Supremo Tribunal Trabalhista: a corte legisla e toma partido, o do mais forte

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 323 repousou mais de um ano na mesa do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Protocolado em junho de 2014, a ADPF – usada com o objetivo anunciado de evitar ou reparar prejuízo por um ato do poder público – passou por variados trâmites até a manifestação da Procuradoria-Geral da República, em julho de 2015. Mas só no último 14 de outubro, quando a reforma trabalhista voltou à pauta nacional, saiu a decisão do ministro, favorável à ação proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen). A questão ainda será julgada pelo plenário do STF. As ADPFs só são apreciadas liminarmente em caso de urgência. “Depois de dois anos? Qual a urgência?”, comenta um representante do Judiciário.

Para Gilmar, TST proporciona hiperproteção ao trabalhador. Fotografia: Elza Fiúza/Agência Brasil
Para Gilmar, TST proporciona hiperproteção ao trabalhador. Fotografia: Elza Fiúza/Agência Brasil

O que a entidade patronal questionava? A Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) referente à chamada ultratividade, princípio pelo qual direitos previstos em convenção ou acordo coletivo são mantidos mesmo depois da vigência, enquanto não há renovação. Mendes concedeu liminar à Confenen, e em sua decisão avançou sobre a Justiça trabalhista, que para ele continua “reiteradamente” aplicando uma alteração jurisprudencial (a nova redação da 277, modificada em 2012) “claramente firmada sem base legal ou constitucional que a suporte”. Adiante, nova crítica: os tribunais trabalhistas, afirma, interpretam “arbitrariamente” a norma constitucional.

Foi até pouco pelo que se veria uma semana depois, em 21 de outubro, quando, durante evento em São Paulo, o ministro do STF falou que o TST proporcionava “hiperproteção” ao trabalhador, desfavorecendo as empresas. “Esse tribunal é formado por pessoas que poderiam integrar até um tribunal da antiga União Soviética. Salvo que lá não tinha tribunal”, gracejou, diante de representantes empresariais, como se poderia supor.

Gandra, presidente do TST, a pretexto de das segurança para o trabalhador, defende flexibilização que legaliza ilegalidades. Fotografia: Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Gandra, presidente do TST, a pretexto de das segurança para o trabalhador, defende flexibilização que legaliza ilegalidades. Fotografia: Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Fora, esquerda

Os comentários e decisões de Gilmar Mendes provocaram reações irritadas no Judiciário. Mas não são isolados. O STF vem colecionando casos que se referem a questões trabalhistas, o que, para muitos, já representam os primeiros passos de uma reforma, que ainda enfrenta resistência no Congresso. Os empregadores acompanham com interesse.

Um magistrado avalia que o Supremo está “preparando o terreno” para o Executivo, com decisões e sinalizações em diferentes casos. No episódio do direito de greve do servidor, por exemplo, pode abrir caminho para que o governo Temer apresente um projeto de lei restritivo, argumentando que está seguindo diretrizes do STF.

No último dia de outubro, em artigo publicado no jornal O Globo, os advogados Eduardo Pastore e Luciana Freire comentaram um caso do STF relacionado ao princípio do negociado sobre o legislado. E também a ação da ultratividade. E elogiou: “Eis o Supremo Tribunal Federal mostrando como se faz a reforma trabalhista, com segurança jurídica, bom senso e valorizando o princípio da autonomia da vontade na negociação coletiva”.

O mesmo Eduardo, filho do consultor e professor José Pastore, não mostra sutileza em comentários políticos: “É sempre bom ver a esquerda ser retirada do Poder Executivo”, escreveu em sua página no Facebook no dia seguinte ao segundo turno das eleições municipais. Mesmo assim, ele achou pouco: “O duro é eliminá-la das entidades de classe, igreja, imprensa, docência, exército, do Poder Legislativo e do Judiciário. Este último, o único onde não há eleição”. O mesmo advogado que diz prezar a negociação coletiva não se mostra tão flexível na convivência ideológica. Ele também já sugeriu transformar a Constituição de 1988 em “adubo”.

