Trabalho digital remoto em plataformas de microtrabalho: uma visada comunicacional

A necessidade de uma legislação protetiva aos trabalhadores de plataforma que trate da relação de emprego, da jornada de trabalho, salário mínimo, tempo de descanso e outros aspectos,  impõe-se.

Rafael Rodrigues da Costa e Naiana Rodrigues da Silva

Fonte: DDF
Data original da publicação: 14/11/2022

Estima-se que cerca de 1,5 milhão de pessoas no Brasil trabalhem por meio de plataformas digitais, o que representa 1,6% de todos os trabalhadores do país (MACHADO; ZANONI, 2022). Esse é um contingente que se encontra em constante crescimento em face dos avanços neoliberais na economia, da (des)regulamentação do trabalho no Brasil e das implicações sociais da pandemia da Covid-19. O confinamento imposto pela pandemia, sobretudo em 2020, parece ter delimitado uma nova etapa do que podemos denominar de trabalho plataformizado (GROHMANN, 2020). Motivada pelo recrudescimento do desemprego e do desalento, essa guinada se traduziu concretamente na sujeição de grande número de pessoas a condições de trabalho determinadas pelas plataformas e também na concentração de trabalhadores em determinadas tarefas — como as entregas por aplicativos ou as atividades de microtrabalho.

A inevitabilidade da mediação proporcionada por tecnologias digitais para a realização de atividades de trabalho se consolidou em diversas áreas da atividade humana. As plataformas digitais, a pretexto de facilitarem relações interpessoais, têm se revelado suficientemente capazes de reorganizar o tempo e o espaço das práticas laborais, instituindo uma lógica própria na qual os dados dos usuários são convertidos numa forma de valor. O impacto dessa expansão se faz sentir no âmbito na empregabilidade, no imaginário sobre o trabalho e também na regulação jurídica.

Esse processo de plataformização do trabalho tem sido interpretado tanto a partir de uma chave otimista, que busca positivar um discurso do empreendedorismo, da autonomia, liberdade e flexibilidade do trabalho, como também — ponto de vista ao qual nos subscrevemos neste texto — por meio de uma visada mais crítica, que aponte as contradições e as precariedades daquela modalidade de ocupação. Nesse sentido, o presente texto tem como objetivo debater sobre o trabalho digital remoto online em plataformas, considerando, com mais detalhes, a anatomia do microtrabalho, em especial aquele realizado na plataforma Clickworker, operada pela Microsoft.

Metodologicamente, este trabalho se caracteriza como um estudo qualitativo, alicerçado em pesquisa bibliográfica, cotejando discussões acadêmicas de referência para a compreensão do fenômeno do trabalho remoto e do microtrabalho; e documental, o que inclui observação da plataforma Clickworker, em que se podem realizar tarefas de microtrabalho. O estudo também tece considerações sobre o trabalho de comunicadores, em especial jornalistas, em meio a esse cenário, dada a essencialidade da prática jornalística para a garantia do Estado Democrático de Direito.

Trabalho remoto e microtrabalho

Em maio de 2021, a 5ª turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) deliberou que não existe relação de emprego entre a plataforma Uber e os motoristas que nela atuam no Brasil (SENRA, 2021). Essa decisão ilustra como novas configurações da realidade concreta do mundo do trabalho têm sido normalizadas num país com altos índices de desigualdade e desemprego. Aspectos como a generalização de trabalho por demanda (just in time), cerne do modelo de negócio de empresas como a Uber, são sintomáticos das formas assumidas pelo capital para extração de valor em contextos fortemente mediados pelas tecnologias em rede. A isso, somam-se outros elementos que incidem sobre as atividades de trabalho como um todo, a exemplo da flexibilização de contratos, a ampliação de vínculos de natureza parcial ou de prestação de serviços e a gradual redução das garantias sociais ofertadas aos trabalhadores (BARROS et al, 2021; ABÍLIO, 2020).

