Ser humano está à frente do poder econômico, diz ministro do TST

A terceirização irrestrita e a prevalência do negociado sobre o legislado, duas das principais propostas de flexibilização das leis trabalhistas em discussão no país, pertencem ao passado, contrariam a Constituição e o próprio Estado democrático de direito, na visão do jurista Mauricio Godinho Delgado, ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Também embutem sofismas e perversidade, disse o magistrado, ao abrir, na quinta-feira (17/11) à noite, em São Paulo, um encontro nacional de advogados trabalhistas. “Se o objetivo das reformas é buscar a segurança jurídica, basta cumprir a orientação jurisprudencial, que fixa balizas muito claras”, declarou Godinho, pouco antes de iniciar a sua palestra, durante a qual representantes da magistratura e da advocacia fizeram críticas ao que chamam de tentativas de “desmonte” do Judiciário.

No tribunal desde 2007, Godinho é um dos 18 ministros do TST, de um total de 27, que assinaram ofício encaminhado no final de outubro à presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, com críticas ao ministro Gilmar Mendes, que recentemente fez ataques ao Judiciário trabalhista, falando em favorecimento ao trabalhador e prejuízo às empresas. Durante sua palestra no evento – promovido pela Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (Abrat) e pela Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) –, o magistrado não fará referência ao episódio, mas defenderá a Constituição brasileira, por seus princípios “humanísticos e sociais” próprios do Estado democrático de direito, pondo “a pessoa humana à frente do poder econômico, no vértice, no ponto mais importante da ordem jurídica”.

Em relação à tese do negociado sobre o legislado, o ministro do TST disse que à negociação coletiva cabe aperfeiçoar as condições e as relações do trabalho, “não tendo o propósito histórico e constitucional” de piorá-las. E contestou quem fala em “engessamento” da lei como fator prejudicial à economia.

“Não tem sentido transformar o sindicalismo em instrumento de precarização trabalhista. A legislação tem o papel de incrementar a força do mercado interno, estimulando a atividade empresarial pelo aumento do número de consumidores, o que demonstra que ela não impede o desenvolvimento da economia brasileira. Esse argumento não é comprovado pelos fatos. Se o indivíduo não tiver um nível adequado de proteção trabalhista, ele não se realiza como pessoa e ao mesmo tempo não integra o mercado consumidor, não favorecendo a própria economia”, afirmou Godinho.

Sobre a terceirização, o ministro do TST defendeu limites à prática, para evitar uma precarização “inapelável” da força de trabalho. Uma terceirização irrestrita, acrescentou, eliminaria inclusive as categorias profissionais, em desrespeito à Constituição de 1988. “Além disso, a OIT (Organização Internacional do Trabalho), em sua Constituição, de 1944, proíbe que o trabalhador seja transformado em mercadoria, enquanto que a Constituição da República afirma o princípio da centralidade da pessoa humana na ordem jurídica”, argumentou. “Dessa maneira, a terceirização generalizada inverte gravemente a estrutura e a principiologia constitucionais.”

Neste momento, ele vê a Carta de 1988 “fortemente ameaçada”, lamentando a ausência de um “debate democrático” na mídia, que segundo o magistrado se apresenta de forma uníssona, atuando em uma mesma direção – contra os direitos sociais. “Os astros se reuniram de uma maneira um pouco perversa contra a justiça social”, comentou no início de seu pronunciamento a uma plateia de aproximadamente 100 pessoas, na sede da Associação dos Advogados, na região central de São Paulo.

Capitalismo

Entre os princípios contidos na Constituição, está a valorização do trabalho e da livre iniciativa, da qual se falava, pontualmente, desde a Constituinte de 1823. A atual Carta também trata do tema, diz Godinho, “mas é um capitalismo gerado sob os moldes de um Estado democrático de direito”. Assim, conclui, todos os institutos do Direito do Trabalho estão submetidos a essa estrutura. Mas ele lamenta dizendo que “hoje se retomaram temas do passado, como se estivéssemos sob o império da Constituição de 1891, da livre iniciativa sem freios”.

Para o ministro, caberá ao capitalismo superar fórmulas de gestão que suponham “mercantilização da pessoa humana” ou uma “gradativa degradação”. “Não há argumento econômico que justifique tamanho vilipêndio da pessoa humana. Isso é produto apenas da ganância levada à teorização jurídica”, critica.

Ainda sobre o negociado em relação ao legislado, o magistrado diz se tratar de outro tema “que não tem nenhum respaldo constitucional, sociológico, histórico”. Ele cita novamente a Constituição, instrumento que teria permitido avanços no processo de negociação coletiva. Até então, acrescenta, o poder normativo desestimulava as negociações, transferindo a responsabilidade para o Judiciário.

“Retomar esse tema hoje, de maneira totalmente subvertida, realmente é de um sofisma que faria invejar os sofistas gregos. É um remédio para piorar as condições de vida dos trabalhadores. A tese é de uma perversidade implacável. O conceito de Estado democrático de direito traz uma mensagem muito clara: não existe sentido em adotar uma tese de desmontar a caracterização da negociação coletiva.”

Godinho também rebate o argumento de que a medida se justificaria em um contexto de déficit fiscal do Estado, prevendo um cenário ainda pior nessas condições. As futuras negociações – “inúmeras, milhares, reiteradas” – vão “esterilizar” a natureza salarial das verbas trabalhistas, diz o juiz. Além da perda para os trabalhadores, também haverá prejuízo ao Estado, com menos arrecadação. “As contribuições previdenciárias vão ser feridas de morte.” Assim, a possível mudança não prejudicaria apenas o pobre, tese aceitável para quem tem mentalidade do século 19 ou 20, afirma o ministro do TST, mas causará um “rombo fiscal terrível”.

“Essas teses não foram enterradas no passado por razões extrajurídicas”, finalizou o magistrado. “Foram suplantadas porque são equivocadas.”

Fonte: Rede Brasil Atual
Texto: Vitor Nuzzi
Data original da publicação: 18/11/2016

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