberalismo funciona com dispositivos que transformam as subjetividades em mercadorias. Trata-se, para ele, de uma sociedade do desempenho, que é, ao mesmo tempo, uma sociedade da positividade a todo custo. E se as subjetividades são implicadas em desempenho e alta performance, não há espaço para expressão de conflitos e angústias.

Além disso, como já dissemos, essa racionalidade política vigente tende a tornar cada vez mais raros os sensos de coletividade e de alteridade. Estamos em desamparo radicalizado, em abandono a própria sorte, isolados; cada vez mais narcísicos, esgotados e carentes de reconhecimento. E Han parece concordar com esses argumentos quando diz, a respeito do sujeito do desempenho:

A coação do desempenho força-o a produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da gratificação. Vive constantemente num sentimento de carência e de culpa. E visto que, em última instância, está concorrendo consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir. Sofre um colapso psíquico, que se chama burnout (esgotamento). O sujeito de desempenho se realiza na morte. Realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem […] O sujeito de desempenho esgotado, depressivo, está, de certo modo, desgastado consigo mesmo. Está cansado, esgotado de si mesmo, de lutar consigo mesmo. Totalmente incapaz de sair de si, estar lá fora, de confiar no outro, no mundo, fica se remoendo, o que paradoxalmente acaba levando a autoerosão e ao esvaziamento. Desgasta-se correndo numa roda de hamster que gira cada vez mais rápida ao redor de si mesma. Também os novos meios de comunicação estão destruindo cada vez mais a relação com o outro. O mundo digital é pobre em alteridade e em sua resistência […] A “alegria” que se encontra nas redes sociais tem sobretudo a função de elevar o sentimento narcísico. Ela forma uma massa de aplausos que dá atenção ao ego exposto ao modo de uma mercadoria (HAN, 2017, p. 86, 91, 93).

Daí, vemos que o sujeito de desempenho não pode sucumbir a “fraquezas” como tristeza, choro e descanso. O cansaço, aliás, tem sido cada vez mais encarado como tabu a ser escondido, como sinal de fracasso e de inaptidão. Pretende-se transformar os indivíduos em verdadeiras máquinas, mas mesmo máquinas não seriam capazes de corresponder a todos esses dispositivos de alta performance e de total vigilância, regulação e permeabilidade entre tempo pessoal e coletivo. O cansaço e o colapso parecem inevitáveis. E Han não exagera quando diz que os efeitos de toda essa parafernália podem ser mortais, autodestrutivos e definitivos. Trata-se de um contexto sociopolítico que pode acabar por produzir sensação de sufocamento, de colapso, desejo de auto aniquilamento. Han afirma: “o sujeito do desempenho desenvolve nesse processo (de exploração de si) uma autoagressividade, que não raro se agudiza e desemboca num suicídio. O projeto (neoliberal) se mostra como um projetil, que o sujeito de desempenho direciona contra si mesmo” (HAN, 2017, 101).

Sociedade Paliativa – a dor hoje

Han escreveu um ensaio no qual aborda, inclusive, o sofrimento psíquico na pandemia. O título do ensaio é Sociedade paliativa – a dor hoje e farei algumas considerações a partir dele e com ele. Com ele porque volto a dizer: o que Han propõe não é necessariamente inédito e pode ser até mesmo obvio, mas estamos em um tempo no qual é necessário repetir algumas vezes coisas que são óbvias.

Nesse ensaio, Han afirma que o modo como nos relacionamos com a dor, ou mais especificamente, com o sofrimento, dá sinais da sociedade na qual vivemos. E nomeia o sintoma do nosso tempo, o sintoma da racionalidade neoliberal, como: algofobia. A algofobia é a extrema angústia que temos em relação ao sofrimento e a dor. Tem por consequência uma permanente anestesia e tudo aquilo que provoca dor é evitado. Eu diria mais, tudo aquilo que diz respeito à dor é escondido, abafado, censurado. Isso porque o sofrimento, a tristeza e a dor são afetos que evocam a crítica. E o movimento descrito por Han já foi descrito por muitos pesquisadores e pensadores. Individualizar problemas, individualizar os sofrimentos, patologizar e descrevê-las como fruto de transtornos individuais sanáveis exclusivamente com medicamentos é governá-las, controlá-las, para que silenciem e, especialmente, para que silenciem os intoleráveis sociais que as desencadeiam. Pois é inegável a dimensão sociopolítica do sofrimento, por tudo que foi dito até aqui e por tudo que é possível visualizar a olho nu em nossa realidade brasileira atual. Medicalizar a vida e patologizar o sofrimento é um dispositivo de governo bastante conhecido e tratado por Foucault e seus comentadores (ALMEIDA, 2021). E patologizar qualquer sofrimento, fazendo-o silenciar é ou deveria ser, o oposto da tarefa do profissional psi, posição da qual considero fundamental eu abordar aqui, ainda que de modo breve.