Em face de tal conjuntura, as plataformas assumem um papel central para mediar, a partir das suas lógicas de obtenção e tratamento algorítmico de dados, não apenas o trabalho, mas uma série de atividades humanas. Não à toa, Poell, Nieborg e Van Dijck (2020, p. 2) definem plataformização como um processo de “penetração de infraestruturas, processos econômicos e estruturas governamentais das plataformas digitais em diferentes setores econômicos e esferas da vida”. Casilli e Posada (2019), por sua vez, propõem, que o processo de plataformização também incide sobre o mundo do trabalho. Nesse sentido, Grohmann (2020, p. 112) concebe a plataformização do trabalho como

a dependência que trabalhadores e consumidores passam a ter das plataformas digitais – com suas lógicas algorítmicas, dataficadas e financeirizadas – em meio a mudanças que envolvem a intensificação da flexibilização de relações e contratos de trabalho e o imperativo de uma racionalidade empreendedora (DARDOT; LAVAL, 2016) como vias de justificação dos modos de ser e aparecer do capital.

A dependência descrita por Grohmann suscita implicações no mínimo ambivalentes para os sujeitos em atividade de trabalho. A primeira edição do relatório do projeto Fairwork no Brasil (FAIRWORK, 2021) mostra que as maiores plataformas atuantes no Brasil (Ifood, 99, Uber, Get Ninjas, Rappi e Uber Eats) falharam em garantir direitos trabalhistas básicos para seus trabalhadores, tais como remuneração, condições de trabalho e contratos justos para essas pessoas — apenas no setor de entregas, eram 278 mil trabalhadores conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), relativos a 2021.

Tais constatações sugerem que a inserção das plataformas nas atividades de trabalho não é um processo uniforme, tampouco consensual. Enquanto as investigações do campo apontam uma variedade de tipos de plataforma de trabalho —  desde aquelas que requerem a presença ou deslocamento físico do trabalhador, como as plataformas de entrega, até aquelas de microtrabalho ou macrotrabalho, em que os sujeitos são remunerados por tarefas em geral realizadas num ambiente digital controlado (GROHMANN, 2020) — são também diversas as possibilidades de trabalho nas plataformas, considerando que os trabalhadores podem depender mais ou menos dessas infraestruturas, em razão do tipo de trabalho realizado.

A reforma trabalhista aprovada no Brasil em 2017 introduziu na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) um capítulo referente ao teletrabalho ou trabalho remoto — também denominado de home office. A legislação define o teletrabalho como a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação, desde que não se configurem como trabalho externo (BRASIL, 2017). Apesar do ordenamento jurídico prever dispositivos para a garantia de direitos dos cidadãos nessa modalidade de trabalho, são muitos os tensionamentos e novos riscos perceptíveis no trabalho remoto, tais como o custeio de infraestrutura para a realização de atividades, o controle de jornada, a promoção da saúde do trabalhador, entre outras questões.

A necessidade de distanciamento social instaurada pela pandemia da Covid-19 transformou as casas de muitos trabalhadores em estações de trabalho remoto ou híbrido. Segundo o Perfil do Jornalista Brasileiro 2021, 61,3% dos jornalistas executaram sua atividade principal em casa nos seis meses anteriores ao período de aplicação da pesquisa, que ocorreu entre agosto e outubro de 2021 (LIMA, 2021). Com isso, incertezas, perigos e novas demandas entraram na agenda dos trabalhadores, empresas e instituições.

Não menos importante, a interseção entre trabalho e pandemia reiterou as desigualdades do tecido social brasileiro. Goes et al (2020) destacam, por exemplo, que a população negra representa a maioria dos casos e mortes de Covid-19 em diversas localidades, contudo são a população menos testada. A propósito da pandemia nos EUA, Laster Pirtle (2021), por sua vez, apresenta a proposição de um capitalismo racial como causa fundamental das desigualdades raciais e socioeconômicas dentro da pandemia de coronavírus naquele país.

