Enquanto é o campo político que define o que é ou não serviço essencial e permite a flexibilização de regras trabalhistas durante a pandemia, situações mais práticas das relações de trabalho têm sido resolvidas pelo Judiciário. Nas últimas semanas, um tipo de demanda tem sido mais comum na Justiça do Trabalho: pedidos para que empresas sejam obrigadas a disponibilizar EPIs ou encontrem alternativas para trabalhadores que estão no grupo de risco da Covid-19.
As demandas vêm de setores diversos, principalmente daqueles considerados essenciais, como o da saúde, transporte, telecomunicação e alimentação. Na área da saúde, sindicatos de médicos e enfermeiros vêm acionando a Justiça a fim de que os hospitais disponibilizem máscaras, aventais, álcool gel e outros materiais para garantir o mínimo de segurança a estes profissionais. Algumas ações pedem, ainda, o afastamento de profissionais com mais de 60 anos. Há decisões em todos os sentidos.
Desde março, a Anvisa tem publicado notas técnicas orientando sobre o uso dos equipamentos de proteção individual na área da saúde. Entretanto, na prática, hospitais públicos e privados alegam dificuldades para conseguir os materiais, que muitas vezes têm de ser importados. Para resolver o impasse, sindicatos de médicos, enfermeiros e outros profissionais da área da saúde têm acionado a Justiça Trabalhista.
O argumento, além das orientações da Anvisa, é que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) dispõe, em dezenas de dispositivos, a responsabilidade dos empregadores sobre a saúde dos trabalhadores. A Constituição Federal, por sua vez, estabelece que é direito de todos os trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
No geral, a Justiça do Trabalho tem atendido aos pedidos de sindicatos e do Ministério Público do Trabalho para determinar que as empresas adotem medidas de proteção aos trabalhadores. Na visão de advogados trabalhistas ouvidos pelo JOTA, a proatividade das empresas nestes momentos faz diferença, para evitar punições na Justiça tanto agora quanto no futuro.
Para o advogado Fábio Medeiros, sócio-gestor da área trabalhista do Lobo de Rizzo Advogados, o coronavírus traz uma situação nova para as empresas em relação às medidas de segurança e saúde do trabalho. Isso porque há uma série de normas regulamentadoras, elaboradas pelo extinto Ministério do Trabalho, que estabelecem quais são os equipamentos de proteção individual necessários para cada atividade empresarial. Por meio de laudos técnicos feitos por engenheiros do trabalho, uma empresa do setor automobilístico, por exemplo, sabe quais são os EPIs que deve fornecer a seus funcionários, a depender de suas funções.
A pandemia da Covid-19 traz um risco a mais para os trabalhadores. A Anvisa, por meio da Nota Técnica 4/2020, estabelece procedimentos para o setor da saúde. Entretanto, um caixa de supermercado, um carteiro, ou um atendente de banco, profissionais que estão em contato direto com o público, também têm maior risco de contrair o coronavírus. Por isso, na visão de Medeiros, é preciso que as empresas sejam proativas na prevenção do coronavírus no ambiente de trabalho, pois a negligência pode acarretar em eventual responsabilização na Justiça futuramente.
Responsabilidade das empresas
A Medida Provisória 927, editada no dia 22 de março pelo presidente Jair Bolsonaro, prevê expressamente que “os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”. Mas para advogados ouvidos pelo JOTA, a comprovação de negligência por parte do empregador por não tomar medidas para manter um ambiente de trabalho saudável e minimizar os riscos de contágio é suficiente para gerar uma indenização por danos materiais ou morais.
“Por exemplo, se um empregado for acometido pela Covid-19, tiver gastos com hospitais e não for coberto pelo plano de saúde, se isso gerar eventualmente algum problema mais sério na saúde da pessoa, ou mesmo ocorrer a morte, se ficar comprovado que o empregado trabalhou sem o oferecimento dos equipamentos de proteção, não se pode descartar que o empregador seja responsabilizado nessas ações judiciais por negligência”, diz Medeiros.
Na visão da advogada Érica Coutinho, do Mauro Menezes Advogados, muitos empregadores começaram a se valer da ideia de que basta a estratégia informativa, de colocar cartazes conscientizando sobre a importância de lavar as mãos, por exemplo. “Não basta a empresa fixar um cartaz dizendo para lavar as mãos. É preciso que a empresa disponibilize sabão, ou álcool em gel, que a empresa tenha um afastamento para os trabalhadores em grupo de risco sem prejuízo de salário, ou teletrabalho. É preciso que haja higienização dos locais de trabalho. O caráter informativo é importante, mas ele não basta”, opina.
