Ser trabalhador e ser assistido: fronteiras permeáveis na questão social

Cristina Almeida Cunha Filgueiras

Fonte: Revista Brasileira de Sociologia, v. 5, n. 9, p. 9-32, jan./abr. 2017.

Resumo: O artigo examina um aspecto da relação atual entre trabalho e proteção social para o qual a literatura nas Ciências Sociais – principalmente a brasileira – não tem estado atenta. São analisadas mudanças ocorridas nas duas últimas décadas na França e no Brasil, considerando que, apesar de existirem muitas diferenças entre esses países, há evidências de convergência entre eles no que diz respeito às tendências de tratamento da questão do trabalho e da proteção de setores desfavorecidos. Em primeiro lugar, abordaremos elementos atuais da questão social, o que nos leva a assinalar um primeiro tipo de convergência entre os dois países, relacionado às mutações no mundo do trabalho e suas conexões com a precariedade e a pobreza. Em segundo lugar, falaremos sobre a maior importância dada atualmente à assistência como política pública e os processos de ‘ativação’ dos beneficiários de programas públicos. Em terceiro lugar, discutiremos como as fronteiras entre trabalhadores e assistidos se tornaram permeáveis. Na última parte do artigo concluímos que, apesar de relevantes diferenças entre França e Brasil, suas políticas de proteção social estão confrontadas a tensões semelhantes, dentre elas o surgimento do ‘trabalhador assistido’ e a aproximação entre a esfera do trabalho e o direito à assistência.

Sumário: O trabalho permanece no centro da questão social | Precariedade e segmentação | Assistir aos que não estão protegidos pelo trabalho | Na fronteira ou no meio do caminho? | Ativação dos assistidos para o trabalho | Distâncias e proximidades | Referências

O trabalho permanece no centro da questão social

Antes da era industrial, a pobreza e a mendicância já se encontravam no coração dos problemas sociais. Com o nascimento da sociedade industrial, a questão social se ligou estreitamente ao mundo do trabalho, apesar da pobreza não ter desaparecido. Na sociedade capitalista a integração dos trabalhadores tornou-se desafio econômico, social e político central. A pobreza associada ao trabalho assalariado era evidente, as condições de vida das massas operárias era uma das suas maiores expressões. Até chegar ao Welfare State, em meados do século XX, as nações europeias, dentre elas a França, empregaram muito tempo e esforço para tratar conflitos distributivos, estabelecer princípios de justiça social e criar um círculo virtuoso entre o social e a economia. Outros países do mundo, porém, não avançaram muito nessa direção pois neles o mercado de trabalho mantém grande parte da população ativa em empregos sem proteção e as políticas sociais são com frequência excludentes. O que se observa atualmente é que as conquistas sociais vêm sendo ameaças em grande parte dos países onde foi constituído um sistema de proteção social.

Segundo R. Castel (1995), a tensão entre direito à assistência e participação no trabalho ocupa lugar central desde a criação dos primeiros dispositivos do Estado social. Foi fundamental adotar na Europa, há muitos séculos, medidas para distinguir entre os indivíduos segundo sua condição para o trabalho e estabelecer que somente os não válidos poderiam receber socorro e assistência. É também antiga a preocupação de não permitir que a ajuda social represente um desestímulo para o trabalho.

Na França, através de um longo processo, o Estado assumiu o papel de redutor dos riscos sociais, com a criação de direitos e de dispositivos sociais que inscreveram os indivíduos em coletivos protetores. Segundo Castel (2009), para os indivíduos não proprietários e que vivem do trabalho isto representou uma espécie de propriedade social associada à condição de trabalho e lhes deu possibilidade de enfrentar as incertezas e adversidades. No Estado social moderno, a socialização dos riscos supõe a existência de solidariedade como expressão de engajamento comum. Um exemplo de que as respostas às incertezas se tornaram coletivas é a criação do seguro desemprego. Com ele, a falta involuntária de trabalho, seria desde então atenuada pelo apoio financeiro concedido ao desempregado pela sociedade durante um certo tempo.

A abrangência e o conteúdo que cada sociedade dá à proteção define o padrão de bem-estar possível aos seus membros. Lembremos que a criação de uma esfera de proteção dos indivíduos que seja autônoma tanto às relações mercantis quanto às dinâmicas familiares constitui um critério essencial do acesso aos bens e serviços nos diferentes modelos de Welfare State (ESPING-ANDERSEN, 1991) e que esses modelos são influenciados por fatores culturais e simbólicos tais como as noções dominantes de família e papel da mulher (DRAIBE E RIESCO, 2006).

O mundo do trabalho está estreitamente conectado ao edifício da proteção e do bem-estar social. O assalariamento não é a única forma de participação na economia, porém em grande parte dos países essa forma de organização da produção se generalizou. Contudo, nas últimas décadas do século XX o capitalismo mudou em diversos aspectos e perdeu força a formalização das relações de trabalho que era acompanhada de regulação e direitos. No contexto da economia globalizada, os países estão confrontados aos problemas de redução dos postos, diversificação dos tipos de emprego e liberalização das relações contratuais, frequentemente acompanhada de redução dos direitos sociais. Diante disso, Castel (2009) afirma que a questão social adquiriu a forma de risco de extensão do precariado. A reindividualização das trajetórias laborais e das incertezas, influenciadas pela fragilização das famílias e das respostas institucionais, são outros componentes do núcleo da questão social atual.

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Cristina Almeida Cunha Filgueiras é doutora em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS (Paris, França). Pós-doutoramento no Centre Max Weber/Université Lyon Lumière II (Lyon, França). Graduação em Ciências Sociais e Mestrado em Educação: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); docente do Programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Pucminas).

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