O argumento de que a reforma trabalhista e a flexibilização da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) aumentariam o número de empregos “não tem lógica econômica”. A análise é do advogado Sérgio Batalha, que advoga na área trabalhista há mais de 30 anos.
Segundo ele, um maior número de postos de trabalho está intrinsecamente ligado ao crescimento da produção econômica e ao poder de consumo. As experiências de recentes de reformas nesta área em outros países mostram, na verdade, o crescimento do desemprego.
Para ele, a flexibilização da legislação que protege os trabalhadores brasileiros desde 1943 é, na verdade, estratégia para aumentar a margem de lucro das empresas em um momento de recessão econômica. “O que se chama de ‘flexibilizar direito’ é retirar ou reduzir alguma coisa do trabalhador. Não tem mágica”, disse.
Do Rio de Janeiro, Batalha concedeu entrevista ao Brasil de Fato por telefone e afirmou que a demanda para a redução dos direitos trabalhistas é dos setores mais atrasados do empresariado. Para ele, a legislação brasileira não é extravagante e está compatível com a de outros países na América Latina e Europa.
Batalha diz que o patronato anseia pela proposta do “negociado sobre o legislado”, que respeita a prevalência das negociações em detrimento da lei, para extrair vantagens da falta de representatividade de alguns sindicatos no Brasil.
Já os anúncios parcelados do governo não eleito de Michel Temer são acenos a grupos que apoiaram o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Confira abaixo a entrevista completa:
Brasil de Fato – A reforma trabalhista é defendida pelo governo Temer com o intuito de “manter empregos”. A flexibilização realmente garante o aumento de postos de trabalho?Sérgio Batalha – Isso não tem lógica econômica. Também é uma falácia que a CLT é de 1940 e que não mudou nada desde aquela época. Em 30 anos como advogado trabalhista, já vi muitas alterações. É uma falácia porque 70% da CLT foi modificada desde 1943, quando ela foi promulgada
O que realmente cria emprego é produção econômica. Por exemplo, você tem uma padaria e precisa de cinco funcionários para produzir mil pães por dia. Se ficar mais barato pagar o custo da mão de obra destes cinco empregados, com essa diferença você não vai contratar um funcionário a mais para ficar fazendo nada se você só vende 1 mil pães. E, hipoteticamente, se você gastava R$ 10 mil com a mão de obra e passa a gastar R$ 8 mil, você vai incorporar este lucro excedente.
Precisamos discutir abertamente o que se pretende a reforma. A primeira coisa que se estranha é que não vemos nenhum trabalhador nem sindicato pedindo reforma da CLT. Só o empresariado. E o governo agora está encaminhando essa intenção. É evidente que quem tem interesse na reforma é o empresariado. Isso não é dito, mas é óbvio.
O empresariado quer a reforma basicamente porque, no momento de recessão, ele quer aproveitar para reduzir o custo da mão de obra, garantir o aumento da margem de lucro e a manutenção da receita mesmo com a queda da produção. O que se chama de ‘flexibilizar direito’ é retirar ou reduzir alguma coisa do trabalhador. Não tem mágica. A outra opção seria reduzir tributos em cima da folha. E isso o governo não vai fazer. Ao contrário, disse que vai rever algumas desonerações.
Para te dar um dado mais objetivo: após a reforma trabalhista na Espanha [em fevereiro de 2012], não houve criação de emprego. Na verdade, houve um aumento do desemprego [a taxa era 23,5% em fevereiro de 2012 e, em agosto deste ano, 20%, após um pico de 26,3% em fevereiro de 2013]. Historicamente, onde se fez reforma trabalhista e se reduziu alguns direitos, não houve redução de desemprego.
Na minha visão, se você reduzir o 13º salário, o pagamento das férias, permitir mais trabalho sem pagamento de horas extras, a tendência é a redução de consumo. Você tira da massa salarial, e isso tem um efeito recessivo na economia.
Basta fazer uma projeção simples: imagina o que seria do comércio se o 13º acabasse? Seria um desastre. Acho que os próprios comerciantes, após o primeiro ano, iam ficar desesperados e implorar para o governo voltar com o 13º, porque o impacto seria catastrófico.
Quem é pró-reforma argumenta que as leis são rígidas e impedem o crescimento econômico da indústria, por isso a modernização ela seria necessária…
Sérgio Batalha -Primeiro, eles usam conceitos muito subjetivos. “Rígido”, “paternalista”… Rígido é o que eles gostariam de flexibilizar. Depois de algum tempo, eles abrem nas entrelinhas: “Nós gostaríamos que a negociação coletiva prevalecesse sobre a legislação”.
É uma discussão complicada. O que se quer é fazer com que a negociação coletiva prevaleça sobre a legislação, sem que se tenha uma estrutura sindical compatível com isso. No Brasil, o sindicato representa toda categoria, independentemente do número de associados que ele tenha. Então, pode existir um sindicato dos comerciários que tenha mil sócios, sendo que são 500 mil comerciários no Rio de Janeiro, por exemplo.
