Ser um direitista em um ambiente algoritmizado é a prova da miséria desse novo tempo capitalista. Acreditam que não possuem chefe pois não é possível vê-lo, já que esse é um “gestor” imaterial sob a forma de algoritmo, e que são livres mesmo sem perceber os grilhões virtuais que os prendem.
Herbert Salles
Fonte: Le Monde Diplomatique
Data original da publicação: 15/03/2024
Uma pesquisa encomendada pelas empresas Uber e iFood trouxe um panorama a respeito do perfil ideológico dos trabalhadores nesses aplicativos em que é possível observar que 40% dos entrevistados se identificam com a direita ou extrema-direita, enquanto apenas 20% se consideram de esquerda. É necessário refletir o porquê desse nível de engajamento pela direita entre os profissionais que atuam nessas plataformas digitais e como construir um modelo que seja capaz de proteger os trabalhadores da precarização do trabalho algoritmizado.
Em um primeiro momento, é necessário compreender a razão dessa pesquisa. Há algum tempo tanto a Uber como o iFood iniciaram uma guerra contra as possíveis leis de regulamentação do trabalho por aplicativo. Tanto que, desde 2023 algumas pesquisas foram encomendadas e divulgadas pelas empresas. Em todos os casos, há uma ideia central de que qualquer lei favorável ao trabalhador de aplicativo tirará a autonomia dele e que, a partir dessa premissa, há uma alta rejeição às propostas de vínculo com a CLT, garantias de salários-mínimos e ao sistema previdenciário. Assustadoramente, 77% dos trabalhadores no iFood preferem manter o atual modelo de trabalho algoritmizado pois possuem maior autonomia e 87% responderam que aceitam mais direitos desde que não afetem a flexibilidade nas suas rotinas.
A pesquisa corresponde qualquer regulamentação a alguma perda de autonomia e flexibilidade. Isso corrobora uma ideia de que aqueles que possuem atividades laborais nos aplicativos não são trabalhadores e sim parceiros. Nota-se uma ideia etérea de que esses indivíduos são empreendedores, quase-sócios dessas empresas. Na visão de muitos, eles são responsáveis diretos pelo retorno financeiro ou pelos lucros dessas empresas. Assim, é como se fossem donos dos meios de produção pois possuem carros, motos e bicicletas sem que compreendam o papel do algoritmo para conectar a demanda e oferta, criando um verniz de empreendedorismo e não uma relação de trabalho.
Logo, as pesquisas encomendadas pelas empresas de trabalho algoritmizado terão como objetivo central passar recados para o legislativo: nossos “parceiros” (quase-sócios) não aceitam e nem querem mais direitos pois serão prejudicados por qualquer lei. O que deve ser destacado é que esse discurso anti-regulamentação cria corpo entre os trabalhadores a partir de outros espaços algoritmizados, como redes sociais e aplicativos de mensagens, demonstrando um ecossistema algorítmico integrado. Compreendendo essa dinâmica, o iFood contratou agências de propaganda para desmobilizar movimento de trabalhadores e, principalmente, reforçar o discurso contrário aos direitos de trabalhadores de aplicativo utilizando Whatsapp, Twitter e Facebook.
Nesse cenário, é importante para as plataformas que o indivíduo se veja como empreendedor, que seu veículo é a sua empresa e que é chefe de si mesmo. Aqui nasce uma ideia de quase-sócio, que é um indivíduo que tem rotinas laborais com alguma ferramenta de trabalho sem que direitos, garantias e vínculo trabalhista sejam reconhecidos. O quase-sócio, então, pode ser observado como alguém que está vinculado a alguma big tech e recebe ganhos por meio dela. Ainda, a pessoa que adere a esse tipo de ofício deve ter algum ferramental para que garanta a entrega do seu serviço, tais como, bicicleta, carro, moto ou qualquer outro bem essencial para que garanta a sua renda. Dessa forma, é como se o usuário se tornasse um sócio da empresa pois o seu capital, sob forma de um bem, está aplicado nas operações dessa companhia. Isso cria uma atmosfera de independência e autonomia que resulta em ganhos em escalas, muito diferente de um empregado, que precisa produzir para receber um salário fixo e estar preso em rotinas diárias e sendo submisso a um chefe.