Confrontados com esse cenário, muitos profissionais da comunicação, em face da essencialidade de seu trabalho, enfrentaram toda sorte de desafios para seguir cumprindo suas atividades. Para Fígaro et al (2021), a pandemia representou a radicalização de transformações produtivas que já se insinuam no horizonte do trabalho desde o final dos anos de 1990, intensificando os danos ao tempo de vida e à saúde emocional dos trabalhadores. Nesse sentido, o trabalho remoto e a dependência das plataformas digitais para a realização das atividades de trabalho ganharam espaço em 2020 e 2021, convivendo com a manutenção de trabalhadores, entre eles jornalistas, na linha de frente da obtenção de informações sobre a pandemia. A Federação Nacional dos Jornalistas contabilizou, até março de 2022, 314 mortes de jornalistas durante a pandemia, o que representa uma morte a cada dois dias (FENAJ, 2022).

A investigação do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT/USP) acerca dos impactos da pandemia no trabalho de comunicadores (FÍGARO et al, 2021) oferece nuances quantitativas e qualitativas para o entendimento do trabalho em home office. O estudo destaca a ambivalência dessa modalidade de trabalho, bem como os fortes impactos que a realização de atividades laborais em ambientes domésticos tiveram nos trabalhadores, com ênfase nas mulheres. Solon et al (2020) e pesquisa realizada pela Fenaj em 2020 revelam o fenômeno da invisibilização da sobrecarga de gênero, que penaliza, em especial, mulheres que são mães e se submetem a condições de trabalho abusivas e adoecedoras, comumente somadas ao acompanhamento escolar dos filhos e à manutenção dos afazeres domésticos.

O trabalho em home office foi incorporado às rotinas de uma quantidade expressiva de profissionais da comunicação, conforme a referida pesquisa. Por volta de 62% de jornalistas respondentes à pesquisa do Perfil do Jornalista Brasileiro que afirmam ter trabalhado em home office nos seis meses anteriores à aplicação da pesquisa (que ocorreu entre agosto e outubro de 2021). Como consequência, podemos citar o aumento da intensidade da carga de trabalho, a ampliação de despesas financeiras com o exercício profissional e os adoecimentos físicos e mentais — ansiedade, esgotamento mental e problemas com sono foram os mais recorrentes, de acordo com os respondentes da pesquisa.

Além desses problemas inerentes a muitas situações de atividade profissional efetivadas remotamente, não apenas àquelas pertinentes a trabalhadores de comunicação, o chamado microtrabalho (também nomeado de cloudwork ou web-based) possui peculiaridades que o singularizam perante outras formas de trabalho digital. Amparadas em pesquisa do Bureau Internacional do Trabalho (BIT), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre trabalho em plataformas digitais (BERG et al, 2019), Rosenfeld e Mossi (2020) situam o microtrabalho como um tipo de trabalho por plataformas que se caracteriza por atividades pulverizadas em pequenas tarefas e atribuídas a uma massa de trabalhadores a domicílio por meio de plataformas digitais. Em geral, essas tarefas possuem remuneração muito baixa e a adesão de trabalhadores a elas é concebida como colaboração, não resultando em vínculo trabalhista.

Por sua vez, o estudo “O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil”, coordenado pela Clínica Direito do Trabalho da Universidade Federal do Paraná (MACHADO; ZANONI, 2022) acrescenta que o microtrabalho é uma modalidade de trabalho digital que não exige altos níveis de qualificação ou experiência, compreendendo tarefas parceladas que equivalem a uma pequena parte de um todo, sendo completada em segundos ou minutos. As tarefas podem estar relacionadas à transcrição, identificação de imagens para treinamento de inteligência artificial, moderação de conteúdo, respostas a um survey, entre outras, em geral a serviço da melhoria de sistemas de inteligência artificial e afins, de propriedade de empresas transnacionais de tecnologia, como Amazon ou Microsoft. Ressalte-se que várias dessas tarefas demandam habilidades pertinentes a atividades de comunicação; contudo, são delegadas a trabalhadores sem tal expertise.