A aceitação e a procura incessante por terapias com foco em desempenho, sejam elas parte reconhecida das práticas psi, sejam elas pura canastrice sem nenhum fundamento científico e tampouco epistemológico pode ter sua explicação na busca por corresponder ao desempenho evocado.

Mas será que as psicologias e a tarefa do profissional psi é ou deve ser a de adaptar o sujeito? Na esteira de Foucault e do próprio código de conduta profissional do Conselho Federal de Psicologia reafirmo: não existe saber e prática que seja politicamente neutro. Com a Psicologia não é diferente. O profissional psi não deve estar na contramão da dignidade do sujeito, deve ao contrário, exercer sua práxis considerando o contexto sociopolítico no qual está inserido. Se não existe saber politicamente neutro, com a Psicologia não é diferente. Nesse sentido, não devemos temer as contundentes críticas de Foucault aos saberes psi, mas tomá-las como necessários ponto de partida para uma crítica constante, internamente, isto é, de dentro do saber e prática do qual fazemos parte. É preciso, como afirma Foucault, ter a coragem da verdade para assumir e enfrentar isso. Assumir e enfrentar isso de dentro das psicologias. A parresia, a coragem da verdade, como descrita por Foucault, nos coloca em constante risco: o mínimo risco é parecer bobo, ridículo e o máximo risco, pode ser colocar em xeque a própria credibilidade ou a própria vida. Parresia, explica Foucault, é a coragem para a correspondência entre o que se diz e o que se faz. É a coragem para assumir um posicionamento considerado ético e verbalizá-lo publicamente, sem reservas.

Como não é possível exercício ético sem coragem e como não é possível exercício da Psicologia sem posicionamento ético, mais do que isso, como não é possível exercício ético sem posicionamento político, assumo aqui o risco da coragem da verdade: é preciso que a crítica parta de nós, profissionais psi. E essa parece ser condição de sobrevivência da Psicologia.

Diante dos modos atuais de governo da subjetividade e do sofrimento psíquico emerge a necessidade da retomada ético-política da prática psi. E para isso seguem absolutamente vigentes as precauções da psicanálise: a psicanálise, além de método de investigação da subjetividade, é uma prática ética. Nesse sentido, diria Lacan: “não há razão alguma para que o psicanalista seja o fiador de ideais burgueses”. Parafraseando o mesmo Lacan, eu digo: não há razão nenhuma para fomentar os modos de funcionamento da racionalidade neoliberal. Se o objetivo do psi for contribuir com a manutenção de um status quo que reduz o indivíduo a uma máquina, a própria Psicologia deixa de ter razão de existir.

Ainda na esteira da psicanálise, retomo Winnicott, para quem a prática psicanalítica está profundamente ligada ao cuidado, a alteridade e a ética. Há uma certa tendência, me parece, a romantizar Winnicott e simplificar seu pensamento. O fato de Winnicott apresentar uma escrita clara e objetiva, pode por vezes fazer parecer que seu pensamento é simplório. Recuso aqui uma certa caricatura que se faz de sua figura: o amável pediatra, o psicanalista “fofo” etc. Mas Winnicott traz um redimensionamento da psicanálise que considero fundamental. E vai além: traz uma perspectiva ética que pode ser fundamental como instrumento de reflexão no campo ético da psicanálise da psicologia e porque não dizer, da política.