Decisões judiciais
Há diversas decisões recentes sobre o tema. Um exemplo é uma decisão de 16 de abril, do desembargador Fernando Luiz Gonçalves Rios Neto, do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3 – Minas Gerais). O magistrado atendeu a pedido do Sindicato dos Médicos do Estado de Minas Gerais e determinou que hospitais, clínicas e centros de saúde privados do estado que prestam ou possam vir a prestar atendimentos e assistência a pacientes com Covid-19 ou com suspeita da doença disponibilizem equipamentos de proteção individual aos médicos representados pelo sindicato até o dia 10 de maio de 2020. O descumprimento da decisão acarretará em multa diária de R$ 30 mil.
O problema não se restringe ao setor de saúde. Recentemente, uma juíza do trabalho da 49ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro acolheu pedido de um sindicato de vigilantes em empresas de segurança e transporte de valores, e determinou o fornecimento de equipamentos de segurança e adoção de medidas que promovam a proteção dos profissionais, em especial dos trabalhadores do considerado grupo de risco. Pela decisão, quatro empresas do Rio de Janeiro foram obrigadas a disponibilizar álcool 70%, lavatório com sabonete líquido e máscaras de proteção, além da realocação de funcionários que estão no grupo de risco, sob pena de multa diária de R$1 mil por trabalhador desassistido.
Na semana passada, a ministra Maria Cristina Peduzzi, presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), manteve decisão do TRT da 1ª Região que determinou que os Correios do Rio de Janeiro fornecesse máscaras, luvas, talheres, copos e pratos descartáveis a todos os empregados que atuam no atendimento ao público externo e na distribuição externa de objetos postais. Peduzzi negou pedido de suspensão de liminar feito pela ECT, que alegou que a manutenção da decisão afetaria o funcionamento do serviço postal, causando grave dano à ordem econômica dada a essencialidade dos serviços. A presidente do TST entendeu que, embora a essencialidade dos serviços postais revele-se notória, “essa premissa não justifica minimizar a adoção de medidas de segurança e saúde em relação aos empregados”.
Em 17 de abril, em webinar organizado pelo JOTA, a ministra Peduzzi ressaltou que “a Constituição é clara ao definir a responsabilidade das empresas em cumprir normas de segurança e medicina do trabalho”. Por isso, em sua visão, é papel da Justiça do Trabalho determinar que as empresas coloquem em prática essas medidas.
No geral, as ações pedindo EPIs e afastamento de trabalhadores do grupo de risco têm partido de sindicatos e do Ministério Público do Trabalho, e geralmente vêm de duas maneiras: em dissídios coletivos de natureza jurídica ou por meio de ações civis públicas. O primeiro tipo de ação, de acordo com o entendimento mais comum na Justiça do Trabalho, serve apenas para interpretar leis e acordos coletivos, e não tem função condenatória. Por isso, não tem sido muito aceita pelos juízes para determinar que as empresas adotem medidas de medicina e segurança do trabalho.
Com este argumento, a presidente do TST derrubou decisão do TRT da 2ª Região que acolheu pedido do Sindicato dos Ferroviários de São Paulo e determinou que a CPTM afastasse os funcionários que estão no grupo de risco da Covid-19. Com base nesta mesma jurisprudência, o TRT da 15ª Região negou ao menos três pedidos de sindicatos de enfermeiros e de médicos do interior de São Paulo para fornecimento de EPIs e afastamento de profissionais. Na prática, ações civis públicas têm se mostrado mais eficazes. Este tipo de ação pode ser ajuizado pelo Ministério Público, Defensoria Público, sindicatos e associações, contra uma empresa específica ou um setor empresarial como um todo.
Outro caminho, fora do meio judicial, é buscar a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, que hoje abriga as atribuições que eram de competência do Ministério do Trabalho. Sindicatos podem acionar o órgão para fiscalizar o descumprimento de normas de segurança e medicina do trabalho, que pode acionar um fiscal do trabalho para avaliar as medidas tomadas por uma empresa.
Fonte: Jota
Texto: Hyndara Freitas
Data original da publicação: 27/04/2020