Souto Maior: regulação de motoristas de aplicativo traz riscos

Fotografia: Thibault Penin/Unsplash

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apresentou na segunda-feira (4) uma proposta de regulamentação do trabalho de motorista de aplicativo. Fruto de negociações entre governo, sindicatos de trabalhadores e empresas do setor, o projeto é polêmico dentro da categoria, como apontou reportagem do Sul21 publicada nesta quinta-feira (7). Contudo, em conversa com o Sul21, Jorge Luiz Souto Maior, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e desembargador do Trabalho aposentado, alerta que a proposta traz um grande risco de retrocessos que vão além da própria categoria de motorista de aplicativos.

Professor e desembargador aposentador Jorge Luiz Souto Maior | Foto: Divulgação/TRT15

Para Souto Maior, o projeto de lei, que ainda irá tramitar no Congresso Nacional, é uma legitimação do desrespeito à legislação trabalhista e, inclusive, poderá ter impacto para outras categorias, não apenas para os motoristas de aplicativos.

“O argumento de uma pessoa em estado de necessidade ser o fundamento para retirar dessas pessoas os seus direitos mínimos que estão consagrados na Constituição é algo fora de propósito, muito violento. Isso vindo do Partido dos Trabalhadores é muito assustador, porque tende agora a uma legitimação de uma realidade que já era recorrente no País, do desrespeito à legislação do trabalho. Agora, então, isso vai ser difundido e, provavelmente, do ponto de vista jurídico, alastrado para outras categorias de trabalhadores”, diz.

Para o professor, as regras previstas no PL poderiam ser estendidas para outras categorias, desde que fosse introduzido um cenário de intermediação por plataformas, o que é uma tendência e já não é mais restrito a profissionais como motoristas e entregadores.

“A gente não pode duvidar da criatividade do capitalista, de que ele vai conseguir plataformizar qualquer tipo de trabalho. É só criar essa intermediação do trabalho por meio de uma plataforma que já terá o parâmetro para dizer que se está tratando da mesma modalidade de trabalho. Segundo, isso se ampliando, como você mesmo disse para professores, o que já existe, mas também para enfermagem, para vários tipos de trabalho, vai restar um universo tão restrito de trabalhadores que não foram plataformizados que essas pessoas vão ser tidas como privilegiadas. E esses direitos trabalhistas dessas pessoas vão ser bombardeados”, afirma.

Confira a seguir a íntegra da conversa com o professor Jorge Luiz Souto Maior.

Sul21 — Qual é a sua avaliação sobre o projeto de lei apresentado pelo governo?

Jorge Luiz Souto Maior: A avaliação é a pior possível. Do ponto de vista não só do conteúdo do projeto, depois a gente pode falar a respeito, mas também daquilo que ele representa e para o modo como ele foi ali propagandeado pelo governo naquele evento festivo de assinatura do projeto pelo presidente Lula, com discursos que são discursos que remetem a muitos argumentos da época da escravidão, por exemplo, ou antes disso, na época da escravidão dos indígenas, que utilizavam para justificar uma situação de um trabalho escravizado. Ou seja, uma lógica que é muito perversa. Eu achei um retrocesso muito grande.

Sul21 — Em que sentido?

Jorge Luiz Souto Maior: Por exemplo, o Luiz Marinho disse explicitamente: ‘Nós chegamos a essa regulamentação porque os trabalhadores disseram que eles não querem CLT’. Eu até estava lendo um livro recentemente em que, tratando da história da escravização dos indígenas, traz o relato de que, para os escravistas e mesmo missionários, a escravização estaria justificada porque, diante das doenças e da fome, muitos indígenas, admitiam a situação e até pediam para ser escravizados. O argumento de uma pessoa em estado de necessidade ser o fundamento para retirar dessas pessoas os seus direitos mínimos que estão consagrados na Constituição é algo fora de propósito, muito violento. Isso vindo do Partido dos Trabalhadores é muito assustador, porque tende agora a uma legitimação de uma realidade que já era recorrente no País, do desrespeito à legislação do trabalho. Agora, então, isso vai ser difundido e, provavelmente, do ponto de vista jurídico, alastrado para outras categorias de trabalhadores. Ou seja, nós temos uma tendência da destruição plena dos direitos trabalhistas sobre esse falso argumento de que se está conferindo uma regulação nova para um tipo de trabalho diferente. Quando na verdade não tem diferença nenhuma a exploração do trabalho e essa regulação vale para esse tipo de trabalho que se diz autônomo, com direitos, que não tem direito nenhum, é bom também que se diga, isso vai valer para todas as categorias de trabalhadores, pode escrever. Bancários, jornalistas, enfermeiros, técnicos de enfermagem, todo mundo vai ser submetido, de algum modo, a essa nova modalidade de relações de trabalho. Então, foi muito, muito grave.

