Será que por trás deste discurso moderno e ‘high tech’ se esconde apenas mais um mecanismo extrativista e predatório?
Tarson Núñez
Fonte: Sul 21
Data original da publicação: 02/09/2022
No dia 11 de julho o jornal britânico The Guardian publicou uma revelação bombástica, o vazamento de mais de 124 mil documentos internos da gigante de tecnologia Uber, revelando as estratégias e práticas da empresa em sua expansão pelo mundo. Os documentos, que foram vazados por Mark MacGann, ex-lobista chefe do Uber na Europa, revelam práticas eticamente questionáveis associadas à expansão mundial da empresa. Os documentos vazados se referem ao período de 2013 a 2017 quando a companhia, então dirigida por Travis Kalanick, forçava a abertura de mercados para a empresa nas cidades ao redor do mundo, mesmo que para isso precisasse passar por cima de leis e regulamentações de transporte.
Entre os milhares de documentos estão mais de 83 mil e-mails e mensagens de Whatsapp trocados pelos executivos com a direção da Uber que mostram como a empresa conseguiu ganhar apoios para a sua implantação cortejando discretamente presidentes, primeiro-ministros, bilionários, oligarcas e barões da mídia. As mensagens vazadas sugerem que os executivos da Uber tinham plena consciência acerca das ações ilegais da companhia, com um deles fazendo piada sobre como eles tinham se tornado “piratas” e outro reconhecendo “nós somos simplesmente ilegais” (“we’re just fucking illegal” no original). Em uma das mensagens, comentando os distúrbios promovidos pelos motoristas de táxi franceses, um executivo da Uber reage com espantosa franqueza: “eu acho que vale a pena, a violência nos garante o sucesso”.
As estratégias da empresa passavam por buscar (e com frequência conseguir), o apoio de governantes locais e nacionais. Entre os personagens que aparecem comprometidos com promover alterações legais em benefício da Uber encontram-se, entre outros, o presidente da França, Emanuel Macron, então ministro da fazenda, e o presidente dos Estados Unidos, o então vice-presidente Joe Biden. O primeiro aparece nas mensagens comunicando diretamente aos executivos da plataforma que já teria conseguido articular um acordo secreto dentro do governo francês para auxiliar a empresa. Já Biden, depois um encontro com Kalatnik, incluiu em seu discurso no Fórum Econômico Mundial uma referência ao CEO cuja companhia daria “a milhões de trabalhadores a liberdade de trabalhar quantas horas desejarem, e gerenciar suas vidas como quiserem”. Em ambos os casos fica evidenciada a atuação de ambos em apoio à gigante de tecnologia a partir de acordos escondidos do grande público.
Esta notícia, que evidentemente é da maior importância, sintomaticamente passou totalmente despercebida na maior parte dos órgãos da mídia corporativa nacional e internacional. Aqui no Brasil apenas o Jornal GGN deu alguma repercussão relevante. De resto, o ensurdecedor silêncio dos meios de comunicação revela o quanto a mídia corporativa também deve fazer parte dos interlocutores beneficiados pelos esforços dos lobistas da gigante tecnológica.
Mas para além de sua peculiar metodologia de implantação, que como se pode ver agora passa por romper deliberadamente com as leis, praticar lobby, comprar apoio político e influenciar governantes, é interessante refletir também sobre o impacto desta empresa nas cidades onde opera. Isto porque um olhar mais cuidadoso sobre o tema pode nos permitir reavaliar os custos e os benefícios de sua operação na nossa própria cidade do ponto de vista da mobilidade urbana. Afinal de contas, a empresa sempre foi apresentada como uma melhoria revolucionária em termos do transporte nas cidades.
Incensada nos seus inícios como exemplo de “economia colaborativa”, onde indivíduos empreendedores poderiam obter sua renda e possibilitar uma melhoria na mobilidade através de um transporte alternativo mais barato, a Uber na verdade pode ter um impacto mais negativo que positivo do ponto de vista da qualidade da vida nas cidades. Será mesmo que o Uber representa um modelo inovador, gerador de melhorias sistêmicas? Ou será que por trás deste discurso moderno e “high tech” se esconde apenas mais um mecanismo extrativista e predatório? Para fazer esta avaliação já temos, após quase uma década de funcionamento da empresa em Porto Alegre, algumas evidências empíricas para uma avaliação objetiva.
Não pretendo falar aqui da exploração do trabalho e das condições abusivas a que são obrigados a se submeter os “parceiros” da empresa. Esse assunto já foi exaustivamente tratado, tanto que hoje já se utiliza o termo “uberização” como sinônimo de precarização das relações de trabalho. A baixa remuneração, a vulnerabilidade, as jornadas de trabalho de 16 horas, o stress e a pressão são realidades por demais conhecidas e dispensam hoje um tratamento mais detalhado. Mas o Uber revela também muito do seu lado daninho quando se trata do tema da mobilidade urbana.
Quando foi lançado o aplicativo, a empresa era apresentada como uma novidade revolucionária, disruptiva, capaz promover uma melhoria espantosa aos transportes nas cidades. Seu desenho e forma de atuar ajudariam a resolver nossos problemas, contribuindo para modernizar o sistema de mobilidade urbana. A empresa seria um exemplo de “economia colaborativa”, trazendo inovação e gerando de melhorias sistêmicas. A realidade não poderia ser mais distinta. Uber é certamente uma empresa disruptiva, um adjetivo que adquire conotações positivas no jargão do jornalismo moderninho, mas que de certa forma representa bem os impactos da empresa na cidade. Disruptivo é aquilo que rompe com o equilíbrio de uma situação, rompendo com a dinâmica anterior e abrindo caminho para uma nova realidade. Mas esta nova realidade não necessariamente significa uma situação melhor do que a inicial.