No Brasil, esse tipo de trabalhador digital representa cerca de 7% do total de trabalhadores digitais no país, aproximadamente 100 mil pessoas. Os 93% restantes, ou cerca de 1,3 milhão de pessoas, são trabalhadores classificados como location-based, ou baseados em locais. Fazem parte desse grupo os entregadores por aplicativos e outros trabalhadores cuja atividade depende de uma circunscrição geográfica. A despeito da baixa exigência de especialização, os microtrabalhadores brasileiros possuem, em muitos casos, formação superior ou pós-graduação, sugerindo haver uma insuficiência de renda nas profissões em que atuam, além de aludir ao fato de que muitas plataformas de microtrabalho adotam a língua inglesa em suas interfaces, o que pode explicar a permanência de trabalhadores com maior nível de instrução formal. Em diálogo com esse dado, 47,3% dos trabalhadores de plataformas de microtrabalho que responderam à pesquisa da UFPR declaram ter no trabalho por plataformas uma fonte de renda complementar.

Para a maioria desse universo de trabalhadores, a participação em instâncias de representação coletiva, como sindicatos ou associações de classe, é importante, o que nos sugere que, a despeito de novas configurações de trabalho, em geral mais precárias, as iniciativas de proteção social são percebidas como necessárias. Enquanto 37,6% dos microtrabalhadores consideram a filiação a organismos coletivos desimportante, 20,6% dos trabalhadores baseados em locações negam a importância desse tipo de vínculo. Estes resultados foram obtidos a partir de aplicação de questionário, por parte dos pesquisadores da UFPR, num universo de 492 respondentes.

Atuando num vácuo de regulamentação em muitos países, as plataformas de trabalho digital têm sido pouco efetivas na garantia de direitos mínimos a seus trabalhadores. Como demonstra o relatório “Classificação das plataformas de cloudwork – Fairwork 2022” (FAIRWORK, 2022), nenhuma plataforma de microtrabalho, em âmbito global, está sequer próxima de assegurar padrões básicos de trabalho decente. Na pesquisa, foram estudadas 15 plataformas de cloudwork. São considerados princípios de trabalho decente, para o projeto Fairwork[1]: pagamento justo, condições de trabalho justas, contratos justos, gestão justa e representação justa.

O levantamento com trabalhadores das plataformas estudadas revelou que, em média, trabalhadores passaram 8h30 por semana realizando tarefas pelas quais não receberam nada. Isso inclui a busca por clientes e por tarefas, o aperfeiçoamento dos perfis, a participação de “competições” para tentar obter um trabalho ou o diálogo com clientes que solicitam muitas mudanças. O estudo mostrou ainda que cerca de um terço de todos os trabalhadores viveram situações em que não receberam por uma tarefa que entregaram. É a essa engrenagem injusta a que se submetem milhares de trabalhadores no Brasil, premidos tanto pelas dificuldades de obtenção de vínculos formais de trabalho como pela racionalidade empreendedora de si formatada e naturalizada no seio do neoliberalismo.

Clickworker: anatomia de uma plataforma de microtrabalho

Uma das plataformas de microtrabalho observadas na pesquisa do projeto Fairwork, assim como no relatório do Bureau Internacional do Trabalho (BERG et al, 2019), é a Clickworker. Em sua página web de autoapresentação (CLICKWORKER, 2022a), em língua inglesa, alemã ou francesa, a plataforma se intitula como “um provedor de serviços completos que oferece [a empresas] soluções padrão e personalizadas para a implementação de projetos orientados a dados”. Conforme explica a plataforma, esses projetos são automaticamente divididos em microtrabalhos e processados por “clickworkers qualificados oriundos da multidão”.

Em meio a uma iconografia clean, que remete ao mundo corporativo, e a imagens de pessoas brancas em cenários bucólicos, a plataforma nomeia como freelancers os trabalhadores ali cadastrados. “Cada um de nossos usuários registrados nos confiou vários detalhes sobre sua pessoa e habilidades, a fim de oferecer pequenos trabalhos on-line para processamento no local de trabalho de nossa plataforma” (CLICKWORKER, 2022b). Em setembro de 2022, a Clickworker afirmava contar com 3,6 milhões de trabalhadores realizando tarefas em sua plataforma, dos quais 7% estão na América do Sul. No Brasil, conforme a estimativa da Clínica Direito do Trabalho da UFPR, cerca de três mil trabalhadores estavam registrados na plataforma no trimestre junho/julho/agosto de 2021, o que a colocava como a terceira mais utilizada por microtrabalhadores no país.