Se nós pegarmos o conteúdo do PL, na verdade, ele não trata de trabalhadores autônomos com direitos, como foi enunciado. Como diz o Rodrigo Carelli, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, são subordinados sem direitos, porque o projeto de lei, inclusive, permite que a Uber puna os trabalhadores, que controle a atividade. Isso está explícito lá. Ou seja, é uma típica relação de trabalho subordinada, sem direito do trabalho algum. O único direito que foi garantido a essas pessoas, foi explicitado a esses trabalhadores, é a vinculação à Previdência Social, o que, na verdade, essas pessoas já tinham, não é um direito que foi ampliado por esse projeto de lei.

Do ponto de vista trabalhista, é assustador que o único item que confere algum direito trabalhista, na verdade é uma destruição da Constituição, porque fixa jornada de trabalho máxima de 12 horas, enquanto a Constituição diz explicitamente que a jornada de trabalho máxima é de oito horas. E é uma conquista histórica da classe trabalhadora, inclusive, a fixação da jornada de trabalho em oito horas. Então, estabelecer como legal uma jornada de trabalho de 12 horas, além de ferir a Constituição Federal, é uma retomada do período pós-Revolução Industrial. Ou seja, nós estamos retornando à uma época da pré-história do Direito do Trabalho, da pré-história dos direitos humanos. Isto tudo anunciado como coisa nova e moderna, é muito grave o que está acontecendo.

Sul21 — Quando o senhor fala de risco de ampliação para outras categorias. Na sua avaliação, é um risco para esses trabalhadores que são vinculados a plataformas — e hoje temos professores e diversas categorias que estão vinculadas a algum tipo de plataforma — ou o senhor acha que pode ser ampliado, inclusive, para profissões que ainda não têm essa mediação por plataforma?

Jorge Luiz Souto Maior: Primeiro, a gente não pode duvidar da criatividade do capitalista, de que ele vai conseguir plataformizar qualquer tipo de trabalho. É só criar essa intermediação do trabalho por meio de uma plataforma que já terá o parâmetro para dizer que se está tratando da mesma modalidade de trabalho. Segundo, isso se ampliando, como você mesmo disse para professores, o que já existe, mas também para enfermagem, para vários tipos de trabalho, vai restar um universo tão restrito de trabalhadores que não foram plataformizados que essas pessoas vão ser tidas como privilegiadas. E esses direitos trabalhistas dessas pessoas vão ser bombardeados. A tendência mesmo é aquilo que sempre se quis, a destruição plena da legislação trabalhista, o fim da CLT, como eles dizem, porque inclusive isto foi alvo desse evento, um ataque explícito à CLT. Mas a CLT é um símbolo de direitos, de conquista da classe trabalhadora.

Sul21 — Na sua avaliação, a CLT já regulamentaria esse tipo de serviço? Eles já deveriam estar incluídos na CLT, portanto o que acontecia era essas plataformas operaram fora da legalidade e elas deveriam respeitar a CLT? Seria esse o caminho?

Jorge Luiz Souto Maior: Se nós pensarmos do ponto de vista jurídico, restrito, você tem inteira razão. A CLT é uma lei, é um decreto de 1943, mas que foi sucessivamente alterado por várias leis, foi recepcionado pela Constituição e tudo mais. Nós não estamos falando de uma legislação de 1943, nós estamos falando de uma legislação em vigor, com amparo constitucional. Ela diz explicitamente quem é empregado e, consequentemente, quem não é empregado. Ou seja, o trabalhador que trabalha em condições de relação de emprego e quem não trabalha. Ela diz, explicitamente, nos artigos segundo e terceiro isso, empregado é aquela que presta serviço sob dependência, de forma não eventual e remunerada. Então, trabalhando nessas condições, a pessoa é empregada, independente do contrato, da forma de prestação de serviço, se tem intermediação de aplicativos ou se não tem, isso tudo é fugidio. Aliás, as fórmulas fugidias do Direito do Trabalho existem desde quando esses direitos foram implementados, aí porque o Direito do Trabalho é baseado em princípios que tentam suplantar esses artifícios. Como, por exemplo, o princípio da irrenunciabilidade, o princípio da primazia da realidade, são vários preceitos jurídicos que vêm para dar efetividade aos direitos trabalhistas.

Olhando tudo isso do ponto de vista jurídico, os entregadores e motoristas por aplicativo se enquadram perfeitamente na categoria de empregado e, portanto, eles já tinham todos os direitos trabalhistas, vinculação à Previdência Social e tudo mais, independente da vontade deles ou independente da vontade da Uber. O que acontece e o que acontecia exatamente é uma ilegalidade assumida, explícita, sem a devida fiscalização e correção. Tanto que a maior parte dessas pessoas, desse trabalhadores, que procurou a Justiça do Trabalho para pleitear os seus direitos trabalhistas, a maior parte ganhou as suas causas, quase a totalidade. Porque a Justiça dizia: ‘Bom, aqui tem relação de emprego, está aqui nos artigos segundo e terceiro da CLT, não há dúvidas disso’. Só que também há um discurso muito grande, uma propaganda muito grande dessas empresas, para preconizar que aquela relação não seria de emprego, porque eles teriam liberdade para escolha de horários, liberdade para escolher o dia que trabalha, mas é tudo fugidio e fantasia, porque o Direito do Trabalho surge exatamente para impedir a exploração exagerada, para conferir liberdade. O Direito do Trabalho é um direito para libertar os trabalhadores da lógica da escravidão, não é para esse mecanismo como eles usam: ‘o Direito do Trabalho vai punir o trabalhador, por isso que o trabalhador não quer’. Invertem tudo e começaram a criar essa fantasia. Acolhendo-se isso como um preceito, perceba como que a defesa do Direito do Trabalho para todos os trabalhadores passa a ser um desafio.

Sul21 — A gente sabe que existe essa vontade manifestada, ao menos por parte da categoria, de ser contra qualquer tipo de regulamentação. Eles querem melhorias, mas acreditam que não seria esse o caminho. Como é que se poderia atender a vontade desse grupo de trabalhadores que não deseja a regulamentação ou simplesmente não tem como enquadrar essa profissão de motoristas de aplicativo como uma nova modalidade?

Jorge Luiz Souto Maior: Olha, essa questão da vontade, ela é muito limitada diante de uma previsão legal. A pessoa dizer ‘eu não quero me submeter aos efeitos da lei’. Na verdade, a gente não pode estar submetido a esse tipo de avaliação. ‘Ah, mas quem está falando isso é o ser que seria ‘o único beneficiário da lei’. Não, não é. O Direito do Trabalho não beneficia apenas o trabalhador individualmente, é também uma garantia social, porque prevê normas vinculadas à Previdência Social, normas de saúde, que são, em certa medida, limitações de custos sociais, porque o Direito de Trabalho também está preocupado com o ambiente do trabalho, com a proteção contra acidentes do trabalho, contra doenças. Tudo isso são situações que geram depois repercussões do ponto de vista social e familiar. Então, essa individualização de interesse do ponto de vista de uma relação que é estruturante da sociedade, ela não tem sentido. Primeiro aspecto. Segundo aspecto, não é bem verdade que, se você disser para eles, você quer férias? Quer 13º? Quer trabalhar menos? Quer ter uma proteção contra o desemprego? Evidentemente que vão querer. Ninguém vai abrir mão disso. Os deputados que vão votar essa lei não abrem mão das suas férias. Não é isso.

Eles estão dizendo que não querem bater cartão, vamos dizer assim, mas, para que uma pessoa tenha direitos trabalhistas, ela não precisa necessariamente bater cartão. Existem muitas categorias de trabalhadores que trabalham com jornadas flexíveis, que trabalham sem bater cartão, vamos dizer, e ainda assim são empregados. É o modo como explicaram para ele, que o registro em carteira implicaria uma perda de direitos e uma perda de liberdade. Claro, se eu na condição de motoristas ou entregador, alguém dissesse: ‘se a sua carteira for assinada, o patrão vai poder exigir que você trabalhe na hora tal, que você entre em determinado horário ou que você trabalho todos os dias e tudo mais, o patrão vai ter controle sobre a sua vida’. Aí eu vou dizer: ‘não quero’. Mas não é isso. O Direito de Trabalho existe exatamente para inibir esse poder patronal e não para favorecer o poder patronal. Como a essas pessoas chegou uma mensagem equivocada ou mentirosa, melhor dizendo, a opinião delas está viciada, porque está partindo de um relato mentiroso. Agora, a contrainformação disso é muito difícil.