Para começar, vamos olhar com mais rigor para as evidências e analisar com um pouco mais de rigor os impactos do Uber na mobilidade urbana da cidade. A primeira constatação é de que a entrada do aplicativo de fato contribuiu foi para a fragilização do sistema de transporte público da cidade. Os táxis foram quase extintos, o sistema de táxi-lotação (que era acessível e eficiente) foi desestruturado, com muitas linhas sendo eliminadas. E até mesmo os ônibus sofreram com a concorrência, no momento em que duas ou três pessoas podiam com vantagem deixar de andar de ônibus e optar pelo aplicativo. É claro que há outros fatores que incidem sobre a crise no sistema de transporte público da cidade, especialmente o empobrecimento da população. Mas é inegável também que o Uber tem uma parte importante nesta crise. Sua presença aprofundou a crise que já estava instalada, levando o sistema a uma crise terminal.
O segundo impacto foi sobre a mobilidade urbana. O discurso “oficial” sobre o Uber, certamente influenciado pelas polpudas verbas em publicidade da empresa, era de que a presença do aplicativo iria “tirar muitos automóveis das ruas”, contribuindo com a melhoria dos fluxos de trânsito. Na vida real o que se assistiu foi o aumento de carros, tanto dos milhares de novos “colaboradores” que passaram a usar seu carro como instrumento de trabalho como dos milhares de carros locados que passaram a fazer parte da frota que circula diariamente pela cidade. Em outras palavras, do ponto de vista da mobilidade urbana em termos do número de veículos circulando, a presença do Uber mais atrapalhou do que ajudou, aumentando o número de carros individuais no trânsito ao mesmo tempo em que os modais coletivos perderam espaço. O Uber, portanto, contribuiu para engarrafar ainda mais nossas vias já tão saturadas.
Uma terceira questão é que o Uber tampouco parece pagar um montante de impostos que tenha relação com os lucros que aufere. Tanto quanto se pode perceber, a conta é paga com cartão de crédito, numa transação direta entre o cliente e a empresa. Nada disso é transparente nem sofre qualquer tipo de fiscalização do poder público. Neste contexto seria interessante questionar acerca da relação entre os lucros auferidos pela empresa e a correta arrecadação de tributos para o poder público municipal. É uma receita que poderia contribuir de maneira significativa para ajudar a financiar a educação, a saúde e outros serviços municipais. Então quando um usuário argumenta, em favor do aplicativo, que ele é bom porque “é mais barato”, sempre é bom refletir que este preço mais barato se reverte também em menos arrecadação municipal e, portanto, piores serviços públicos municipais.
Isso nos leva a um último, e mais importante, aspecto da presença do Uber em uma cidade, a de ser um mecanismo extrativista que transfere renda de forma direta da cidade para o exterior. O dinheiro pago ao motorista de táxi, ou da lotação e mesmo dos ônibus será quase integralmente revertido na compra de produtos e serviços locais. O motorista vai gastar seus ganhos no supermercado da sua vizinhança, vai almoçar em algum restaurante, pagar seu aluguel, etc… movimentando a economia da cidade. Já em relação ao dinheiro pago ao aplicativo, pelo menos um quarto dele vai diretamente para a empresa em San Francisco, nos Estados Unidos.
Esta constatação nos possibilita estabelecer uma estimativa dessa transferência de recursos. Supondo-se que fossem 10.000 “colaboradores” do Uber na cidade. Esta é uma cifra conservadora, uma vez que as estimativas de motoristas do aplicativo giram em torno de quase 40.000. Mas, para efeito desta simulação, vamos ficar em um número menor, apenas para fim deste exercício. Se cada um destes motoristas fizer dez corridas por dia, com um preço médio de 15 reais, podemos estimar o faturamento diário da empresa na cidade: 10.000 motoristas x 10 corridas x R$ 15,00 = R$ 1.500.000. Sete dias da semana teremos R$ 10. 500.000, em um mês são R$ 45.000.000. Esta seria, portanto, uma estimativa conservadora do faturamento da empresa, 45 milhões de reais por mês.
Considerando-se que pelo menos 25% desta receita vai para a plataforma, teríamos então uma evasão mensal de R$ 11.250.000, que saem da cidade para os cofres da Uber. Em um ano são R$ 135 milhões. Se considerarmos que a Uber opera na cidade desde o início de 2016, teremos a constatação de que desde então pelo menos R$ 888.750.000 foram drenados da economia local para a economia norte-americana, quase um bilhão de reais! Se este cálculo fosse baseado nas estimativas da existência de 40 mil motoristas na plataforma, este valor seria superior a R$ 3,5 bilhões.
Em outras palavras, os métodos ilegais e violentos revelados pelo vazamento dos chamados Uber Files estavam a serviço de um modelo predatório que mais prejudica do que beneficia a mobilidade urbana nas cidades. A empresa, que em sua página institucional afirma que “trabalhamos para melhorar a mobilidade das pessoas em todo o mundo” se revela uma tecnologia predatória e extrativista. O modelo “disruptivo” de negócios, serviu muito mais para o enriquecimento dos seus proprietários do que para efetivamente melhorar os transportes nos ambientes urbanos.
Não por acaso, a divulgação dos vazamentos dos documentos internos da Uber foi imediatamente sucedida por um crescimento da já enorme presença da publicidade da empresa nos meios de comunicação e nas redes sociais. Novas postagens do Facebook, propagandas da plataforma nas transmissões de jogos de futebol, publicidade nos jornais se amplificaram nas últimas semanas. E, sintomaticamente, as revelações tornadas públicas por Mark MacGann vem passando despercebidas, virtualmente invisíveis para a opinião pública. Bem-vindos ao Admirável Mundo Novo!
Tarson Núñez é doutor em Ciência Política pela UFRGS