Enquanto a Carta de 1988 não passa da função jurídica para a orgânica, a legislação trabalhista é vista como entrave ao desenvolvimento e até ao emprego. E o STF entra no debate não por acaso, avalia o advogado trabalhista Luis Carlos Moro, ex-presidente das associações brasileira e latino-americana da categoria. “O Supremo resolveu ser uma instância de correção do TST, uma espécie de inspetor escolar”, afirma.

Para ele, afirmar que a principal Corte trabalhista do país favorece um lado em prejuízo de outro “não tem lastro empírico, muito menos técnico-científico”. “O TST se encaminhou para um equilíbrio nos últimos anos”, diz Moro, lamentando a queda do nível de discussão para a categoria “tosco”. Há diferença entre neutralidade e parcialidade, observa. “Essa acusação do ministro Gilmar contra todos os integrantes de um tribunal é de uma gravidade atroz.”

Solapando a democracia

Dezoito dos 27 magistrados do TST se insurgiram contra as declarações do ministro do Supremo e, em 26 de outubro, encaminharam ofício à presidenta da Corte, Cármen Lúcia, expresssando “indignação, constrangimento e inquietação ante a ofensa gratuita que lhes foi irrogada”. Manifestação dessa natureza, afirmam, “enodoa, desprestigia e enfraquece” o Judiciário e cada um de seus ­integrantes”, além de “solapar o Estado democrático de Direito”.

Assinam o ofício, entre outros, os ex-presidentes João Oreste Dalazen (decano do TST) e Antonio José de Barros Levenhagen. O atual, Ives Gandra Filho, não integra o documento. Preferiu divulgar uma nota mais comedida, no dia 21, para “lamentar profundamente” a forma “infeliz” do pronunciamento de Gilmar Mendes, “não se admitindo dar à Corte tal tratamento, nem a nenhum de seus ministros”.

No caso da Súmula 277, ele também já havia sido contestado. “Com todo respeito ao ministro Gilmar, o entendimento (de suspender a norma) é equivocado. A súmula tem base constitucional. A ultratividade tem apoio da doutrina”, diz o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Germano Siqueira. Segundo ele, a jurisprudência garante segurança jurídica. “Enquanto não houver novo acordo (coletivo), é prudente que o anterior permaneça em vigor.” Segundo ele, a “intervenção brusca” de Gimar, se confirmada, provocará instabilidade todos os anos.

As reações não ocorrem só em Brasília­. O desembargador Davi Furtado Meirelles­, que presidia interinamente a Seção Especializada em Dissídio Coletivo do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região, em São Paulo, se manifestou durante uma sessão para manifestar estranheza pelo momento da decisão liminar neste momento do país. Momento de crise econômica e “em que os empresários buscam, a qualquer custo, reduzir os direitos dos trabalhadores, e o ­último patamar de resistência é a Justiça do Trabalho”.

Para ele, decisões do STF já têm apontado na direção da prevalência do negociado sobre o legislado. “Eu sempre fui um defensor da negociação coletiva, mas dentro de um patamar mínimo civilizatório de direitos, o que não está ocorrendo”, afirma. “Isso é arriscado, pois veremos uma total desregulamentação do Direito do Trabalho e uma precarização das condições dos trabalhadores.”

Flexibilização já

O cerco cresce, mas não é de hoje. No final de 2015, o então deputado e agora ministro da Saúde, Ricardo Barros, relator do orçamento, propôs corte para a Justiça do Trabalho e criticou a legislação. Para ele, as regras atuais “estimulam a judicialização dos conflitos, na medida em que são extremamente condescendentes com o trabalhador”.

Cotado para o STF, na vaga do ministro Celso de Mello, o próprio presidente do TST é um defensor da reforma, a ponto de discordar do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, que durante um evento em setembro afirmou que as mudanças ficariam para o segundo semestre do ano que vem. “Eu não esperaria. O Brasil tem pressa”, disse Ives Gandra Filho, também favorável à chamada flexibilização das leis, que significaria “a segurança maior para o trabalhador”. Ele defende o Projeto de Lei 4.962, do deputado Julio Lopes (PP-RJ), que retoma o princípio do negociado sobre o legislado, tema de outro projeto, no governo FHC, arquivado em 2003, já sob o governo Lula.