Pelo sistema atual, [a diretoria eleita] só representa esses trabalhadores, numa negociação coletiva, para receber benefícios. Então, o sistema, quando ele foi bolado no período do Vargas, tinha certo equilíbrio. Não que eu goste dele. Ele tem um equilíbrio porque há uma baixa representatividade do sindicato, quase que uma ilegitimidade em falar em nome de todos os trabalhadores, mas esse sindicato só pode te trazer benefícios, não pode prejudicar.
Agora, imagine dar a este mesmo sindicato o poder de transacionar todos os direitos legais do empregado. É uma situação absurda! No Chile, onde você tem um contrato coletivo, o sindicato só representa os associados. Então, na verdade, a empresa vai ter que negociar com um sindicato forte que tem a maioria dos empregados como associados. E, evidentemente, a negociação se dá em outro patamar, porque aquela diretoria vai ser muito pressionada por aqueles associados. Se ela desagradar, eles não serão reeleitos.
É pela falta de representatividade ser a regra no Brasil e por um sindicato muito representativo e conectado com a categoria ser exceção que o empresariado quer essa negociação coletiva. Por isso o patronato está querendo tanto essa ampla negociação. Eles esperam extrair vantagens dessa falta de representatividade dos sindicatos.
Não é uma forma justa de modificar a legislação trabalhista. Eu acho que isso é uma forma até maliciosa. Para mexer na estrutura sindical e criar uma ampla negociação, um contrato coletivo que prevaleça sobre garantias mínimas legais, teria que mexer em toda estrutura sindical e garantir um sindicato representativo da categoria.
A negociação coletiva existe e é livre. O que acontece é que existe um mínimo de garantias legais
Outra bobagem que o governo falou: “quero legalizar a jornada 12×36, eu quero poder garantir a compensação durante a semana”. Ora, isso já existe. Várias convenções coletivas são aceitas. Não é verdade que as empresas não consigam. Inclusive, a legislação de banco de horas já vigora no Brasil. Então, o que mais que se quer? O governo e o empresariado não estão sendo transparentes.
Essa é uma das questões. A reforma realmente vai oficializar práticas que já existem?
Sérgio Batalha – Um dos problemas da discussão da reforma, enquanto o projeto não é enviado para o Congresso, é que o governo e o patronato não dizem objetivamente o que querem. Se um empregado trabalha 12 horas por dia e a jornada dele é 8 horas, você paga as 4 horas extras e esse empregado não tem direito nenhum em relação a você.
Eu não acredito que se esteja fazendo tanto barulho sobre a reforma trabalhista para se modificar um detalhe como admitir que se possa chegar a 12 horas em vez das 10 horas que são previstas hoje na CLT. Se for isso, não há drama. Mas eu acho que há a pretensão de se avançar sobre outros direitos
Dá vontade de questionar a FIESP, que não é uma entidade de juristas nem de uma academia do Direito do Trabalho, ou seja, não querem modificar a CLT para aperfeiçoar a legislação. Não precisa ser nenhum gênio pra perceber que o interesse é retirar direitos dos trabalhadores, gastar menos com a mão de obra.
Só em 2015, foram recebidos nas varas trabalhistas mais de 2,6 milhões de processos. O maior número já registrado. Que relação se pode fazer destes dados com o andamento da reforma?
Sérgio Batalha -O aumento dos processos trabalhistas tem relação provável com o aumento das demissões. Há processos quando há demissões. Só quando o empregado é dispensado que ele procura a Justiça do Trabalho, porque se ele reclamar trabalhando, ele é demitido. Eu acho que o aumento de processos tem a ver com o processo de demissões em 2015
O empresariado diz que “há muitos processos porque a legislação brasileira é protetiva, complicada e isso gera muitas interpretações”. Mas, na verdade, isso não é fato. A legislação brasileira é muito similar, em vários aspectos, ao que se tem em todos os países latino-americanos. Claro que há pequenas variações de país para país, mas são regras absolutamente comuns na América Latina toda.
Os EUA, sim, têm um sistema extravagante relação ao mundo. Não é o Brasil que está diferente. Alemanha, França, Portugal e Itália têm legislações trabalhistas até mais rigorosas que a do Brasil. Por exemplo, na França, não há a possibilidade da dispensa sem motivação. Para se demitir um empregado você tem que ter, não exatamente a justa causa brasileira, mas uma motivação técnica ou econômica, além de uma eventual indisciplina.
O Brasil tem um grande número de processos trabalhistas porque o empresariado brasileiro tem uma cultura, infelizmente, de descumprir a legislação trabalhista. Isso é um fato. Eu sou advogado há muitos anos e posso afirmar o seguinte: quando o empregador é correto, cumpre a legislação trabalhista, ele tem muito menos processos do que o empregador que não cumpre.
Na Justiça do Trabalho, de 60% a 80% dos processos trabalhistas são questões elementares de descumprimento da legislação trabalhista, como a não anotação da carteira, não pagar verba rescisória, não pagar hora extra…
Qual seria o impacto da possibilidade de se terceirizar as atividades-fim?
