Sobre elas, mas não por elas: as mulheres e o trabalho do cuidado

Fotografia: ONU Mulheres

A entrada das mulheres no mercado de trabalho não transformou a histórica divisão sexual do trabalho instaurada em nossa sociedade. Mesmo contribuindo financeiramente – ou arcando em sua totalidade – com as contas da casa, as mulheres seguiram responsáveis pelo cuidado do lar e da família.

Luana Hordones, Isabela Araújo e Thais Lemos Duarte

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 20/08/2020

Em meio à pandemia do novo coronavírus, Mirtes – uma mulher negra, da periferia de Recife – precisava trabalhar, mas não tinha com quem deixar o filho, o pequeno Miguel de cinco anos. A avó geralmente cuidava dele enquanto Mirtes saía para seu emprego como empregada doméstica. Só que, naquele dia em específico, esta senhora foi ao médico e, por isso, não pôde ficar com a criança. Então, Mirtes decidiu levar o menino consigo para o que seria mais um dia ordinário. No entanto, enquanto passeava com o cachorro dos patrões, Mirtes deixou Miguel com Sari, a dona da casa. Diante da agonia do menino que procurava a mãe, Sari o deixou vaguear sozinho pelo prédio, resultando em grande tragédia: a criança morreu na frente de Mirtes, logo após cair de um dos andares do edifício.

Sem querer reduzir a dor de Mirtes, de Miguel e de sua família, “cuidado”, “gênero”, “divisão sexual do trabalho”, “maternidade” e “desigualdades” são algumas palavras-chave que ajudam a interpretar este triste e revoltante caso. Todas serão tratadas no texto de hoje, já que a coluna “Por Elas” não poderia deixar de jogar luz às assimetrias de gênero, somadas a aspectos de classe e de raça, que se tornaram ainda mais profundas durante o cenário de Covid-19.

Afinal, o que se pode depreender destas palavras?

Ainda que corra por aí o imaginário de que as mulheres alcançaram posições de poder importantes em nossa sociedade e, por isso, estão em pé de igualdade aos homens, histórias como a de Mirtes e do menino Miguel apontam justamente o contrário. Não à toa, apesar dos avanços conquistados e dos compromissos assumidos por diversos países, inclusive pelo Brasil, a inserção das mulheres na esfera profissional ainda está longe de ser semelhante à dos homens. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indicam que apenas 43% delas têm participação na força de trabalho, enquanto os homens chegam à 78%. Ou seja, uma diferença em torno de 35%. 

Como ocorre em outras partes do mundo, muitas mulheres de nosso país ainda ficam restritas ao ambiente doméstico, dedicadas tão só a maternidade e ao cuidado de outros parentes. No entanto, um grande conjunto se lançou ao cenário público por questões econômicas. Segundo o Ipea, 43% das chefes de domicílio no Brasil vivem em casal, sendo que 30% têm filhos e 13% não. Já o restante das 34,4 milhões das responsáveis pelo lar se dividem entre mães solos (32%), as mulheres que vivem sozinhas (18%) e as que dividem a casa com amigos ou parentes (7%). No entanto, não necessariamente elas recebem remuneração e reconhecimento adequados em face das tarefas que desenvolvem. Segundo o IBGE, mesmo com uma queda na desigualdade salarial entre 2012 e 2018, as trabalhadoras ganham, em média, 20,5% a menos do que os homens no Brasil.

Para além do sustento familiar, muitas dessas mulheres são responsáveis também pelo cuidado doméstico. E falar desta tarefa é evidenciar ainda mais as desigualdades de gênero existentes. A entrada das mulheres no mercado de trabalho não transformou a histórica divisão sexual do trabalho instaurada em nossa sociedade. Mesmo contribuindo financeiramente – ou arcando em sua totalidade – com as contas da casa, as mulheres seguiram responsáveis pelo cuidado do lar e da família. Em contraste, os homens mantiveram sua posição de atuação predominante no âmbito público. Em casa, eles costumam realizar apenas pequenos reparos.