A visão de Gandra parece ser minoritária no TST. Em entrevista ao site jurídico Jota, o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Curado Fleury, respondeu com cautela a uma pergunta sobre “resistências internas” no tribunal.

“Com relação à posição do ministro Ives perante o TST, eu acredito, até pelas manifestações escritas, aquela carta que a maioria dos ministros fez, que ele de fato defende posições minoritárias, entretanto ele é presidente, pode dar suas opiniões­, e o cargo dele é de representação. Sob esse aspecto da representatividade, penso que as posições devem ser da maioria dos ministros do tribunal. Mas essa questão é interna do tribunal é deve ser decidida lá.”

Segurança Jurídica

Na mesma entrevista, Fleury falou sobre certa “inquietação” no meio jurídico com as questões trabalhistas analisadas no STF. A preocupação, afirmou, “é se a visão que o Supremo vai dar é uma visão mais sob o ponto de vista econômico ou sob o ponto de vista trabalhista efetivamente”. Ele observou que a possibilidade do negociado se sobrepor ao legislado existe, de fato, mas “com o intuito de conferir mais direitos”.

O procurador também se manifestou com apreensão quanto à decisão liminar de Gilmar Mendes no caso da ultratividade. “Penso eu que essa decisão é extremamente prejudicial aos trabalhadores e à segurança jurídica que deve permear as relações capital e trabalho porque vai trazer uma insegurança às partes, no sentido de não saberem qual será a regra do jogo após a vigência das normas coletivas.”

Uma entrevista de Gandra ao jornal 
O Estado de S. Paulo, em 29 de outubro, fez aumentar a turbulência. Ao responder uma pergunta sobre suposta “proteção” do TST ao trabalhador, deu razão às críticas. “Se há tanta reclamação no setor patronal, alguma coisa está acontecendo”, declarou. E também jogou responsabilidade no trabalhador: “Às vezes, ele não tem razão nenhuma, mas só de o empregador pensar que vai ter de enfrentar um processo longo, que vai ter de depositar dinheiro para recorrer, acaba fazendo um acordo quando o valor não é muito alto. Isso acaba estimulando mais ações.”

Imediatamente, a Abrat divulgou nota para lamentar, afirmando que Gandra omitiu que no Brasil “é mais vantajoso ser condenado na Justiça do Trabalho do que cumprir as leis e pagar de forma espontânea”. Segundo a entidade, a questão “crucial” sobre o número de processos trabalhistas “reside na falta de efetividade ou concretude dos direitos sociais”. A associação acrescenta que o caminho para que esses direitos se tornem efetivos “perpassa pelo fortalecimento, e não pela degradação, da Justiça do Trabalho”.

O problema da falada reforma trabalhista, diz Luis Carlos Moro, é que se trata de uma questão “contramajoritária, para atender ao reclamo de uma elite”, conforme define. “Como toda minoria, tem dificuldade de se impor politicamente. O Legislativo exige o processo político. O caminho do Judiciário é menos oneroso. É mais simples, mas talvez o mais perigoso.”

Decisões causam preocupação

Alguns casos na pauta do STF têm impacto direto no universo do trabalho. São temas como terceirização, validade de acordos coletivos, direito de greve e prevalência do negociado sobre a legislação. As decisões podem ter repercussão imediata e ampla em várias situações, limitando direitos e o chamado poder normativo da Justiça do Trabalho. Conheça alguns.

Negociado sobre o legislado

Em setembro, uma decisão do pleno do TST contrariou o próprio presidente do tribunal e um precedente do STF a respeito da prevalência de acordos coletivos sobre a CLT. O caso se referia a ação movida por um trabalhador rural contra uma usina em Maringá (PR), condenada a pagar adicional de horas extras e reflexos sobre verbas trabalhistas. A empresa recorreu, alegando que firmara acordo com o sindicato local.

Gandra considerou que o caso se encaixava em precedente do ministro Teori Zavascki, do STF, referente a um caso envolvendo outra usina, em Pernambuco, e baseado no artigo 7º da Constituição, que permite flexibilização de salário e jornada. Mas a maioria dos juízes entendeu que se tratava de outra situação. “Uma coisa é flexibilizar o cumprimento das leis trabalhistas e valorizar a negociação coletiva. Outra, muito diferente, é dar um sinal verdade para a pura e simples redução de direitos, contrariando a natureza e os fundamentos do Direito do Trabalho”, comentou o ministro João Oreste Dalazen, ex-presidente e decano do TST.

Em outro processo, de 2015, o plenário do STF considerou válida uma cláusula que considera definitiva a quitação de direitos em planos de demissão voluntárias. Na ocasião, o caso envolvia o Banco do Estado de Santa Catarina, que havia sido comprado pelo Banco do Brasil. O TST tinha sido contra a quitação plena, afirmando que ela vale apenas para parcelas especificadas, enquanto direitos trabalhistas são irrenunciáveis. O BB recorreu. Com a decisão do Supremo, que teve a chamada repercussão geral, a Corte informou que seriam resolvidos 2.396 processos sobre o mesmo tema.

Acordos coletivos

Pela Súmula 277 do TST, alterada em 2012, as cláusulas de uma convenção coletiva continuam valendo até que outro acordo seja firmado. O texto diz: “As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”. Em ação movida pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), questionando a súmula, o ministro Gilmar Mendes concedeu liminar à entidade. O caso ainda será examinado pelo plenário.

Corte de ponto do servidor Em 27 de outubro, em julgamento de mandados de sindicatos de servidores no Espírito Santo (policiais civis), João Pessoa (trabalhadores em educação) e do Pará (funcionários do Poder Judiciário), o STF decidiu aplicar ao funcionalismo público a Lei 7.783/89, a lei de greve do setor privado. O tribunal declarou a omissão do Congresso ao não regulamentar até hoje o direito de greve no serviço público. O ministro Celso de Mello chegou a falar em “abusiva inércia do Congresso”.

Por maioria (6 a 4), os ministros consideraram legal o corte de ponto e consequente desconto de salários dos dias de paralisação. Pela decisão, não pode haver desconto se a greve for causada, por exemplo, por atraso nos salários ou recusa do poder público à negociação. Ainda mais preocupante foi a avaliação do ministro Luiz Fux, que relacionou o direito de greve ao momento político e econômico brasileiro, com possibilidade de paralisações. Segundo ele, “é preciso estabelecer critérios para que nós não permitamos que se possa parar o Brasil”.

Terceirização

O STF adiou o julgamento marcado para 9 de novembro do Recurso Extraordinário 958.252, sobre a constitucionalidade da Súmula 331 do TST, que trata da legalidade nos contratos de prestação de serviços. O relator é o ministro Luiz Fux. O processo foi movido pela Celulose Nipo Brasileira (Cenibra) contra o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de Ganhães e Região (Sitiextra). A empresa recorreu ao Supremo depois de ser condenada, perdendo em todas as instâncias, por contratar terceirizados. A 331 veda a terceirização na chamada atividade-fim (principal) de uma empresa. O caso, que pode virar precedente para todas as questões relativas ao tema, desperta muito interesse: CUT, Força Sindical, CTB, Nova Central e UGT entraram como amicus curiae (amigos da Corte), além da Confederação Nacional da Indústria. A decisão certamente influenciará na tramitação de projeto que prevê terceirização irrestrita, já aprovado na Câmara e em tramitação no Senado (PLC 30).

OS’s na administração pública

Em abril do ano passado, o STF concordou que as chamadas OS’s (organizações sociais), entidades privadas, podem prestar serviços públicos não exclusivos em algumas áreas. Com isso, em certa medida permitiu a terceirização no setor. Dois partidos (PT e PDT) questionavam as leis 9.637, de 1998 (sobre as OS) e 8.666, de 1993 (licitações).

Fonte: Rede Brasil Atual
Texto: Vitor Nuzzi
Data original da publicação: 16/11/2016.

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