Entendo ainda que Winnicott é um teórico que traz uma dimensão importante ao estudo do sujeito: a dimensão da temporalidade, do ritmo subjetivo. Se a psicanálise antes de Winnicott e especialmente com Freud e Lacan tem seu foco no campo discursivo, na linguagem e em tudo que esta implica de fundamental e de inegável, Winnicott enfoca a dimensão do tempo enquanto campo fundamental da experiência de estar-vivo. Winnicott explica que para todas as conquistas do desenvolvimento psíquico dependemos do cuidado, do amparo fundamental; é, portanto, uma subjetividade que se constitui a partir de uma verdadeira ética do cuidado.

Aqui, para finalizar, retomo a questão da experiência do tempo: em nossa atualidade perpassada pelos dispositivos neoliberais de governo das condutas, da permeabilidade entre trabalho e vida pessoal, em suma, em nosso presente, perguntamos: De que modo vivenciamos o tempo? Como nos relacionamos com o tempo? Em última instância: a quem pertence o tempo?

É possível dizer que não há mais tempo sem utilidade, não há mais tempo pessoal, não há mais autonomia do tempo ou tempo sem dono e sem governo: estamos levando o “uso” do tempo às últimas consequências, à exaustão. E com todo esse contexto exaustivo, desgastante, o colapso é só uma questão de tempo. Além disso, se o sofrimento está se tornando algo a ser interditado, banido por esse culto a positividade, como propõe Han, precisaremos engolir o conflito, que para a psicanálise é constitutivo, inevitável.

Um mundo cada vez mais apressado não tem tempo para descanso, meditação, longas reflexões; meditar é vetado. O cansaço tende a ser cada vez mais patologizado e compreendido como fracasso. O encontro com o outro cada vez mais raro. Entendo que nesse quesito, o da retomada da escuta da dor, da aceitação do conflito enquanto constituinte do sujeito, no quesito da importância do cuidado e, portanto, da alteridade, Winnicott é mais do que um psicanalista; é um pensador que nos ajuda a repensar nossos modos atuais de constituição subjetiva. E nesse quesito é como se ele estivesse mais próximo de Foucault do que nunca, pois, da maneira como interpreto sua teoria, Winnicott propõe alguns modos de resistência ao poder: é preciso recusar a pressa e fazer o elogio do repouso, da meditação, do descanso, do encontro genuíno. É preciso recusar a subjetividade da performance e enfocar na legitimação do sujeito ético, das práticas de um outro tempo, nas práticas do cuidado.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Flávia Andrade. Suicídio e medicalização da vida – reflexões a partir de Foucault. Curitiba, CRV: 2021.

ALMEIDA, Flávia Andrade. O sujeito moderno e o mal-ser na sociedade do desamparo. Le Monde Diplomatique Brasil. Publicado em 19 de dezembro de 2019. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-sujeito-moderno-e-o-mal-ser-na-sociedade-do-desamparo/

ALMEIDA, Flávia Andrade e FREITAS, Felipe Sampaio de. Subjetividade e desamparo: um olhar winnicottiano sobre a racionalidade neoliberal. Griot: Revista de Filosofia, [S. l.], v. 21, n. 2, p. 115–131, 2021. DOI: 10.31977/grirfi.v21i2.2370. Disponível em: https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/griot/article/view/2370. Acesso em: 7 jun. 2022.

DARDOT, Pierre. & LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução Mariana Echalar. Rio de Janeiro, Boitempo, 2016.

DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo, Boitempo, 2015.

FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique : cours au Collège de France (1978-1979). Paris : Gallimard/Seuil. 2004.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução: Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: a dor hoje. Tradução: Luucas Machado. Petrópolis: Editora Vozes, 2021.

WINNICOTT, Donald Woods. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Tradução Irineo Constantino Schuch Ortiz. São Paulo, Artmed, 2007.

Flávia Andrade Almeida é psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica (USP) e Mestra em Filosofia (PUC-SP). Especialista em Psicologia da Saúde, Prevenção ao Suicídio e Psico-oncologia. Professora universitária e supervisora clínica. Pesquisadora de psicanálise e filosofia. Autora de diversos artigos e livros sobre prevenção ao suicídio, neoliberalismo e subjetividade, luto, patologização e outros temas. Escritora e autora do livro Suicídio e medicalização da vida – reflexões a partir de Foucault (Editora CRV, 2021)

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