Embora essenciais à vida privada, as tarefas de cuidado são sistematicamente desvalorizadas. O tempo dedicado a essa atividade é socialmente invisível, de modo que 75% das mulheres e das meninas que desenvolvem trabalho doméstico não são remuneradas. Em consequência, estabelece-se um acúmulo de desvantagens na trajetória de pessoas que sacrificam parte de suas vidas para cuidar de seus dependentes. Todos os dias, elas trabalham no âmbito doméstico até três vezes mais em relação aos homens Isso fica ainda mais marcado quando associamos estas questões de gênero a aspectos de raça e de classe.

Ou seja, se as mulheres brancas e de classes abastadas exercem, em certo grau, tarefas de cuidado, essa função é ainda mais exacerbada entre negras e pobres. Além de cuidar de sua família, este segundo grupo parece também ter transferido as ações desenvolvidas em suas casas a outros espaços. Entre outras profissões, muitas destas mulheres são empregadas domésticas, cuidadoras de pessoas idosas, babás, técnicas e auxiliares de enfermagem. Isto é, se enquadram nas profissões ditas “femininas”, geralmente depreciadas socialmente e, assim, bastante mal remuneradas. Não seria nada exagerado sugerir, então, que o peso das desigualdades de gênero é ainda mais severo para mulheres economicamente e socialmente vulneráveis, uma vez que elas assumem os cuidados que muitas vezes as pessoas em posição de privilégio deixam de exercer, não ganhando o devido reconhecimento.

Em verdade, embora sejam as representantes majoritárias das funções ditas femininas, muitas dessas mulheres também desempenham atividades reconhecidamente “masculinas”, como as que envolvem força, resistência e liderança. Por exemplo, embora os homens constituam maioria, há uma presença cada vez mais significativa de mulheres nos órgãos do sistema de justiça criminal, como as polícias e os sistemas prisionais. Entretanto, a despeito de certo avanço, em boa medida, as corporações passaram a incorporá-las ao perceberem ser interessante reproduzir a narrativa de que a presença feminina incitaria o cuidado ao outro, reproduzindo clivagens de gênero. Afinal, na ótica das organizações, as mulheres tornariam as ações desempenhadas mais “humanizadas”. Elas seriam mais detalhistas e observadoras.

Estas reflexões indicam não ser possível pensar que a lógica das relações de gênero se estrutura a partir de meras diferenças biológicas entre homens e mulheres. Óbvio que há distinções de ordem natural, mas estas não dão conta de traduzir as assimetrias de poder e de dominação que regem nossa sociedade, que se tornam mais marcadas ao se levar em consideração aspectos de classe e de raça. Logo, destina-se às mulheres a tarefa de cuidado, pois é de interesse de grupos dominantes que estas pessoas desenvolvam tal tipo de função, normalmente menosprezada. Mais cruel ainda é o fato de se naturalizar a acumulação de atividades de diferentes ordens, de modo que as mulheres pobres e negras vendem sua força de trabalho a preços aviltantes, devendo ainda chegar em casa para enfrentar outros tipos de responsabilidades. 

E, assim como sistematicamente apontado em relação a outros problemas sociais, indicamos aqui que a pandemia no novo coronavírus tem acentuado as desigualdades de gênero.

O que mudou com a pandemia?

Em primeiro lugar, é possível indicar que a pandemia explicitou, ainda que momentaneamente, a intensa rotina de trabalho doméstico a que as mulheres estão normalmente submetidas. Em segundo, a despeito dessa maior visibilidade, pouco se tem feito, de modo que o cenário mudou muito pouco, quase nada. Não à toa, 50% das mulheres do país disseram ter começado a cuidar de alguém durante a pandemia, ao passo que 41% das que continuaram trabalhando – com a manutenção do salário – afirmaram estar atualmente mais sobrecarregadas.

Na falta de creche, de escola e de rede de apoio – paga ou não – o cotidiano de muitas mulheres sofreu significativos impactos negativos. A demanda por cuidado se potencializou, em especial entre famílias com crianças e com outros dependentes. Em núcleos monoparentais, os quais não são desprezíveis em número no Brasil como já dissemos, o problema se agudizou ainda mais. Algumas mulheres, autorizadas a realizarem o tal home office, se depararam com uma jornada ininterrupta de trabalho. Com o trabalho colado ao corpo, entre demandas intermitentes de cuidado e de produção, estão cada vez mais sobrecarregadas e adoecidas. No âmbito da carreira acadêmica, por exemplo, tem chamado a atenção um dado: o número de submissões de artigo a revistas científicas entre as mulheres despencou desde o início da quarentena, ao passo que a produção dos homens teve um aumento considerável.

Já outras mulheres ficaram impossibilitadas de trabalhar, sofrendo com a súbita perda de renda. Afinal, como ficariam seus filhos? Ainda, como seria o caso de Mirtes, mãe de Miguel, há aquelas que tentam conjugar suas atividades na rua, a fim de manter o orçamento doméstico, com a presença contínua das crianças em casa. Nestes casos, recorre-se a geralmente minguada rede de apoio, constituída, sobretudo, por mulheres idosas, personificadas nas avós ou nas tias. Ao invés de estes indivíduos receberem o cuidado devido em momento de crise de saúde, também veem as suas atividades se acumularem em decorrência das funções domésticas.

Dentro do grupo de mulheres que seguiram trabalhando fora de casa, não podíamos deixar de olhar aquelas envolvidas em atividades de saúde pública. Em contextos como o de agora, dentre os trabalhos considerados femininos, os associados a esse âmbito costumam ser percebidos como essenciais, embora sejam esquecidos em outros momentos. Não foram raras as vezes em que se indicou nos jornais que “o combate ao coronavírus tem rosto feminino”. As mulheres constituem 65% dos profissionais de saúde no Brasil, ao passo que elas compõem 80% da área de enfermagem.

Portanto, são as mulheres trabalhadoras que ocupam as profissões com maior perigo de infecção pelo novo coronavírus. O risco de contágio entre as enfermeiras é de 80, em uma escala de 0 a 100, enquanto a ameaça entre as cuidadoras de pessoas idosas é de 77. Para além das profissionais de saúde, é importante destacar que as classes médias e altas estiveram longe de se destituir de alguns de seus privilégios durante a pandemia, não dispensando de modo remunerado os serviços desempenhados por suas empregadas domésticas. Neste aspecto, além da já citada morte do menino Miguel, ressaltamos que o primeiro óbito por Covid-19 no Rio de Janeiro foi de uma trabalhadora doméstica que teve contato com seus patrões que voltaram contaminados das férias na Itália.

Qual final nós mulheres queremos?

Em meio à pandemia do novo coronavírus, Mirtes – uma mulher negra, da periferia de Recife – precisava trabalhar, mas não tinha com quem deixar o filho, o pequeno Miguel de cinco anos. A avó geralmente cuidava dele enquanto Mirtes saía para seu emprego como empregada doméstica. Só que, naquele dia em específico, esta senhora foi ao médico e, por isso, não pôde ficar com a criança. Então, Mirtes ligou para seus patrões, explicou a situação e foi liberada de suas atividades até o fim da crise de saúde, sem sacrifício ao seu salário. Sari e seu marido compreenderam sua posição de privilégio e, assim, Mirtes pode cuidar de Miguel, desonerando sua mãe idosa dessas atividades de cuidado. Ao final da pandemia, ele voltou à escola e Mirtes retornou ao trabalho tranquila, sabendo que seu filho estava em segurança.

Embora ainda não resolva muitas desigualdades tratadas neste texto, este poderia ter sido um final um pouco melhor para a triste história com a qual embasamos os debates de hoje. Infelizmente, o relato é fictício. Quando usadas em conjunto, palavras como “cuidado”, “gênero”, “divisão sexual do trabalho”, “maternidade” e “desigualdades podem ter efeitos aterradores às trajetórias de mulheres. No cenário em que vivemos atualmente, as consequências destes termos ganham contornos ainda mais perversos, aprofundando desigualdades. Se a família se estrutura pelo cuidado, este ato se pauta em boa medida pela exploração do trabalho feminino, em especial, negro e pobre.

O final que queremos apenas se delineará quando forem desenvolvidas ações que não só são “por elas”, mas também “sobre elas”, se atentando às características e às necessidades de todas as mulheres, independentemente de sua classe e de sua raça.

Luana HordonesIsabela Araújo e Thais Lemos Duarte são pesquisadoras do CRISP na Universidade Federal de Minas Gerais e escrevem para o Justificando na coluna Por Elas – Pandemia e Segurança.

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