Felipe Augusto dos Santos Ribeiro
Fonte: Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 35, n. 69, p. 233-257, jan./jun. 2015.
Resumo: Com base no estudo da “Greve do Açúcar”, ocorrida em março de 1964, às vésperas do movimento civil-militar que destituiu o presidente João Goulart, o artigo busca identificar as reivindicações dos grevistas e analisar suas principais formas de ação política em prol dessas demandas. A greve foi organizada no interior do estado do Rio de Janeiro por um sindicato de trabalhadores têxteis, após a denúncia de que armazéns da vila operária estavam estocando o produto em benefício de alguns consumidores “ilustres” e recusando a venda aos tecelões. Outros sindicatos declararam greve de solidariedade, e a greve serviu de argumento para se enquadrar o presidente do sindicato na Lei de Segurança Nacional, após os militares tomarem o poder. Ancorados no conceito de economia moral, buscaremos compreender o quanto as questões cotidianas influenciaram na adesão dos trabalhadores às mobilizações populares.
Sumário: Contra a carestia e por melhores condições de vida | O açúcar e a luta contra os “exploradores do povo” | Considerações finais | Referências
São 5 horas da madrugada de uma quinta-feira, dia 26 de março de 1964, e a jovem tecelã acorda para mais um dia de trabalho na fábrica. Levanta-se rapidamente para não “perder a hora”, afinal está há poucos meses neste emprego, obtido graças aos inúmeros pedidos de familiares que eram operários mais antigos na empresa. A concorrência foi grande pela vaga, mas por ser filha de tecelões e já residir em uma das casas da vila operária sua candidatura acabou sendo favorecida.
Antes de sair de casa para mais um dia de labuta, a tecelã faz uma pequena pausa para o café da manhã. Havia, no entanto, um inconveniente: a escassez de açúcar na mesa dos trabalhadores, devido a problemas de abastecimento e ao consequente encarecimento do produto no comércio local. Como paliativo, a tecelã (assim como boa parte dos trabalhadores vizinhos) lançou mão de um artifício bastante utilizado no período de escassez na Segunda Guerra Mundial: sua bebida matinal era preparada com caldo de cana-de-açúcar em substituição à água, como de costume. Assim, o café obtinha um sabor levemente adoçado, sendo normalmente acompanhado por alguns pães “de ontem” untados com manteiga.
Ao chegar à fábrica de tecidos – sempre uns 15 minutos antes de iniciar o expediente, pois era responsável por ligar as máquinas do seu setor – a jovem tecelã foi surpreendida pela movimentação de operários em frente ao pórtico da empresa, formando um piquete. O sindicato havia decretado greve e a ordem era que ninguém “tocasse” as máquinas. A jovem logo foi abordada por um operário mais antigo, dirigente sindical, sob a orientação de que entrasse na fábrica, fosse para o seu respectivo setor, mas permanecesse imóvel ao lado da maquinaria até “segunda ordem”. A tecelã ficou bastante perturbada, com receio de ser advertida pelo gerente, que havia conseguido esse emprego a pedido de sua família, bem como de ser acusada de “traidora” ou “fura-greve” por seus pares. A cada movimento estranho junto à maquinaria, o dirigente sindical que fiscalizava no setor a manutenção do movimento franzia a testa, com olhar de desaprovação, e socava o punho cerrado na palma da outra mão, visando dissuadir os operários que tentassem voltar ao trabalho. “Quem não fizesse greve, entrava no pau!”, recordou outra operária.
Mais tarde, todos saberiam o motivo daquela greve: a sonegação de açúcar por um comerciante local. Porém, ao contrário do que se imaginava, esse aparente despretensioso episódio “deu pano pra manga”:
Me lembro bem que teve uma época que estava faltando arroz, feijão, açúcar. Eu não sei se na época faltava mesmo ou se o pessoal escondia pra vender mais caro. Alguém foi no armazém … e queria pagar só o valor da tabela… Começou então uma grande confusão … Acabou todo mundo indo parar na delegacia de Magé…
De fato, a chamada “Greve do Açúcar” é bastante citada em depoimentos de operários, embora nem sempre registrados com o devido rigor acadêmico. As lembranças da jovem tecelã, aqui descritas, por exemplo, deixaram a zona do interdito por meio de uma conversa informal com o autor, um “bate-papo sem compromisso”, o que muito provavelmente não seria possível em uma entrevista gravada, pois para muitos operários ainda é um tabu relatar publicamente suas lembranças relacionadas ao movimento civil-militar de 1964. Particularmente, no município de Magé, estado do Rio de Janeiro, cenário estudado neste artigo, a invasão policial aos sindicatos, as prisões indiscriminadas de operários e a forte repressão que se estabeleceu desde então, permaneceram como memórias subterrâneas durante muito tempo.
Felipe Augusto dos Santos Ribeiro é Doutorando em História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV).