A necessidade de buscar mecanismos e políticas públicas capazes de enfrentar a doença e suas manifestações recolocou, mais uma vez, a questão do protagonismo da ação estatal.
Paulo Kliass
Fonte: GGN
Data original da publicação: 01/07/2021
Desde a crise econômico-financeira de 2008/9 tem ficado cada vez mais evidente a incapacidade dos modelos econômicos tradicionais EM darem conta da explicação das dificuldades apresentadas na dinâmica da economia nas escalas locais e globais. Os pressupostos que estavam na base das políticas de ajuste macroeconômico e de reformas estruturais propostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Mundial (BM) e pela Comissão Europeia (CE) vigoraram por mais de 4 décadas, mas não resolveram problemas básicos como desigualdade de renda e patrimônio, avanço da financeirização e abismo entre os países mais ricos e os demais.
As intervenções dos governos naquele momento, e em sua sequência, tiveram o significado de abandono de alguns dos principais dogmas do neoliberalismo e do Consenso de Washington. Assim, ao contrário da busca do Estado mínimo e da liberalização absoluta da economia, as medidas para solucionar a crise que teve início no sistema financeiro norte-americano implicaram aumento das despesas públicas e uma maior intervenção do governo no terreno das relações econômicas. Com isso, passaram a ser questionadas as crenças a respeito da impossibilidade de elevação de déficits fiscais, uma vez que essa foi uma das estratégias para impedir que a recessão fosse mais intensa e a desarticulação da economia fosse mais profunda.
O mito a respeito da presença do setor público na economia também foi colocado em xeque, uma vez que até mesmo a icônica multinacional norte-americana “General Motors – GM” do setor automobilístico chegou a ser estatizada no meio dos furacões no mercado de capitais. Esse passou a ser o lema retórico para justificar esse tipo de intervenção até então considerada herética: “too big to fail”, ou seja, eles seriam conglomerados tão gigantescos que valeria tudo para evitar a sua falência, até mesmo a ajuda do Estado.
A crise recoloca a necessidade de mudança
A chegada da pandemia do coronavirus em 2020 termina por reforçar essa tendência. A necessidade de buscar mecanismos e políticas públicas capazes de enfrentar a doença e suas manifestações recolocou, mais uma vez, a questão do protagonismo da ação estatal. Esse é o tipo de situação em que a simples espera por um suposto equilíbrio das forças livres de oferta e demanda não resolve a gravidade do problema na urgência necessária. Os países mais ricos apostaram na estratégia de elevação das despesas governamentais em uma diversidade de rubricas de seus orçamentos públicos. Foi assim em áreas como saúde, pesquisa, assistência social e apoio às empresas, entre outras.
Mais uma vez ficou colocada a alternativa de relativizar a rigidez das regras da austeridade fiscal cega e burra, além de insensível às crescentes demandas de natureza social. Na prática, o que se viu foi um abandono do diagnóstico de que não havia recursos orçamentários disponíveis para esse volume de gastos necessários. O dinheiro que supostamente não existia, segundo os cânones da ortodoxia, repentinamente apareceu e os governos passaram a aplicá-lo em programas sociais e econômicos de emergência para combater a doença e preparar o período pós covid 19.
As alternativas eram aumento da dívida pública ou elevação da emissão monetária, de modo a criar as condições para implementar as medidas necessárias. Assim, na prática, os responsáveis pela política econômica dos países estavam aplicando alguns dos pressupostos da Teoria Monetária Moderna (TMM), uma vez que rompiam com os dogmas fiscalistas das propostas que imperavam anteriormente. De acordo com a TMM, os governos não deveriam se preocupar obsessivamente com índices de endividamento público ou de emissão de moeda, uma vez que os países eram soberanos para adotar essas opções de política econômica em sua própria moeda. Enfim, veio por terra a ideia tão propagada pelos grandes meios de comunicação e pelos arautos do financismo de que os “países quebrariam” caso não respeitassem os limites arbitrários por eles mesmos impostos.
A derrota de Trump e a vitória de Biden nas eleições presidenciais nos Estados Unidos, por exemplo, abriram espaço para que novas ideias viessem a embasar os programas do governo. Em poucos meses do mandato do novo ocupante da Casa Branca assistiu-se a uma verdadeira reviravolta na orientação da política econômica do governo, com o anúncio de programas robustos de combate à epidemia, de geração de empregos e de apoio a setores considerados estratégicos.
No Brasil essa tarefa foi, e ainda permanece sendo, mais complicada. A crença nesse tipo de abordagem conservadora e ultrapassada ainda segue forte e intocável. A presença de uma figura como Paulo Guedes na condição de superministro da economia retarda a adoção de uma abordagem mais oxigenada e contemporânea daquilo que se faz atualmente nos próprios países que são o centro do capitalismo no mundo. Mas mesmo assim, algumas exigências pragmáticas da dimensão da política terminam por fazer com que Bolsonaro exija de seu colaborador algum tipo de flexibilização no receituário da restrição fiscal. Os recursos antes inexistentes nas negativas de Guedes, repentinamente surgem para despesas com vacinas ou com auxílio emergencial, ainda que de forma tímida. E, ao contrário do alarmismo da chantagem anterior, nem por isso o Brasil quebrou. Mas isso ainda é pouco e muito insuficiente.
Surge o Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento.
Tendo em vista a necessidade premente de dar voz à necessidade de alternativas, uma importante inciativa foi tomada em nosso país. Economistas, professores e demais pesquisadores uniram-se em torno da criação do “Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento” (IFFD). A entidade pretende entrar no debate público, com o intuito de discutir e apresentar sugestões e propostas fora do campo da oficialidade conservadora. De acordo com a apresentação na página do próprio instituto,
(…) “somos uma instituição composta por profissionais de várias áreas que visa apresentar ao debate político e econômico brasileiro as atualizações e inovações no campo da macroeconomia de forma a oferecer o suporte teórico necessário à gestão funcional das finanças públicas. Buscamos também analisar, estudar e formular políticas para a persecução do pleno emprego com estabilidade de preços e sustentabilidade externa.” (…)
Para quem não está ainda muito familiarizado com o debate, existe uma semelhança e uma proximidade bastante grande entre as ideias que permeiam a TMM e as finanças funcionais. Trata-se de reconhecer a incapacidade da teoria tradicional em dar conta de explicar a crise atual e muito menos de propor soluções viáveis para sua superação. O fato é que as possibilidades de retomar as trilhas do desenvolvimento econômico- social e sustentável no Brasil passam por construir um arcabouço inovador no que se refere à política econômica. Isso significa retomar a ideia força do protagonismo do Estado nesse processo e também a percepção de que existe espaço para a implementação de programas governamentais alicerçados no necessário aumento das despesas públicas.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.