Trabalho, emprego, precariedade: dimensões conceituais em debate

Francisco Beckenkamp Vargas

Fonte: Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 77, p. 313-331, maio/ago. 2016.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo discutir conceitualmente a noção de precariedade do trabalho, tendo em vista que ela é amplamente utilizada na sociologia, sem que um significado preciso seja formulado. Propõe-se uma abordagem relacional e construtivista, que procura articular as condições objetivas e subjetivas de produção do fenômeno em questão. Para tanto, parte-se do debate sobre o conceito de trabalho, a fim de melhor definir em que consiste sua precariedade. Argumenta-se, igualmente, a necessidade de situar esse debate no âmbito de quadros teóricos mais amplos de interpretação sociológica. Identificam-se duas dimensões cruciais na análise da precariedade do trabalho, a relação de emprego ou trabalho e a atividade laboral propriamente dita, discutindo-se exemplarmente as perspectivas teóricas de dois autores franceses especialmente interessados nesse tema: Robert Castel e Serge Paugam. Finalmente, discutem-se algumas implicações desse debate para a realidade brasileira, sustentando-se a importância de dar um tratamento multidimensional ao fenômeno.

Sumário: Introdução | Aproximações conceituais: as dimensões do trabalho | O trabalho, a precariedade e os quadros sociológicos clássicos de referência | A emergência da precarização do trabalho como problemática sociológica | Notas sobre a precariedade do trabalho no Brasil | Conclusões | Referências

Introdução

A precariedade do trabalho tem sido um tema amplamente discutido no âmbito recente da sociologia do trabalho. Apesar de sua persistente presença no debate e no discurso científicos, o uso dessa noção nem sempre vem acompanhado de tentativas sistemáticas de defini-la e delimitá-la precisamente.

Ao defini-la como uma atividade com fins econômicos exercida em condições que colocam aqueles que a realizam em uma situação de risco, vulnerabilidade ou degradação, a precariedade do trabalho pode ser identificada tanto a partir do estatuto social do emprego ou ocupação, implicando certo nível de reconhecimento social, como a partir das condições objetivas e subjetivas de exercício do trabalho propriamente dito. Em relação ao primeiro aspecto, trata-se de identificar a maneira como o trabalho se inscreve no mundo e nas relações sociais. Em relação ao segundo, trata-se de identificar o trabalho como um conjunto de atividades realizadas tanto em condições objetivas particulares (local e ambiente de trabalho, meios e instrumentos de trabalho, organização do trabalho, etc.) como em condições subjetivas que mobilizam a consciência e supõem a experiência daqueles que o realizam.

À medida que está em jogo um conjunto muito amplo de dimensões e fatores, pode-se afirmar que uma definição qualquer da precariedade do trabalho supõe a seleção e hierarquização de critérios considerados relevantes. Tais critérios, porém, não se impõem de antemão, não estão dados natural e objetivamente a um observador. Eles supõem um quadro de referência que define sua relevância e pertinência, estabelece suas relações com outras dimensões ou fatores da realidade social, enfim, fixa um esquema interpretativo. No âmbito da sociologia, a definição da precariedade do trabalho pode privilegiar sejam as condições objetivas do trabalho, sejam suas condições subjetivas, seja ainda uma complexa interação entre ambas. Ela pode supor, ainda, um quadro de referência que focalize sejam as dimensões estruturais mais gerais do fenômeno, sejam as dimensões relativas à ação e à representação dos atores individuais ou coletivos em suas circunstâncias concretas de existência.

Nesses termos, propõe-se, neste artigo, uma abordagem ao mesmo tempo relacional e construtivista da precariedade do trabalho. Nela, não se trata de estabelecer, a priori, uma definição objetiva e exaustiva do fenômeno. Trata-se, num primeiro momento, de explorá-lo conceitualmente em seus contornos, na qualidade de um procedimento essencialmente heurístico, para, em seguida, reconhecê-lo e tratá-lo como uma “categoria social”, que é o produto da construção social e histórica de atores e sujeitos situados em suas relações sociais. Sendo uma construção social relacional, essa categoria pode implicar diversas maneiras de defini-la e de relacioná-la com outras dimensões da vida social, segundo o ponto de vista, os interesses e os valores desses atores sociais.

Como hipótese teórica, sugere-se que, na investigação sociológica, na medida em que prevalecem abordagens mais estruturais que privilegiam algumas dimensões específicas da precariedade do trabalho, particularmente aquelas relacionadas com a deterioração do estatuto do emprego, corre-se o risco de subestimar a extensão e a profundidade do fenômeno, particularmente no Brasil, onde uma velha precariedade estrutural do trabalho é muito forte. Daí a importância de se levar mais insistentemente em consideração a dimensão do trabalho propriamente dito, como atividade dotada de sentido. Considera-se, ainda, que se corre o risco de subestimar a precariedade do trabalho se não se levar suficientemente em consideração sua condição de categoria subjetiva, isto é, como construção social dos trabalhadores inscritos em um contexto social e profissional ou ocupacional particular.

Este artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, procura-se propor e explorar conceitualmente as diversas dimensões do trabalho como objeto teórico de investigação. Reconhecendo os limites de tal abordagem puramente conceitual, sugere-se, em seguida, na segunda parte, a necessidade de identificar quadros teórico-sociológicos de referência a partir dos quais a precariedade do trabalho é socialmente situada e explicada. Exploram-se, nesse particular, as perspectivas sociológicas dos autores clássicos da sociologia. Na terceira parte, procura-se identificar duas dimensões fundamentais da precariedade do trabalho a partir da contribuição teórica de dois autores franceses, Castel (2001, 2009) e Paugam (2000, 2008). Na quarta e última parte deste artigo, procura-se explorar conceitualmente as particularidades desse fenômeno no Brasil, onde uma velha precariedade estrutural do trabalho se combina com uma nova precarização do trabalho. Para isso, propõe-se a mobilização das dimensões analíticas identificadas anteriormente.

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Francisco Beckenkamp Vargas é Doutor em Sociologia. Pós-doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor associado do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política – IFISP da Universidade Federal de Pelotas, atuando no ensino da sociologia, sociologia do trabalho, teoria sociológica clássica e metodologia da pesquisa social. Integra os Grupos de Pesquisa “Trabalho e trabalhadores: identidades, desigualdades e transformações sociais” (UFPel) e “Núcleo de Estudos Urbanos – NAU” (FURG), desenvolvendo suas pesquisas sobre os temas emprego e desenvolvimento, desemprego e análise de trajetórias de trabalhadores, trabalho e relações de gênero, mercado de trabalho, políticas públicas de emprego e precariedade do trabalho no Brasil. Atualmente coordena o Observatório Social do Trabalho da UFPel.

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