Entre os serviços oferecidos pela Clickworker, está o chamado copywriting (por exemplo, criação de texto para optimização de motores de busca), pesquisa na internet, categorização e etiquetagem (por exemplo, de imagens), pesquisas, criação de dados para inteligência artificial e gestão de dados (por exemplo, identificação das características do produto). As tarefas podem ser realizadas por meio de um site ou ainda através de aplicativo próprio, o que permite às empresas contratantes dos serviços monitorar “campanhas de marca” ou recolher ou verificar os geodados no terreno (BERG et al, 2019, p. 16).

A concordância com os termos de serviço da plataforma, o que inclui a adesão a um estrito acordo de confidencialidade sobre os dados acessados nas tarefas, é o requisito primordial a execução das tarefas. Para a realização de determinadas atividades, o trabalhador também deverá passar por avaliações, que podem consistir em testes online para verificação das habilidades consideradas necessárias à realização das atividades. Um exemplo é o teste necessário para ingressar em um dos módulos da plataforma, o Universal Human Relevance System (UHRS), que permite executar diversas tarefas destinadas ao aperfeiçoamento dos sistemas da Microsoft. A avaliação simula tarefas presentes no UHRS e requer conhecimentos básicos de língua inglesa para sua realização.

Na interface do trabalhador cadastrado, há um menu que disponibiliza, entre outras funcionalidades, os trabalhos disponíveis. Durante o período de observação realizada por um dos autores deste texto, desde maio de 2021 até o momento da escrita deste texto (setembro de 2022), os trabalhos disponíveis eram de duas naturezas: pesquisas de opinião demandadas por empresas e instituições diversas e tarefas da UHRS (anotação de imagens, vídeos e textos, calibração de mecanismos de busca, transcrições, entre outras).

As pesquisas de opinião tratam de temas diversos, mas em geral se concentram em hábitos de consumo e identificação de interesse de aquisição de produtos. A remuneração prometida para cada pesquisa respondida é variável, em geral oscilando entre 20 centavos de dólar (ou cerca de 1 real) a 70 centavos de dólar (R$ 3,50). Corroborando com as pesquisas que apontam haver grande quantidade de trabalho não-remunerado, boa parte dos questionários acessados durante o período de observação não puderam ser concluídos, sob a alegação de que o respondente não se adequava ao perfil desejado ou por haver uma grande quantidade de respostas já coletadas num dado perfil de respondente. Nesses casos, o respondente não recebe qualquer remuneração, mesmo que tenha respondido parcialmente o questionário. Para tentar driblar os riscos da ausência de tarefas não-remuneradas, uma respondente da pesquisa da UFPR afirma trabalhar no turno da madrugada, de modo a evitar a concorrência dos trabalhadores indianos, presentes em grande número na plataforma.

Por sua vez, as tarefas da UHRS envolvem remunerações diversas em tarefas de naturezas e complexidade bastante distintas, que podem ser cumpridas em sessões de até 8 horas contínuas. A remuneração varia entre menos de um centavo de dólar até algo próximo de um dólar por tarefa. As atividades possuem um guia de realização, em geral na forma de um documento tutorial, além de disponibilizar uma visualização prévia da tarefa, bem como uma fase de treinamento, cujo transcurso é necessário para que se obtenha ganhos com a tarefa.