Sul21 — Seria possível regulamentar a profissão de motorista no âmbito da CLT, com horário flexível, mantendo algumas das características atuais?

Jorge Luiz Souto Maior: Sem dúvida alguma. Nós temos a categoria dos químicos, temos a categoria de professores, temos a categoria de jornalistas, de radialistas, todos regulados na CLT, com as suas peculiaridades. Os motoristas de Uber são diferentes? Não são, é a mesma coisa. É um retrocesso, nós estamos andando para trás em vez de andar para frente. E, ao mesmo tempo, o mais perigoso, levando para trás todas as relações de trabalho que se assemelham a essa. Ou seja, todas. Porque ela não é diferente, essencialmente, de nenhuma outra. As peculiaridades do serviço não fazem com que, naquilo que é essencial, haja alguma diferença entre o que um motorista de Uber faz e o bancário. Daqui a pouco, imagina, o bancário prestando serviço em casa para um banco, mas por meio de uma ferramenta tecnológica. E o banco vai dizer: ‘ele não é meu empregado, está prestando serviço por meio dessa ferramenta’.

Sul21 — Seria uma divisão do trabalho por tarefas. Tu deixa de ter uma vinculação oficial, mas acaba prestando uma série de tarefas para a mesma empresa.

Jorge Luiz Souto Maior: Aí se tem um processo de desestruturação de um modelo de produção, baseado num pacto de solidariedade, que tende nessa desregulamentação total a um processo de acumulação de riqueza, de empobrecimento e de miséria. Agora, isso num país periférico do capitalismo, a coisa é em direção à barbárie. Porque, veja, esses modelos de regressão da proteção social, do estado social, você não vê nos países centrais do capitalismo. É só aqui na periferia onde isso está sendo realizado e por uma tragédia, vamos dizer assim, encabeçado por um governo que teria que ter e tem base popular. Ou seja, os trabalhadores algozes de si mesmo. Em que ele alivia, inclusive, qualquer tipo de culpa do conservadorismo, do escravismo, porque podem dizer ‘são os próprios trabalhadores que estão querendo, não somos nós que estamos fazendo isso’.

Sul21 — O senhor teria algum outro detalhe do projeto de lei para o qual gostaria de chamar a atenção?

Jorge Luiz Souto Maior: Eu acabei que falei dos pontos mais graves. O projeto de lei é pequeno, não são muitos artigos, mas começa assumindo que esses trabalhadores não são empregados, que eles são autônomos, o que é uma contradição com o que diz a CLT. Porque diz isso fora de qualquer parâmetro de avaliação de realidade. É um pressuposto teórico e trabalho não se examina assim, é a partir do real. Depois, diz que eles são autônomos e sendo autônomos o que se pressupõe é que sejam pessoas que têm liberdade, pessoas que vendem a força do seu trabalho livremente no mercado, mas aí a lei vai e fixa um valor que vai ser pago, um valor mínimo. E este valor tende a ser exatamente o valor máximo, bem se sabe. Então, não há uma venda da força de trabalho de forma autônoma. Depois, você tem essa jornada de trabalho de 12 horas para esse autônomo, o que é um absurdo total do ponto de vista humano e jurídico. E você tem, para esse suposto autônomo, toda uma previsão de forma de controle que se confere às empresas das atividades e, inclusive, formas de punição. Prevendo inclusive que as empresas podem suspender do trabalho os trabalhadores que não atendam as determinações e as formas exigidas pelo trabalho. Isto jamais se pode conceber como um trabalho autônomo. Isso é um trabalho subordinado, um trabalho vinculado, controlado, e que, ao mesmo tempo, não tem contrapartida de direitos. A única contrapartida que tem é a vinculação à Previdência Social, o que é o mínimo, mas que não atende, por exemplo, as questões pertinentes ao acidente do trabalho. Por exemplo, nós tivemos o caso de um entregador do Rio de Janeiro que foi baleado, tipicamente isso seria um acidente de trabalho, com garantias diferentes daquelas que se têm com relação à doença propriamente dita, em termos indenizatórios inclusive. Não se vai falar disso dentro dessa lei. É pura e simplesmente uma contingência social sem responsabilidade nenhuma da empresa, ao passo que não é nada disso. Então, juridicamente o projeto de lei é um retrocesso e, ao mesmo tempo, legitimador de muitas atrocidades que existem no ambiente do trabalho no Brasil ainda hoje.

Fonte: Sul 21
Texto: Lúís Gomes
Data original da publicação: 09/03/2022

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