É, justamente, a ideia de liberdade econômica que é encampada pela direita. Nem sempre há uma compreensão clara, por parte dos entusiastas desse espectro, sobre neoliberalismo e quais seus objetivos e efeitos, porém, a prosperidade é um conceito de fácil aceitação, sem a necessidade de um discurso refinado ou profundo.
Ao aceitar que a tal prosperidade vem por meio do trabalho algoritmizado, esses indivíduos ficam imersos em jornadas exaustivas e é dessa forma que os aplicativos adestram pelo controle via espaços digitais. De acordo com Byung-Chul Han, não vivemos mais em uma sociedade disciplinar em ambientes de confinamento, nossa realidade é a sociedade pelo controle, a partir da dissolução de fronteiras materiais ou físicas. A técnica de poder neoliberal não deve ser proibitiva ou repressiva e sim – e sempre – permissiva. É dessa forma que qualquer um é livre desde que possa ser controlado por algo e, para que esse controle seja aceito com devoção, é necessário que domine e explore a psique, onde se é controlado sem saber a partir da vetorização dados. É nesse momento, de acordo com o autor, que o uso do Big Data é fundamental, pois é a partir dessa estrutura que é possível extrair um “psicograma” coletivo para manter o domínio entre esse grupo, sujeitando-o a um controle psicopolítico.
Logo, a algoritmização, como instrumento neoliberal, é capaz de construir uma rede de controle por meio de diferentes motivações psíquicas, permitindo a construção de uma sólida e integrada estrutura que, segundo Bernard Stiegler, é entendida como “psicotecnologias de psicopoder”.
Ser um direitista em um ambiente de trabalho algoritmizado é a prova da miséria desse novo tempo capitalista. É a certeza de que o domínio psicopolítico teve êxito e que os trabalhadores estão docilizados a partir de uma crença de que são donos de si, do seu trabalho e do seu destino. Acreditam que não possuem chefe pois não é possível vê-lo, já que esse é um “gestor” imaterial sob a forma de algoritmo, e que são livres mesmo sem perceber os grilhões virtuais que os prendem.
A algoritmização, ainda, auxilia no processo de propagação e engajamento da extrema-direita. Não é possível saber se é por puro sadismo, cinismo ou desconhecimento – ou a soma de tudo – que algumas pessoas se declaram em uma margem do espectro que foi marcado pela violência e a morte de milhões de pessoas. Provavelmente, tal identificação ocorre para que marquem uma posição enraizada na direita, como se deixassem claro, não apenas sua identificação ideológica, como também a aversão ao discurso – e aos eleitores – de esquerda.
Tal devoção ao discurso de direita cria um maniqueísmo que expõe os espectros políticos e aproxima esse trabalhador daquele que o explora, como forma de gratidão. Ao se entender como parceiro, empreendedor ou quase-sócio, esse indivíduo enxerga horizontalidade, como se fosse um par do capitalista, enquanto os que estão à esquerda estão subjugados ao fracasso e à penúria.
Essencialmente, qualquer lei de regulação de plataformas ou que possa apontar para relação de vínculos trabalhistas vai ser rejeitada por esses usuários, justamente por enxergarem essas medidas como travas às empresas em que eles são quase-sócios. Assim, eles defendem os seus negócios e não o seu trabalho, como uma típica visão capitalista.
Então, as pesquisas encomendadas pelas plataformas iFood e Uber terão como função principal usar a voz desses usuários para seus interesses próprios. Ao dizer que a maioria está a favor do atual modelo das empresas algoritmizadas, passa-se um recado para toda classe política para que não mude o atual cenário de precarização.
Talvez, aqueles que estão nos 20% dos que se consideram de esquerda tenham mais consciência da sua condição de trabalhador. Entre esses, o discurso quase-sócio dessas empresas não vai ter o engajamento esperado e pode ter um efeito oposto, resultando em luta por mais direitos e pressão para a regulação desse tipo de trabalho.
É necessário continuar, portanto, a luta por trabalho digno e regulação dessas empresas de trabalho algoritmizado para que os envolvidos possam ter direitos garantidos. Nota-se que nos últimos anos houve um aumento de pessoas que buscam uma alternativa ao desemprego e enxergam nessas plataformas alguma oportunidade de geração de renda. Sem a devida proteção legal e de políticas públicas, esse indivíduo terá sua condição de trabalhador esvaziada e ocupada pela falácia neoliberal, em que são vistos como empreendedores ou quase-sócios.
Herbert Salles é doutor em Economia pela UFF.