Sérgio Batalha – Aí sim haverá uma explosão de processos na Justiça do Trabalho. A terceirização das atividades-fim levará a uma precarização da mão de obra. Essas empresas prestadoras normalmente não têm sequer idoneidade financeira. Muitas vezes são montadas quase como um negócio de oportunidade. Muitas vezes, elas quebram e não pagam as verbas rescisórias dos seus prestadores de serviços. E, obviamente, geram demandas da Justiça de Trabalho.
No governo FHC, houve uma tentativa de dar um “liberou geral” na terceirização, que foram as cooperativas. Ele fez uma alteração na CLT até hoje está lá. Ela dizia que o trabalho de cooperativa não tinha vínculo de emprego. A ideia era efetivamente cortar custos. Isso foi feito por várias empresas e gerou uma experiência histórica, uma avalanche de processos. O resultado foi ruim até para as próprias empresas. Pode ver que hoje em dia já não se fala mais em cooperativa de trabalho.
Agora, a nova onda é a terceirização. A ideia é encontrar uma forma de precarizar e reduzir o custo com a mão de obra. Mas por que o terceirizado é melhor que o efetivo? Não tem lógica isso. Por que você teria algum ganho de produção ao se terceirizar sua atividade-fim? A única explicação é que é bom para o empresário, que contrata um empregado mais barato.
E sobre os novos modelos de trabalho que poderão ser propostos, o parcial e o intermitente… Dá para prever as consequências disso?
Sérgio Batalha – É difícil adiantar alguma coisa porque, mais um vez, o governo não disse claramente o que ele pretende. Pagamento por hora de trabalho já existe e tem legislação que prevê isso. Não é muito comum, mas há previsão de pagamento por hora. Professor, por exemplo, recebe por hora-aula.
Se fala também em uma suposta remuneração de produtividade, mas [o governo] tem que explicar o que é isso. Na minha avaliação, este tipo de modelo é também uma tentativa de reduzir custo com mão de obra.< Postos de emprego são criados por produção. Não conheço ninguém que vai contratar um empregado a mais só porque é barato. Para o empresário, com raras exceções, isso não é tão interessante. Se ele precisa do empregado, precisa em tempo integral. São raros os casos em que ele vai precisar dos empregados pontualmente. O governo tem que explicitar melhor qual a intenção dele nesse ponto… Os anúncios do governo, sem dar muitos detalhes, e em muitos casos recuando depois, parece uma tentativa de sentir como a população vai receber as medidas…
Sérgio Batalha – Esse governo veio com alguns apoios de setores de empresariados mais conservadores, como a Fiesp. E esse pessoal está cobrando que se atenda a determinadas pautas. Uma delas é a reforma trabalhista. O governo, então, quer acenar em alguns momentos para o empresariado e divulga algumas coisas. O problema é que divulga genericamente, sabendo que a ideia de cortar direitos trabalhistas é muito impopular.
Essa discussão existiu na última eleição presidencial e foi até uma das razões da vitória da presidente [Dilma Rousseff]. Ela defendeu que não reduziria a jornada, enquanto Aécio tinha um discurso mais dúbio. Ou seja, já havia na população uma percepção ruim.
Um jornal publicou uma notícia engraçada esta semana porque parece que ele entrevistou o [Celso] Russomanno, candidato a prefeito em São Paulo, e indagaram a opinião dele sobre a reforma trabalhista. Ele teria dito, até com uma franqueza excessiva, “olha eu não posso responder em época de campanha porque vou perder voto por isso”. O mesmo acontece com o governo que não quer revelar o que ele pretende fazer claramente. Por isso, esses recuos, esses anúncios parciais.
Me parece que estão tentando disfarçar o pacote. O governo está apostando na possibilidade de o empresariado retirar direitos por meio de norma coletiva e não simplesmente acabar com eles. Por isso, a linguagem dúbia
Por fim, qual o perfil de trabalhador que poderá ser mais afetado pela adoção dessas medidas?
Sérgio Batalha – Eu acredito que as categorias mais afetadas são as dos setores que têm uma utilização de mão de obra mais intensa, porque impacta mais a curto prazo para o empresário. Em algumas categorias, em que você precisa ter uma mão de obra muito qualificada e que utilizam menos gente, o próprio empresário não tem interesse em terceirizar ou precarizar muito, com a preocupação de uma queda na qualidade da produção dele, que pode ter um impacto ruim sobre as vendas.
Talvez algumas indústrias, como a construção civil e outras em que se usa muita mão de obra sem tanta preocupação com a qualidade e a formação dela. Normalmente esses setores acabam sendo mais fragilizados e submetidos a essas terceirizações.
Eu até costumo dizer que esse tipo de demanda para redução dos direitos trabalhistas é de setores mais atrasados do empresariado. Geralmente, os setores de ponta da economia não têm muito essa demanda. Eles gostariam de ter regras mais flexíveis, claro. Mas geralmente para coisas muito pontuais, como uma negociação com o executivo. Mas não é um aspecto decisivo para eles.
Setores mais atrasados do empresariados, que não são tão de ponta, é que geralmente têm essa cultura de querer reduzir o custo da mão de obra para ter um “ganhozinho” marginal.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Rute Pina
Data original da publicação: 16/09/2016