Não raro, as tarefas mobilizam conhecimentos culturais específicos de certas regiões, como o sistema de código postal dos EUA em tarefas de calibração de buscas, ou eventualmente envolvem conhecimentos especializados, tais como atividades que demandam juízos sobre conteúdos jornalísticos, como manchetes ou títulos, a partir de critérios como relevância. O julgamento de conteúdos tidos sensíveis, por sua vez, coloca em questão diferenças culturais entre regiões onde as tarefas são elaboradas e aquelas nas quais são executadas. O que fica evidente é a discrepância entre a complexidade de certas tarefas e o valor atribuído à sua execução, sendo esse apenas um dos problemas verificados pelos estudos mencionados neste texto.

A Clickworker obteve, na avaliação realizada pelo projeto Fairwork, 2 pontos, num total de 10 possíveis, no que concerne aos parâmetros de trabalho decente. Os itens nos quais a plataforma pontuou foram a existência de políticas que estipulam como devem ocorrer as ações disciplinares contra trabalhadores (eixo de gestão justa) e a existência de compromisso no sentido de reconhecer a prerrogativa de organização coletiva dos trabalhadores (eixo de representação justa). Um resultado que nos diz da profunda contradição entre a aparente ênfase nas pessoas — o motor, personificado em milhões de trabalhadores, de plataformas como essa — e o muito concreto descaso com normativas mínimas de respeito à integridade das pessoas.

Considerações finais

Este texto é um esforço para dimensionar, em mínimas bases conceituais e empíricas, o fenômeno do microtrabalho, aqui situado no âmbito do trabalho digital realizado de maneira remota. Diante das evidências aqui cotejadas, a partir de pesquisas de escopo global e local (BERG et al, 2019; FAIRWORK, 2022; MACHADO; ZANONI, 2022) sobre essa modalidade de trabalho, pode-se qualificar o microtrabalho como majoritariamente aviltante para o trabalhador. A começar pela própria condição de trabalhador muitas vezes não reconhecida pelas plataformas, passando por condições de atividade injustas e ausência de garantias sociais, tal regime de trabalho ainda escapa às — ainda tímidas, no Brasil — tentativas de regulamentação.

São muitos os desafios, colocados para múltiplos atores sociais, para garantir dignidade ao trabalhador digital, seja em escala global, seja considerando a realidade brasileira. Em nosso país, a conjuntura política, jurídica e social tem agravado ou acelerado a relação de dependência de trabalhadores a plataformas digitais, em especial aquelas cuja exigência de especialização é baixa. A Organização Internacional do Trabalho enumera, entre os problemas verificados nas plataformas de trabalho digital, descrições de tarefas que nem sempre correspondem ao trabalho a ser realizado; insuficiência de tempo para realização de tarefas; ausência de justificativa para o não pagamento de tarefas; impossibilidade de comunicação direta entre trabalhador e cliente; pouca transparência nos processos de avaliação dos trabalhadores, entre diversos outros itens.

Por sua vez, a despeito do desempenho pífio das plataformas de microtrabalho em sua avaliação, o Fairwork aponta que muitas plataformas vêm adotando mudanças para melhorar as condições de trabalho, como medidas para reduzir a incidência de trabalho não-pago por clientes, aperfeiçoamento de contratos e sistemas de mediação de conflitos e procedimentos. Já a OIT sintetiza em 18 recomendações as possibilidades de garantir jornadas mais justas aos trabalhadores de plataformas, em eixos como a ampliação da representação e participação política dos trabalhadores, a garantia de políticas de remuneração mais justas e a consolidação de meios para prevenir tratamentos abusivos direcionados aos microtrabalhadores.

A necessidade de uma legislação protetiva a esses trabalhadores, que trate da relação de emprego, da jornada de trabalho, salário mínimo, tempo de descanso e outros aspectos,  também se impõe, configurando uma agenda para dar conta do mínimo: o direito à a dignidade humana num cenário em que a sua ausência é tomada, enganosamente, como expressão de um livre-arbítrio dos “patrões de si mesmos”. Que não restem dúvidas: aqui, quem dá as cartas é o capital.

Referências

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Rafael Rodrigues da Costa é professor do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Linguística pela UFC. Pesquisador do Grupo de Pesquisa PráxisJor da UFC.

Naiana Rodrigues da Silva é professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará. Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da USP.

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